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1969. Lembra-se da greve ferroviária que agitou as “águas marcelistas”?

20 out, 2019 - 15:08 • Ana Carrilho

Pediam um aumento de mil escudos os trabalhadores ferroviários que elaboraram um caderno reivindicativo e se organizaram para parar durante uma hora. E deu-se o acordo.

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À procura de melhores salários e melhores condições de vida, os trabalhadores ferroviários iniciaram uma luta assim que Marcelo Caetano foi anunciado como futuro chefe do Governo, em 1968.

Foi há mais de meio século e a luta prolongou-se por mais de um ano, com momentos marcantes e de grande repressão policial – como o “Luto ferroviário”, em janeiro de 1969, a manifestação de agosto nos Restauradores (Lisboa) ou a greve de uma hora, a 20 de outubro, seria determinante para a assinatura de um acordo coletivo no mês seguinte.

A esperança na “Primavera Marcelista”

Há mais de três anos que os ferroviários esperavam por um novo Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) para substituir o que vigorava desde 1955.

Por isso, à margem dos sindicatos com direções controladas pelo Governo, assim que foi anunciada a nomeação de Marcelo Caetano para Presidente do Conselho, alguns ferroviários começaram a reunir-se e elaboraram um caderno reivindicativo que chegou a ter 33 pontos.

Mas, numa exposição ao ministro das Corporações, Gonçalves Proença, destacaram “as mais prementes, que desejaríamos ver atendidas num prazo tão breve quanto possível”:

  • aumento geral de 1.000$00 nos vencimentos
  • subsídio de renda de casa
  • horário de 8h para todas as estações, apeadeiros e passagens de nível
  • pagamento das horas extraordinárias a 50%
  • subsídio de férias equivalente a um mês de salário
  • assistência médica e medicamentosa como a dispensada pelas Caixas de Previdência
  • atualização do subsídio para fardamentos.

A lista que acabou por ser comum às diversas classes ferroviárias, como o pessoal do movimento, via e obras e dos serviços centrais.

Foi preciso pensar na organização da greve, já que não era fácil chegar a 30 mil ferroviários dispersos por centenas de locais de trabalho em todo o país. Sucederam-se reuniões nos locais de maior concentração de trabalhadores: Campanhã, Ovar, Entroncamento, Campolide, Cruz da Pedra, Barreiro e Pinhal Novo.

Em novembro e dezembro de 1968 seguiram para a administração da C.P. duas cartas (uma com 400 assinaturas, outra com 260) a insistir nas reivindicações já expostas ao Governo.

Gonçalves Proença acabou por responder com o anúncio da formação de uma comissão tripartida (sindicatos, empresa e Governo) para estudar a revisão do ACT, mas acompanhado de um discurso na televisão em que apelava à “consciência dos interessados”, lembrando “a gravidade da hora que o país atravessa”, referindo-se à guerra colonial.

O discurso motivou a reação imediata dos ferroviários que, em três dias, juntaram quase 3.500 assinaturas numa carta em que lembravam “os chorudos aumentos que os administradores se tinham atribuído a si próprios, passando de 9.500$00 para 21.000$00, nuns casos, e de 13.600$00 para 23.000$00, noutros.

Em luta, de luto

O que fazer a seguir, foi o que a Comissão Nacional dos Ferroviários perguntou à classe. Houve quem sugerisse uma “greve da mala”, como os trabalhadores da Carris (autocarros de Lisboa) tinham feito meses antes (com circulação de veículos mas sem cobrança de bilhetes); outros defenderam uma paralisação e outros ainda deixaram a “palavra de ordem” por conta da comissão. E ela surgiu, depois de muitas discussões: o “luto ferroviário”.

Assim, a partir de 2 de janeiro de 1969, milhares de ferroviários passaram a usar uma braçadeira negra no braço esquerdo. Segundo o jornal “Avante” (clandestino) – praticamente o único em que se veem referências à luta ferroviária – “o luto foi cumprido por 80% do pessoal a nível nacional”.

Isto, apesar das inúmeras tentativas dos agentes da polícia política – PIDE/DGS – para obrigar os trabalhadores a tirar as braçadeiras, umas com mais sucesso que outras.

As estações do Rossio e de Santa Apolónia estiveram ocupadas pela polícia durante vários dias, mas nas oficinas de Campolide não terão conseguido entrar porque os ferroviários trancaram as portas.

Nas oficinas do Barreiro, o luto foi cumprido pelos dois mil operários e, segundo os relatos, os agentes que tentavam obrigar alguns a tirar as braçadeiras acabaram por se ver rodeados por centenas de trabalhadores que gritavam contra a PIDE e tiveram de fugir.

A iniciativa era original e teve grande adesão, mas como não passava de um protesto e sem duração definida, acabou por se desvanecer. Resultou, mesmo assim, nalguns ganhos para os trabalhadores.

A 8 de janeiro, o Governo anunciou aumentos médios de 12% para os trabalhadores da C.P. no ativo e um aumento fixo de 9% para os reformados e pensionistas, abonos e subsídios de deslocação, além da equiparação do esquema de previdência dos ferroviários ao que já estava em vigor para os trabalhadores do comércio e indústria.

Uma forma de estancar a luta da classe, foi assim que a Comissão Nacional dos Ferroviários entendeu as “benesses”, decidindo que era preciso avançar para formas de luta mais firmes.

Num I Encontro Nacional de Ferroviários fez um balanço da luta e definiu a organização como prioridade para que qualquer ação futura tivesse sucesso. Nasceram comissões e núcleos de trabalho em todas as regiões.

Nos meses seguintes, os ferroviários tentaram várias vezes reunir-se nos sindicatos, sem sucesso, marcando o cada vez maior distanciamento em relação às direções sindicais.

No dia 2 de agosto, cerca de um milhar de trabalhadores vindos de todo o país concentraram-se junto à sede da União dos Sindicatos Ferroviários, nos Restauradores.

Segundo o “Avante Clandestino”, a Praça estava cercada por agentes da PSP e da PIDE e algumas centenas de trabalhadores que tinham conseguido chegar à sede foram “brutalmente repelidos”.

Mas cerca de 500 manifestantes conseguiram reagrupar-se e, na Avenida da Liberdade, levantaram vários cartazes.

“Ferroviários mantêm reivindicação de 1.000$00”, “Queremos horários de trabalho humanos”, “Queremos sindicatos que defendam os interesses dos trabalhadores” e “Queremos que o ACT seja amplamente discutido pela classe” era o que se podia ler, segundo o órgão oficial do PCP.

Dois ferroviários foram presos na altura, mas libertados ao fim de alguns dias.

Das 15h às 16h: a eficácia de uma hora de greve

Já não havia dúvidas de que o passo seguinte teria de ser a greve. O problema era quando a fazer, a sua duração e a forma de a convocar.

Ficou claro que não podia ser prolongada e acabaram por vencer os que defendiam apenas uma hora. Se fosse amplamente cumprida em toda a extensão da empresa, seria uma excelente vitória.

Por outro lado, não daria tempo à polícia para atuarem em força em toda a linha. Foi então convocada para 20 de outubro, entre as 15h00 e as 16h00.

Segundo o “Avante”, mais de 12 mil ferroviários ao serviço paralisaram nessa hora e a eles se juntarem muitos dos que estavam de folga.

Nas oficinas do Barreiro, Entroncamento, Santa Apolónia, Campolide, Cruz da Pedra, Figueira da Foz e Ovar, a paralisação foi total.

Os escritórios no Rossio, Santa Apolónia e Barreiro pararam. A greve foi total ou quase nas principais estações por todo o país.

Os maquinistas em greve não punham os comboios em marcha ou, se estavam em movimento, entravam em modo “marcha lenta” e imobilizavam-se na estação seguinte.

Aos ferroviários juntaram-se vários milhares de pessoas em diversas estações, mas sobretudo no Rossio, onde a paralisação terminou às 4 da tarde com uma “estrondosa ovação”.

A esta greve, a polícia política prestou atenção redobrada. Logo de manhã, várias brigadas chegaram às estações do Rossio, Santa Apolónia, Barreiro, Sintra e a outras, sobretudo de partida e entroncamentos, para tentar impedir a greve.

Nos dias seguintes, a administração da C.P. suspendeu os 20 ferroviários que mais se destacaram no protesto, mas 19 foram rapidamente readmitidos na sequência de milhares de telegramas de protesto e abaixo-assinados.

A exceção foi para o revisor Firmino Martins, entretanto preso pela PIDE, acusado de se ter atirado para a linha, na estação do Rossio, para fazer parar o comboio.

Valeu a pena

A luta dos ferroviários acabou por levar os sindicatos a assinar um novo ACT. Não respondia a todas as reivindicações da classe e por isso foi considerado uma “vitória parcial”.

O aspeto mais positivo foi o aumento dos salários. Em conjunto com o que tinha sido atribuído em janeiro, o aumento rondava, em média, 800$00, próximo do reivindicado inicialmente. A parte negativa é que os chefes, que já ganhavam mais, tiveram aumentos mais altos.

Esta luta acabou por ser um marco na história sindical dos ferroviários. Por isso, a Fectrans, na próxima semana, vai assinalar o seu 50.º aniversário numa sessão evocativa com alguns dos protagonistas de 1969.

O objetivo é também mostrar às atuais gerações que, naquela altura e sem a liberdade e democracia que existem hoje, houve quem lutasse e se sacrificasse para conseguir melhores condições para a classe. E que esse é um exemplo a seguir.

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