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Sínodo da Amazónia

"Na Igreja já houve grandes ruturas no passado que hoje são tradição"

29 out, 2019 - 18:23 • Ângela Roque

Três missionários portugueses analisam as conclusões do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia e as mudanças que propõe para a vida da Igreja e para o meio ambiente. A ordenação de homens casados e a abertura do diaconado às mulheres são os pontos mais mediáticos, mas há outras novidades a destacar, como o conceito de "pecado ecológico".

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A ordenação sacerdotal de diáconos casados - para que seja possível garantir que há missa nas regiões mais “remotas” da Amazónia - e a possibilidade de criação de novos ministérios para as mulheres – que levou o Papa a anunciar a reabertura da comissão para debater o diaconado feminino – foram as conclusões do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia mais mediatizadas. Mas serão mesmo as mais importantes?

Para o padre Tony Neves - que coordena, a nível mundial, o Departamento Justiça e Paz dos Missionários Espiritanos, e que já visitou várias vezes a Amazónia – as conclusões revelam acima de tudo a preocupação da Igreja em encontrar novas respostas pastorais que respondam aos desafios de hoje, mas lembra que estas mudanças não serão imediatas, e que as propostas do documento final até ficaram aquém do que previa o instrumento de trabalho para o Sínodo.

“Para as mulheres o documento final abre ligeiramente a porta a um eventual diaconado. No que respeita à ordenações de homens casados, fala-se apenas de diáconos permanentes com provas dadas e exigindo uma formação teológica e pastoral muito aprofundada antes de se dar essa passo. A ideia seria que esses diáconos permanentes pudessem ser ordenados presbíteros para poderem presidir à Eucaristia”, explica à Renascença, lembrando que a preocupação que preside a estas propostas tem a ver com “a centralidade da Eucaristia” na vidas dos cristãos católicos.

“Se a Igreja vive da Eucaristia não faz sentido que os cristãos não possam ter acesso regular à Eucaristia porque há uma disciplina na Igreja que diz que para se ser sacerdote católico tem que se ser celibatário. Não havendo homens celibatários que sejam ordenados padres, não há eucaristia”. Uma realidade que pôde constatar das vezes que visitou tanto a Amazónia brasileira como a Amazónia boliviana. “Incomoda muito reparar que há comunidades católicas que passam meio ano, um ano sem acesso à Eucaristia, porque o missionário padre por mais que tente não consegue ir lá mais vezes”.

Tony Neves lembra que “a questão do celibato é do Concílio de Elvira, do século IV, em Espanha, foi quando se decidiu que os padres para serem padres tinham que ser celibatários, e isso depois foi alargado para a Igreja universal”. Sobre o diaconado cita um documento da Comissão Teológica Internacional, de 2002, que indica que “o diaconado masculino e feminino era universal na Igreja até ao século X, mais ou menos. As igrejas locais, e depois Roma, decidiram acabar com um e com outro, porque acharam que naquela altura não fazia sentido”. Só eram ordenados diáconos os futuros padres, até que o Concílio Vaticano II recuperou a figura do diácono permanente. “Quando foi introduzido foi uma novidade, e atenção que mesmo em Portugal, passados estes anos, continuamos a ter dioceses que ainda hoje não aceitam o diaconado permanente. Portanto, não estamos a falar de situações pacíficas”, explica.

Mas, se as conclusões do Sínodo abrem caminho à ordenação de homens casados, “a proposta dos padres sinodais é essa claramente”, diz o padre Tony Neves, já relativamente às mulheres, o anúncio da reabertura da Comissão que vai analisar a possibilidade do diaconado feminino “é uma resposta do Papa Francisco ao documento final”, e diferente do que constava no Instrumento de Trabalho, que propunha que quer homens quer mulheres casados poderiam aceder aos ministérios ordenados. “Há aqui um afunilamento muito grande em relação à mulher, onde a única porta que se abre é a porta do diaconado, não há outra porta que neste momento esteja a ser aberta”.

"Temos de saber viver com a diversidade de opiniões e aceitar que opiniões diferentes das nossas, em muitos momentos da História, possam ser aquelas que fazem avançar a Igreja"

“Não estou a dizer que esta seja a melhor solução, a solução perfeita, mas é preciso perguntar ao Espírito Santo que caminhos novos é que ele abre. Eu gostei muito de ouvir o Papa no último dia do Sínodo a dizer que nós temos de assentar a nossa caminhada cristã na tradição, mas a tradição não é um museu de coisas velhas que a gente tem e vai lá consultar quando lhe apetece. Não, a tradição é feita de vida, de inspiração do Espírito, e por isso a questão da renovação é uma questão fundamental”, refere.

“A palavra chave deste documento final é a palavra ‘conversão’, que significa mudança, abertura aos sinais dos tempos”, sublinha o missionário espiritano, lembrando que “se na Igreja já houve grandes ruturas no passado que hoje são tradição, então se calhar o Espírito Santo hoje está-nos a pedir que façamos outras conversões, e esta do presbiterado e do diaconado é apenas uma das coisas”.

“Temos de saber viver com a diversidade de opiniões e aceitar que opiniões diferentes das nossas, em muitos momentos da História, possam ser aquelas que fazem avançar a Igreja. Por isso há quer muito cuidado com todos os fundamentalismos, daqueles que não querem mexer em nada, ou daqueles que querem virar tudo do avesso de um momento para o outro. Se calhar precisamos de um ponto de equilíbrio para deixarmos o Espírito Santo falar. Ele é que é o motor da Igreja, não o silenciemos”.

Resta esperar pela Exortação pós-sinodal que o Papa Francisco vai fazer, ao que tudo indica até final do ano. “Que o Espírito Santo o inspire para que tome a decisão que corresponda à vontade de Deus para este tempo e para aquela terra”.

Um ritual próprio para a Amazónia. E o “pecado ecológico”

O padre José Vieira, Provincial dos Missionários Combonianos, e presidente da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP) diz que as conclusões do Sínodo sobre a Amazónia “recuperaram a atmosfera do Concílio Vaticano II”, na busca de novos caminhos pastorais, e considera muito positiva a criação de um ritual próprio para a Amazónia.

“É um aspeto muito importante, esta vontade de querer dar à Igreja na Amazónia um rosto amazónico, através de inculturação e da interculturalidade”. E falar num rito próprio para a Amazónia nem é assim tão estranho, porque “já há na Igreja duas dezenas de ritos. Nós cá em Portugal temos o rito bracarense, por exemplo, e no passado tivemos o rito moçárabe em Portugal e Espanha, no tempo da ocupação dos muçulmanos, era um rito próprio e reconhecido. A Igreja católica no Zaire tem o rito zairense, que é um rito moderno. Porque não estamos a falar só de ritos antigos. O Concílio Vaticano II já tinha aberto essa possibilidade”, lembra.

Ter um ritual próprio passa “pelos gestos e passa também pela linguagem”, explica. “É preciso aprender a língua, daí que os padres sinodais peçam aos agentes pastorais, aos padres, aos missionários, às consagradas, que aprendam a língua local, porque é a base fundamental para a inculturação, anunciar o Evangelho na língua das pessoas, e muitas vezes usando as imagens que são as imagens culturais da língua das pessoas. Este é um desafio, mas é um desafio que não é impossível”. E embora haja dificuldades ao nível do diálogo inter-religioso “por causa dos problemas com as Igrejas protestantes, evangélicas, com as seitas”, considera “interessante a coragem de propôr a Bíblia, a palavra de Deus, como espaço de encontro e de diálogo. E mesmo propôr que a palavra de Deus seja traduzida e distribuída nas línguas locais, ecumenicamente”. Como já se faz em África. “Na Etiópia, onde já estive em missão, estão a acabar a tradução na língua Guji, que foi a língua que eu aprendi, e a equipa que traduz são católicos, protestantes e ortodoxos, estão juntos”.

"A grande expectativa é ver como o Papa Francisco vai integrar este manancial de conselhos ou boas vontades práticas que saíram do Sínodo, juntamente com as duas questões fundamentais: a da ordenação de diáconos permanentes casados, e a possibilidade de alargar o diaconado às mulheres"

José Vieira, que também foi missionário no Sudão do Sul, espera que algumas das conclusões deste Sínodo também possam ser aplicadas nalgumas regiões africanas. “O documento refere que em relação à ordenação de homens casados alguns ‘pronunciaram-se por uma abordagem universal do tema', portanto é verdade que é uma proposta que é feita por uma porção da Igreja, que tem 30 e tal milhões de almas, mas fizeram isso a pensar já na Igreja Universal”.

A nível ambiental considera muito importante a definição de 'pecado ecológico' feita no documento. “É uma novidade, porque muitas vezes olhamos para os rios e para a terra para deitar coisas fora, e não nos passa pela cabeça que ao poluirmos, ao usarmos mal os recursos, estamos a cometer um pecado contra a Criação, contra a terra”.

Entre as novidades destaca, ainda, a criação de “um Fundo Mundial para ajudar as comunidades a custear as despesas de um desenvolvimento autossustentável”, assim como a necessidade da formação teológica incluir a formação ecológica. ”Pedem uma Universidade Católica para a Amazónia, para aprofundar as questões teológicas e pastorais à luz da ‘ecologia integral’ que o Papa propõe”.

“Achei o documento muito desafiante e muito aberto. Agora é preciso levar o Sínodo para a Amazónia”, diz o padre José Viera. Resta esperar pela Exortação Pós-sinodal. “A grande expectativa é ver como o Papa Francisco vai integrar este manancial de conselhos ou boas vontades práticas que saíram do Sínodo, juntamente com as duas questões fundamentais: a da ordenação de diáconos permanentes casados, e a possibilidade de alargar o diaconado às mulheres”.

O Sínodo “pode ajudar a ler melhor os sinais que a natureza nos dá”

O Sínodo foi acompanhado na missão dos combonianos de Piquiá, no Estado do Maranhão, considerada a porta de entrada da Amazónia. “Hoje em dia a gente já não vê nada da Amazónia, já foi tudo desflorestado. Somos afetados pela mineração, pelas industrias de ferro gusa, pela monocultura do eucalipto, que alimenta essas empresas. Temos também a ferrovia, a estrada de ferro Carajás, que transporta o ferro para aqui. E ainda temos a monocultura de soja. Várias situações que vão degradando a qualidade de vida das pessoas”, conta à Renascença a portuguesa Liliana Ferreira, que ali vive e trabalha com o marido, juntamente com dois padres e um irmão comboniano, e mais um casal de leigos.

Esta equipa missionária acompanha a paróquia de Santa Luzia de Piquiá que “tem cerca de 15 mil pessoas”, e a comunidade de Piquiá de Baixo, onde 312 famílias (cerca de 1.200 pessoas) “lutam há anos pelo seu reassentamento”, porque “a poluição é muito grande e ao longo dos anos tem vindo a degradar a qualidade de vida das pessoas”. O novo bairro já está a ser construído, no âmbito do projeto 'Minha casa, minha vida', mas “é tudo muito lento”, por causa dos atrasos no financiamento.

Quando chegou à missão, há dois anos, Liliana acompanhou a comunidade “nas questões do ambiente, na avaliação dos riscos ao nível da poluição”, mas agora está a trabalhar na área da educação. “Estou numa escola que se chama Casa Familiar Rural”, onde dão formação e alertam os alunos para “os perigos dos megaprojetos de monocultura, que vão destruindo as terras”. Tentam que eles “não sintam a necessidade de sair das comunidades do interior, e que possam criar raízes”.

Liliana diz que o Sínodo foi sendo acompanhado na missão, sempre com muito interesse. “Fomos recebendo mensagens de pessoas daqui que foram ao Vaticano”, Na fase de preparação também já tinham sido consultados, “fizemos um trabalho de recolha de sugestões, de propostas, foi uma participação bem concreta”. Agora que o Sínodo terminou, a ideia é fazer chegar as conclusões às comunidades. “É preciso passar estas informações às comunidades e começar a trabalhar, inserir em catequeses. Teremos ainda de ver qual será a melhor forma, mas é preciso dar um seguimento a estas propostas”.

Na prática, o que é que pode mudar depois do Sínodo? Liliana espera que ajude todos a “tomar consciência da gravidade do que está a acontecer na Amazónia, este desflorestamento, a instalação destes mega projetos. Tomar consciência de que a Amazónia é o nosso pulmão e que não se pode pôr em primeiro lugar os interesses económicos que estão a destruir o nosso planeta”.

“O documento diz que a Amazónia é o ‘coração biológico da terra, e se não cuidamos bem do coração sentimo-nos mal”. Como já está a acontecer. “Eu estou aqui há dois anos e já sinto a mudança no clima, está muito mais seco”, o que favorece os incêndios.

No atual contexto politico do Brasil Liliana não acredita que o documento faça mudar alguma coisa ao nível das decisões políticas, mas acredita que com o Sínodo “vamos começar a ler melhor os sinais que a natureza nos dá, a questionar o que estamos a fazer e como podemos agir. Para que não piore”.

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