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Dependências

Consumir droga na rua devia ser crime? Rui Moreira diz que sim, mas João Goulão é contra

24 out, 2019 - 08:29 • Beatriz Lopes, com redação

Ainda este ano devem surgir em Lisboa duas salas fixas de consumo assistido: uma no Vale de Alcântara e outra no Lumiar.

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Desde 2001 que se pode consumir droga na via pública, mas o presidente da Câmara do Porto quer que seja crime. O diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) discorda, fala em “retrocesso civilizacional” e avança que a solução passa por ter mais fiscalização no terreno.

Questionado à margem da conferência Lisbon Addictions 2019 sobre o facto de a organização internacional Correlation Network ter condenado o autarca do Porto por defender a criminalização do consumo de droga na via pública, João Goulão assume que são precisos mais meios e mais repostas: “As forças policiais não têm capacidade de intervir dissuasivamente nestas áreas. Há falta de efetivos…e não sou eu que digo”.

“Na sequência das declarações de Rui Moreira pude ver também a reação das forças de segurança. Acho que alterar este quadro legislativo seria um retrocesso civilizacional, em vez de dotar as respostas dos meios de que necessitam, parece-me um contra-senso”, disse o diretor do SICAD à Renascença, lembrando que há uma rede de respostas bastante sólida ao nível do tratamento, mas que tem vindo a ser esvaziada pela falta de renovação de quadros.

“O senhor presidente da Câmara do Porto assumiu publicamente a sua disponibilidade de apoiar a criação de espaços de consumo vigiado. E agora esta medida parece completamente em contraciclo com essa afirmação”, sublinha.

No âmbito da conferência, João Goulão conta que Portugal é apontado a nível mundial como um exemplo na política das drogas desde a descriminalização levada a cabo há 20 anos. Contudo, alerta para a necessidade de se quebrarem mitos que associam a descriminalização a um certo facilitismo.

“Subsistem ainda alguns mitos a propósito do modelo português. As pessoas têm a ideia de que aqui foi tudo liberalizado e que as pessoas podem consumir à vontade. Não é o caso. Os consumos foram descriminalizados, mas não despenalizados. Continua a haver uma desaprovação social clara de determinados comportamentos que, do meu ponto de vista, é positivo que se mantenha. Isto em nome da defesa da saúde”, explica.

Numa altura em que a luta contra o aparecimento de novas substâncias psicoativas que entram no mercado (as chamadas “novas drogas”) é um desafio a nível mundial, o diretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências acredita que o retrato português não é ainda visto como uma preocupação.

“É uma ameaça permanente, mas a estimativa que temos é de que o mercado das novas drogas ainda não assumiu em Portugal uma importância comparável à que existe em outros países como a Holanda, Reino Unido e Estados Unidos. Os grandes problemas relacionados com drogas em Portugal continuam a ser ocasionados pelas substâncias clássicas”, conclui.

Duas “salas de chuto” até final do ano

É mais um passo que o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e a Câmara de Lisboa assumem, com vista a apoiar aqueles que consomem estupefacientes e que dificilmente procuram acompanhamento clínico.

Depois da promessa de que até ao fim de 2018 Lisboa teria duas salas fixas de consumo assistido, essa deverá ser uma realidade ainda este ano. Uma delas ficará no Vale de Alcântara, a outra no Lumiar.

“Está em preparação a abertura dos dois espaços fixos na cidade de Lisboa. Não há ainda uma data prevista, mas espera-se que possam abrir em breve". Ainda este ano? "Espero que sim, tudo se encaminha nesse sentido, mas obviamente não posso já assumir isso, nem o próprio presidente da Câmara de Lisboa o pôde fazer”, adiantou à Renascença.

A medida vai dar resposta, sobretudo, aos consumidores permanentes que não procuram a desintoxicação.

“Com a crise económica e social que nos afetou a todos, houve um enorme recrudescimento de consumos problemáticos na sociedade portuguesa. Antigos consumidores de heroína que estão hoje muito envelhecidos, dificilmente se mobilizam para processos de tratamento e, por isso, faz sentido que haja um espaço digno onde possam efetuar os seus consumos, correndo menores riscos”, esclarece.

Já sobre a demora na criação das salas de consumo assistido, João Goulão aponta o dedo ao poder – tanto ao legislativo como ao camarário.

“Quando as salas de consumo assistido faziam mais falta, e faziam mais sentido, andámos desencontrados ao nível da vontade política – das autarquias de Lisboa e do Porto com o poder central. Quando finalmente tivemos condições políticas para o fazer, aquilo que constatámos foi que o consumo por via injetável tinha caído tão abruptamente que já não fazia muito sentido – ou que seria uma medida em contraciclo. E travámos esse processo”, explica.



Desde novembro de 2001 que a aquisição, a posse e o consumo de drogas deixou de ser considerado crime em Portugal. O consumo foi descriminalizado, mas não despenalizado. Consumir substâncias psicoativas ilícitas, continua a ser um ato punível por lei, contudo deixou de ser um comportamento alvo de processo crime (e como tal tratado nos tribunais) e passou a constituir uma contraordenação social.

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  • Maria
    24 out, 2019 Porto 11:01
    Não é verdade que "desde 2001 que se pode consumir droga na via pública". Como esclarecem no último parágrafo, "o consumo foi descriminalizado, mas não despenalizado. "

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