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Évora

Monges cartuxos. De 1947 a 2019, mostram-se memórias e vivências da missão "Scalexit"

29 out, 2019 - 16:50 • Rosário Silva

Exposição "Saudades dos Cartuxos", patente no Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, pode ser visitada até março de 2020.

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Eduardo Gageiro tinha 12 anos quando publicou a sua primeira fotografia, no “Diário de Notícias”, com honras de primeira página. Corria o ano de 1947. Dez anos mais tarde, dava inicio à sua atividade de repórter fotográfico no “Diário Ilustrado”, concretizando uma vocação desde sempre incentivada por quem lhe reconhecia mérito.

No final dos anos 1960, já ao serviço de “O Século Ilustrado”, surgiu a oportunidade de participar na primeira reportagem realizada ao Convento da Cartuxa, local onde não era permitido entrar, já que os seus habitantes, os monges, viviam em clausura.

“Toda a gente queria vir à Cartuxa, mas não era possível”, conta o histórico fotojornalista à Renascença, mas “tinha um colega que estudou para padre e fez mil e uma diligências para conseguir a reportagem, contactando Espanha, que autorizou, e eu fiquei deslumbrado por poder descobrir um mundo que desconhecia”.

A equipa de Eduardo Gageiro foi recebida pelo prior, o padre Antão Lopez, e desde logo avisada de que não era possível falar com ninguém, a não ser ao fim de semana.

“Quando foi possível falar com os monges, quisemos saber tudo ao máximo e ficámos surpreendidos: como é que em 1970 eles sabiam que o homem tinha ido à Lua, poucos anos antes, se não tinham jornais, nem televisão, nem rádio?”

A estadia no mosteiro prolongou-se por vários dias, tendo sido possível a Gageiro direcionar a sua objetiva para lugares até então nunca vistos. “Fotografei a cozinha, o refeitório, as celas, tudo, tudo, tudo, e estava muito feliz, pois adoro fotografar pessoas e estas eram diferentes, viviam em clausura, com muito pouco, tinham uma cama, um sitio onde rezavam e um quintal”, recorda o fotógrafo.

A reportagem de “O Século Ilustrado” acabou por ser um êxito, deixando gratas memórias ao reconhecido repórter. “Sou fotojornalista há 62 anos, já fiz tanta coisa, estive em mais de 70 países, mas esta foi uma das reportagens que mais me marcou pela originalidade”, admite.

“Não imaginava que havia um convento com estas limitações. Fiquei a admirá-los, mas ao mesmo tempo surpreendido com esta forma de viver”, reconhece Eduardo Gageiro, que se diz “agnóstico”, mas que nada tem contra quem acredita. “Para provar que não tenho nada contra, fiz um livro chamado 'Fé, olhares sobre o sagrado'.”

“As pessoas têm todo o direito de acreditar, não critico e trato-as com profundo respeito, mas fico muito revoltado com o aproveitamento da fé pelos seus líderes, que exploram as pessoas e isso é infame”, lamenta Eduardo Gageiro, que agora vê duas das suas fotos a preto e branco, de 1970, recuperadas na exposição “Saudades dos Cartuxos”, patente no Centro de Arte e Cultura (CAC) da Fundação Eugénio de Almeida (FEA), em Évora.

O “Scalexit” que deixa um vazio

Para memória futura ficam muitas histórias e em “especial o humor do padre Antão”, sublinha à Renascença a secretária-geral da FEA.

“É este monge que se perturba com os jornalistas porque gosta da vida de clausura, mas é uma pessoa com um grande sentido de humor, uma graça e uma jovialidade", conta Maria do Céu Ramos. "Só ele se lembraria de chamar “Scalexit” a esta saída.”

Contudo, “é um vazio que se vai instalar devagarinho, é uma espécie de um luto, pois durante muitos anos foi um privilégio muito grande acompanhar a vida da Cartuxa e dos cartuxos”, através de “coisas muito pequenas e humanas como acompanhar os seus cuidados médicos em caso de necessidade e sempre que a autonomia não o permitia”, recorda a responsável da fundação.

Maria do Céu Ramos enumera, também, alguns dos eventos que foi possível concretizar nestas últimas décadas.

“Foi muito interessante, por exemplo, acompanhar a organização do restauro da igreja e a visita do Presidente da República Jorge Sampaio, que inaugurou esse restauro. Foi muito interessante fazer uma conferência internacional sobre a Cartuxa, fazer duas ou três exposições para dar a conhecer a arte cartusiana, e esses projetos são irrepetíveis.”

A um nível mais pessoal, o convívio com os monges foi também motivo de reflexão para para Maria do Céu.

“Tive o privilégio de conhecer um cartuxo que era o Fonseca, antigo jogador do sporting, um angolano ou moçambicano, não me recordo, que depois de ter tido uma vida desportiva na alta competição do futebol, retirou-se para a Cartuxa. Era o irmão Paulo e visitava-nos com muita regularidade. Era de uma fraternidade perfeitamente tocante. Foi uma pessoa que conheci, por acaso, nos acasos que vêm no exercício das minhas funções, mas nunca pensei conhecer um futebolista de tão grande gabarito que escolheu o silêncio. Isso diz-me alguma coisa e dá que pensar.”

A secretária-geral da FEA garante que, “numa leitura exigente da sua missão”, a instituição vai continuar, mesmo depois da despedida, “a honrar os valores cartusianos e a memória da sua presença em Évora”, dando “visibilidade à sua presença, de todas as maneiras que o tempo propuser e recomendar”.

“Vou descansar, depois de 30 anos falando, falando, falando”

Quem também escolheu o silêncio foi o padre Antão Lopez, o “rosto” dos cartuxos de Évora, que nas últimas três décadas foi o responsável pela comunicação com o exterior, numa missão de “relações públicas” do Convento de Santa Maria Scala Coeli.

“Estou feliz. A maior diferença é que deixo de estar com os irmãos, mas vou descansar, depois de trinta anos falando, falando, falando”, sublinha, à Renascença o monge, ciente de que a partir de 1 de novembro tudo mudará.

“Reclamam-me para Miraflores (Burgos), pois foi lá que professei e 55 anos depois de ter saído é o regresso a casa”, explica o eremita que vai, finalmente, recolher-se numa cela. Com ele leva recordações. “Levo as pessoas que conheci no coração, e à cidade de Évora peço que sejamos otimistas e confiantes no futuro. Amén.”

A Cartuxa e os seus monges, são, de resto, a marca que vai perdurar para sempre no eco da cidade, lembra, por seu lado, o arcebispo de Évora. “É a memória da sua sobriedade, a valorização do mistério na linguagem do silêncio, a permanente gratuidade da sua oração e o som do seu sino, sempre fiel e anunciador, na certeza de uma oração vigilante por todos e com todos, sem exceção.”

Na abertura da exposição esta semana, D. Francisco Senra Coelho fez questão de sublinhar “a nossa gratidão”, atendendo a que “o coração cartusiano sempre teve ouvidos, a sabedoria da escuta e do respeito pela confiança de vida a cada intimidade ali depositada”.

Para o prelado, também presidente da FEA, “os cartuxos, enquanto irmãos e humanidade compartilhada, permanecerão para sempre na nossa admiração e gratidão, pois são cidadãos de honra desta cidade e fazem parte da imaterialidade deste Património da Humanidade”.

Seis décadas de vida monástica em exposição

Com o título "Saudades dos Cartuxos", a exposição agora patente ao público está divida em quatro núcleos, todos eles com o propósito de lançar um olhar sobre a Cartuxa e os cartuxos.

“De uma conversa com o padre Antão, ele dizia 'as paredes ficam, nós vamos'. É daqui que surge a descoberta do título que, no entendimento que temos, eu e o prior, é um título que varre os dois sentimentos: são as saudades que os cartuxos têm e levam consigo e são as saudades que nos deixam”, explica o curador da mostra, José Alberto Ferreira.

No Espaço Atrium do Centro de Arte e Cultura (CAC) de Évora, o primeiro núcleo apresenta objetos da Cartuxa, do seu quotidiano, com destaque para um quadro do pintor cartuxo, Frei Miguel.

“A obra de Frei Miguel está hoje a caminho de ser mais conhecida, mas não tem sido mostrada na íntegra”, afirma José Alberto Ferreira, revelando que o quadro exposto, datado dos anos 1940, “foi feito em Miraflores e está ligeiramente restaurado”.

No segundo núcleo, os visitantes vão poder encontrar “três celas”, com imagens projetadas, destacando-se a primeira reportagem televisiva feita na Cartuxa, em 1982, e difundida no programa “70X7”, da RTP; uma sequência de fotografias que retratam as obras efetuadas no mosteiro ao longo dos anos; um ciclo de imagens do que foi feito nos anos 40 e do que hoje se pode ver nos mesmos lugares; e, ainda, uma visão mais descontraída e surpreendente da vida cartusiana.

“É, talvez, a surpresa maior: os cartuxos fazem passeios a que chamam espairecimentos. Nesse dia podem conviver e, como adoram fotografia e o que ela produz enquanto memória, registam esses momentos que agora partilham connosco”, adianta o diretor do CAC.

No seu núcleo central, o terceiro, são apresentados trabalhos de vários fotógrafos que participaram em projetos da FEA, quer sobre o seu património, quer especificamente sobre a Cartuxa. São quase duas dezenas de fotografias, criadas entre 1970 e 2019, algumas inéditas, onde se incluem as duas do fotógrafo Eduardo Gageiro.

Por fim, o quarto núcleo “é uma espécie de tabela do tempo, chamamos-lhe timeline, entre 1947 e 2019”, alude o curador, e “fala de 72 anos de eventos que a Cartuxa acolheu e nos quais houve quer a presença de pessoas externas, quer visitas, quer fotografias das mais variadas naturezas, reportagens, encontros, exposições ou apresentações de livros”.

“Esta exposição tem o que tem de ter. Tem a simplicidade da Cartuxa”, remata José Alberto Ferreira. Com entrada livre, a mostra pode ser visitada até 29 de março de 2020.

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