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"Feridos incuráveis" dos fogos de outubro

14 out, 2019 - 13:03 • Liliana Carona

São feridos incuráveis daquele que foi considerado o pior incêndio de 2017. Dois anos passaram, mas a alta ainda não chegou e nada apaga a memória daquele dia. Conheça a história de quem ainda trata o corpo e a alma.

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Reportagem Feridos Incuráveis da jornalista Liliana Carona
Clique na imagem acima para ouvir a reportagem na íntegra. Foto: Liliana Carona/RR

O pagamento de indemnizações aos feridos graves nos incêndios de junho e outubro de 2017 deverá atingir os 11 milhões de euros, assume a Provedoria de Justiça. O organismo admite ter recebido 187 pedidos de indemnização, tendo-os remetido para o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses que, até à data, qualificou de “feridos graves” 74 pessoas.

Dois anos depois dos incêndios de outubro, estes feridos graves continuam a viver com a dor. E a dor da alma, essa, dizem que nunca vai passar.

Os feridos considerados graves desses incêndios receberam parte das indemnizações, mas têm pela frente um rol elevado de despesas, entre cremes e luvas especiais. Estiveram internados longos meses, alguns tiveram alta há poucos meses, outros ainda continuam em tratamentos.

Em Oliveira do Hospital, Santa Comba Dão e Vouzela, a Renascença encontrou feridos graves com vontade de contar a história do passado e do presente, para que não se repita no futuro.

Dois anos depois, Antonino ainda faz tratamentos com parafina

Segundo o relatório da comissão independente de Avaliação dos Incêndios ocorridos entre 14 e 16 de outubro de 2017, relativamente aos feridos, o INEM prestou socorro a 67 feridos, que necessitaram de transporte para o hospital, dos quais 16 graves.

A maior parte foi encaminhada para o Hospital da Universidade de Coimbra (14) e para o Hospital de Santo António, em Viseu (16). Antonino dos Santos foi um desses 16 feridos graves e decide contar-nos a história destes dois anos de uma vida virada do avesso.

O Sr. Antonino tinha um rebanho. “Morreram todas, já não tenho ovelhas. Para que as quero se não posso andar atrás delas? Fiquei sem nada e fiquei sem a mulher”, vítima, entretanto das consequências de um AVC, conta à Renascença.

São as marcas dos incêndios do dia 15 de outubro de 2017, que obrigam Antonino dos Santos, 75 anos, de Travanca de Lagos, a deslocar-se todas as semanas para receber tratamentos de fisioterapia no Hospital Fundação Aurélio Amaro Diniz, em Oliveira Hospital.

Esteve nove meses internado no Hospital de Coimbra e continua em tratamentos com parafina.

“A parafina vai hidratar a pele, que vai permitir uma mobilização da mão, menos dolorosa”, explica a fisioterapeuta Ana Martins, recordando o tempo em que o pastor esteve internado no Hospital de Coimbra. “Perdeu a noção do espaço, do tempo, esteve mal, mas mal.”

“O sistema linfático fica alterado, fazemos massagens de pressão para não desenvolver edemas”, explica ainda a fisioterapeuta, uma das primeiras profissionais de saúde a receber os queimados no dia 15 de outubro de 2017.

Não dormiu nessa noite, porque a unidade de fisioterapia era a única que tinha luz. “Nunca hei-de esquecer aquele pai que traz a filha pequena nos braços, dizendo que tinha perdido a família. Foi um cenário muito mau, não estávamos preparados e ainda estamos a tentar dar a volta por cima, embora as marcas fiquem”, desabafa, comovida.

“Limpavam hoje e amanhã ficava tudo em ferida”

Na unidade de fisioterapia Hospital Fundação Aurélio Amaro Diniz, Antonino não é o único ferido grave dos incêndios de outubro de 2017 que continua a receber tratamento.

Carlos da Conceição, 69 anos, reformado da construção civil, reside em Avô e foi ali, no dia do incêndio, que, ao tentar ir buscar um trator à sua quinta, acabou por ser apanhado pelas chamas. Esteve em coma e internado no Hospital de São José, em Lisboa, durante sete meses.

“A pele das pernas foi retirada para os braços e assim as pernas também ficaram lesionadas. Ficava tudo em ferida. Limpavam hoje, amanhã estava em ferida, usavam um desinfetante e ia para o chuveiro e mal aguentava as dores, pareciam agulhas”, descreve sobre o processo de cicatrização.

Carlos fez exames no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, em Coimbra, e já recebeu parte da indemnização do Governo (cerca de 40 mil euros), depois de ter feito o pedido na Provedoria da Justiça. Mas continua à espera de ser ressarcido das despesas de saúde.

“Os cremes que são caríssimos – gasto à volta de 100€ por mês em cremes – comprei dois pares de luvas ainda em Lisboa, 375€ cada uma, estragaram-se mandei fazer em Coimbra, mais umas luvas por 500 euros; as collants entre 60 a 75€… Dizem-me que vou receber, mas e se eu não tivesse dinheiro para avançar?”, questiona Carlos, que já consegue fechar as mãos graças à ajuda da fisioterapeuta Ana Martins.

“Há casos mais graves que outros, o importante é poder alimentar-se, poder fazer apreensão”, considera a especialista, sem deixar de observar que Carlos tem um problema na mão que vai necessitar de intervenção cirúrgica. “Os nossos queimados, estes graves, ainda não tiveram alta, ainda é muito cedo.”

Passados dois anos dos incêndios, o ferido Carlos e a fisioterapeuta Ana falam quase em coro sobre o que temem que possa vir a acontecer novamente. “Não temos acesso aos hospitais distritais, vários concelhos sem autoestradas ou acessos rápidos”, denota Ana, que sabe que no dia 15 de outubro de 2017, a par da suspensão das comunicações, as vias de acesso não permitiam um socorro rápido.

Carlos aponta o dedo à falta de limpeza das florestas. “Temos o IC6 com os eucaliptos plantados à beira da estrada, que é uma vergonha num país que ainda há pouco tempo teve dois incêndios. Acho que as memórias não se devem esquecer assim tão rápido, é um país de doidos, uma vergonha para os nossos políticos, aquela estrada estar como está e na Nacional 17 é o mesmo.”

Ainda há pedidos de indemnização em avaliação

Nos cálculos da Provedoria de Justiça, as indemnizações a serem pagas pelo Estado a estes 74 feridos graves – em junho e outubro de 2017 (incluindo os cerca de dois milhões de euros propostos, a título de pagamento intercalar, em agosto de 2018) deverão elevar-se a cerca de 11 milhões de euros.

Fonte oficial da Provedoria de Justiça explica que, à semelhança das vítimas mortais, os critérios para determinar quem pode ser considerado ferido grave foram previamente definidos por um conselho de três peritos.

É ferido grave quem comprovadamente cumpra pelo menos uma das seguintes cinco circunstâncias:

  • Internamento hospitalar com dano permanente que se revista de relevância funcional ou estética;
  • Internamento hospitalar por um período não inferior a 30 dias ou com verificação de perigo de vida, designadamente em estado de coma ou com necessidade de ventilação assistida;
  • Internamento hospitalar com lesão que, de acordo com os critérios médico-legais, provoque dor em grau considerável (no mínimo grau 5 em 7);
  • Danos psiquiátricos permanentes com repercussão considerável na autonomia pessoal, social ou profissional da vítima;
  • Perda ou diminuição permanentes da utilização de qualquer dos sentidos ou funções com interferência significativa na perceção da realidade envolvente ou na vida de relação.

Na sequência dos incêndios de 2017 e do processo de indemnizações desencadeado no fim do primeiro trimestre de 2018, a Provedoria de Justiça admitiu 187 pedidos de compensação, tendo-os remetido para o INMLCF – Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses que, até à data, qualificou de “feridos graves” 74 pessoas.

“Alguns casos, muito poucos”, sublinha fonte oficial da Provedoria de Justiça, "ainda estão em análise" no INMLCF. A mesma fonte destaca que, “após uma primeira apreciação, será sempre necessário que o requerente se submeta a exame pericial, para avaliação do dano corporal, o qual será realizado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses". Será o relatório desse exame, adianta a fonte, que "permitirá, depois, a fixação da indemnização devida em cada caso”.

“Até hoje não me deram nada”

Fernando Correia, 45 anos, de Sobreira de Ventosa, concelho de Vouzela, ficou com a casa destruída pelo fogo e, no corpo, as marcas ainda são visíveis.

O primo garante que Fernando “foi dado como morto” quando ligou para o hospital a saber notícias suas. Esteve um mês internado no Hospital de Santa Maria em Lisboa. Até hoje reivindica uma indemnização.

“Estiveram a medir-me os ferimentos, em Coimbra, mas até hoje não me deram nada. Tive queimaduras de primeiro e segundo grau. Na altura, na Câmara, disseram-me que teria direito, preenchi os papéis, mas não recebi nada; desde que fui fazer os exames nunca mais tive resposta.”

Os danos psicológicos são duros de enfrentar. “Acho que nunca vou esquecer aquele dia e sonho constantemente com o fogo.”

Contactada a Provedoria de Justiça sobre este caso, fonte oficial informa que “não pode ser dada informação particular, sob pena de ser violado o direito à privacidade e que o processo pode também ter sido conduzido pelo CPAPI (Ministério Justiça)”.

Aliás, a mesma fonte sublinha que, “quando o parecer que o INML – Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências transmite é negativo, significa que os danos relatados não permitem qualificar a situação como ferimento grave à luz dos critérios definidos pelo conselho de três peritos nomeado pelo Governo, pelo que não será possível indemnizar estes feridos pelo mecanismo de indemnização coordenado pela Provedora de Justiça”.

No entanto, a fonte oficial da Provedoria de Justiça realça que “isso não significa que os danos indicados sejam irrelevantes ou menos dignos de compensação.

Para esses, o Governo estabeleceu um outro mecanismo extrajudicial, igualmente gratuito, centrado na Comissão de Avaliação dos Pedidos de Indemnização CPAPI (Ministério Justiça), a funcionar junto da Secretaria Geral do Ministério da Justiça”.

“A vida levou um tombo e nunca mais volta a ser o que era”

Em Santa Comba Dão, Paulo Ferreira, de 49 anos, tem “85% de incapacidade para trabalhar”, disseram-lhe na junta médica.

Esteve 21 meses internado, teve alta no dia 12 de julho. Passou pelo Hospital da Prelada, no Porto, pelo de S. Teotónio, em Viseu, e mais recentemente pela Unidade de Cuidados Continuados de Tábua.

Vive com o apoio da mulher, Manuela Veloso, de 51 anos. “Ninguém se consegue colocar no lugar dele, não é fácil para ninguém. Na saúde e na doença é assim”, recorda Manuela, referindo o juramento de matrimónio feito há 25 anos.

Paulo vem medicado do Hospital da Prelada com 15 comprimidos por dia, entre vitaminas e antidepressivos.

A mulher, Manuela, recebe apoio psicológico em Tondela e ainda hoje toma medicação. Não consegue esquecer. “Foi horrível quando o vi. Estava todo pretinho, parecia um animal que tinha sido abatido e estonado”, diz sem conter as lágrimas. Paulo lamenta que não possa trabalhar mais. Era motorista de camiões pesados e o médico disse-lhe que não podia regressar ao trabalho.

“Ainda não recebemos nada da Segurança Social. Pedimos a pensão de invalidez em abril e até agora nada”, lamenta Manuela, assistente auxiliar numa escola. “Eu ainda não fui trabalhar, porque não me sinto bem e não sei se isto algum dia passará”, assume Manuela, que ainda tem um rebanho de meia centena de cabeças de gado para guardar.

“Temos a arma à porta, para não vir a guerra”

Paulo andou a pé quatro horas à volta de casa, em Nagosela, perdido nas chamas a tentar salvar o que era seu. Perdeu parte da visão, mal consegue caminhar. “Não vejo as imagens nítidas. Nem ao longe. O nervo ótico ficou afetado. Não me posso mexer”, refere, mostrando a bengala que o ajuda em deslocações de dois ou três passos.

“Lembrar-me do que fazia e do que faço agora só dá tristeza”, confessa, interrompido pela mulher. “Ele estar vivo foi um autêntico milagre, agora não se calça nem se veste sozinho e não imagina o martírio que é: quase não lhe posso tocar. Uma sensibilidade extrema, cheio de formigueiro, começa-me a gritar”, descreve Manuela.

Receberam a indemnização do Estado, mas não há dinheiro que devolva a vida de Paulo e de Manuela antes dos incêndios.

“Preferia não ter recebido nada, mas termos saúde e com o pouco que tínhamos continuarmos a lutar. A vida levou um tombo e nunca mais volta a ser o que era, não me conformo. Um barracão arde, fazem um barracão novo. Arde uma casa, fica uma casa nova, agora ele ficou como está.” Olha para o marido, que caminhava e via bem antes do fatídico 15 de outubro de 2017.

Com a indemnização do Estado, e como sente que o Estado não lhe valeu na altura dos incêndios, Paulo usou parte do dinheiro que recebeu para comprar uma cisterna, estacionada à porta de casa, para ele próprio ser bombeiro se alguém precisar.

“Ele fez isto como se estivesse bom”, observa Manuela, enquanto o marido continua a explicação, agora com alguma alegria na voz. “Isto é quase como um carro de bombeiros: a cisterna está preparada para acudir a alguém que precise de ajuda”.

“Se eu tivesse isto naquela altura não tinha ficado assim. Temos a arma à porta, para não vir a guerra. Com as armas já não vem a guerra” – assim deseja Paulo Ferreira, com 50% do corpo queimado.

Os incêndios de outubro de 2017 causaram a morte a 50 pessoas, fizeram 70 feridos, quase duas dezenas deles graves, e destruíram total ou parcialmente cerca de milhar e meio de casas e mais de 500 empresas.

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  • Amora Bruegas
    15 out, 2019 10:11
    Vítimas do socialismo, do governo de ACosta. Como é possível que haja quem ainda apoie um governo socialista? Sadismo ou total inconsciência?

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