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Padre Alfredo Gonçalves. “A Amazónia pode ser um lugar de laboratório”

08 out, 2019 - 08:01 • Ângela Roque

Missionário português no Brasil vê no Sínodo uma oportunidade de reflexão e mudança na Igreja, que deve ter em conta os “desafios novos que a história vai propondo”. Trata-se de “dar mais voz aos leigos”, explica Alfredo Gonçalves, lembrando que a Igreja trabalha com os indígenas “há séculos” e vai continuar a fazê-lo, quer Bolsonaro goste ou não.

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Alfredo Gonçalves está há 50 anos no Brasil. Natural da Madeira, é missionário scalabriano, uma congregação que se dedica ao trabalho com as migrações. É, atualmente, assessor para a Mobilidade Humana da Conferência Episcopal brasileira.

Em entrevista à Renascença, Alfredo Gonçalves aplaude a decisão do Papa Francisco de convocar este Sínodo, por causa da emergência climática, mas também para se discutir a possibilidade de criação de novos ministérios, que dêem “mais voz aos leigos”.

O missionário diz que não o choca que a Igreja venha a atribuir maiores responsabilidades às mulheres ou a permitir a ordenação de homens casados e entende que o que o for discutido no Sínodo pode ser visto como uma “experiência modelo, de laboratório”, que anos mais tarde possa servir “outros lugares”.

A situação política no Brasil não fica de fora desta conversa, com o padre Alfredo a não poupar críticas ao presidente brasileiro pelo facto de estar a promover a devastação da Amazónia, a todos os níveis.

Como é que vê esta iniciativa do Papa de convocar um Sínodo dos Bispos dedicado à Amazónia? Fazia falta?

O Papa Francisco tem a capacidade de colocar em pauta temas que são muito cruciais para a humanidade de hoje. Um deles, as migrações; outro os descartáveis do planeta, que também tem a ver com os migrantes, e outro a questão ambiental. O Papa já escreveu a Encíclica "Laudato Si", sobre a preservação do meio ambiente, e tem trabalhado muito com a metáfora da nossa "casa comum".

O Sínodo da Amazónia está nesse processo de promoção da defesa do meio ambiente. Mas, no Brasil, o que vemos hoje é muita gente interessada em devastar Amazónia, sejam eles madeireiros, mineradores, produtores de gado, de soja ou de cana-de-açúcar. E tem havido uma organização dos ruralistas, os grandes produtores rurais, contra as populações indígenas que vivem na Amazónia para tentar começar a produzir nas terras indígenas, o que, por lei, é proibido.

O presidente Bolsonaro tem facilitado isso?

Os presidentes anteriores criaram reservas indígenas onde não se entra, não se pode produzir. São reservas para a vida dos indígenas. O atual presidente tem dito que é necessário abrir o Brasil para toda a produção, mas essa abertura para a produção, mineração e exploração das terras é uma abertura para a extinção dos povos indígenas, a médio e longo prazo.

Como é que classifica a política de Bolsonaro?

Muito agressiva. É um presidente que segue de perto a linha do Trump, é um presidente de extrema direita, com uma política de direita e de desafio aos direitos humanos, que vem desmantelando uma série de políticas de proteção que havia no Brasil: ao meio ambiente, às populações indígenas, negras, aos direitos humanos. Estamos a assistir, no Brasil, à desconstrução dessas políticas.

Confirma que há um mal estar entre os bispos brasileiros e o presidente, que até mandou investigar a preparação do Sínodo dos Bispos, por recear que ponha em causar a soberania do Brasil?

Sim. O Sínodo da Amazónia criou um mal estar e o governo eleito já por várias vezes tentou, direta ou indiretamente, criticar a iniciativa, e entrou em confronto com os bispos do Brasil. Os bispos até fizeram uma nota à imprensa sobre a defesa do Sínodo, a defesa do meio ambiente e dos direitos humanos das populações que ali vivem. Esse mal estar tem desencadeado conflitos localizados dentro da Amazónia, mas os bispos, e o Sínodo, estão a tentar defender essas populações.

A Igreja vai continuar a fazer isso, apesar deste confronto com o presidente?

A Igreja no Brasil trabalha com os indígenas há séculos, desde os jesuítas, os salesianos e outros. A Igreja tem muitas iniciativas com os povos indígenas e, no Brasil, existe o CIMI - Conselho Indigenista Missionário -, que é um centro de integração e defesa dos direitos indígenas. Muitas entidades internacionais, apoiadas por países como a Alemanha, a Irlanda, a Holanda e a Noruega, também tentam garantir a defesa dessas populações.

O que o atual governo fez foi trazer de volta a ideologia da segurança nacional, dizendo que é preciso libertar o Brasil do comunismo, que é um discurso dos anos 60, ultrapassado, que vem dos tempos da guerra fria.

Mas é um discurso que "cola" na população? Há quem se identifique?

Infelizmente, há muita gente que se identifica com isso. Porque o Brasil está muito perto da Venezuela, também tem Cuba perto.

E há receio?

Há. O que às vezes as pessoas não se dão conta é que o Brasil é muito diferente da Venezuela. O Brasil tem um parque industrial muito amplo, tem uma agricultura fabulosa, é o maior produtor de grãos do mundo inteiro, de frutas, agricultura, enquanto a Venezuela vivia unicamente do petróleo. O Brasil é autossustentável, é um país com uma economia sólida, é muito difícil imaginar que o socialismo e o comunismo tomem conta do Brasil.

O Sínodo pretende encontrar "novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral". É este o tema. Para além do ambiente, estão em causa questões relacionadas com a vida da Igreja e a sua organização. Como missionário, quais são as suas expectativas, quanto aos resultados?

A primeira coisa que a gente espera é que o Sínodo crie uma consciência nacional e internacional para a defesa da Amazónia e dos povos que ali vivem, porque isso é importante para o resto do mundo, como pulmão, como reserva. Uma segunda coisa é a organização interna da Igreja. Este Sínodo pode favorecer uma missão da Igreja brasileira para a Amazónia, que hoje é terra de missão.

Normalmente, quando se fala em missão, no Brasil, pensa-se em África e esquece-se que a Amazónia está aí ao lado. Também é terra de missão. Na Amazónia, temos hoje muitas dioceses com um clero muito reduzido.

Há poucos padres para chegar a todo lado?

Há poucos padres. Há comunidades que têm a visita do padre uma vez por ano, uma vez a cada seis meses ou a cada três, por exemplo.

A Igreja precisa mesmo de rever como é que se organiza para dar resposta a essas necessidades?

Exato. E não se trata somente de mais missões e mais padres para a Amazónia, trata-se também de dar maior voz aos leigos, de abrir espaço para a sua participação. Já hoje, grande parte das comunidades da Amazónia são dirigidas por diáconos, por mulheres, por leigas, por lideranças laicas.

Isso porque em algumas das tribos indígenas a figura mais importante é a mulher...

São as mulheres, sim.

O Instrumento de Trabalho para este Sínodo tem sido criticado por alguns setores da Igreja por prever a discussão da possibilidade de ordenação de homens casados e da atribuição de mais responsabilidade às mulheres. Como é que vê essas soluções? Tem de se ir por aí?

Eu, particularmente, acho que devia ser por aí. Tenho vários colegas que estudaram comigo e se ordenaram padres, que, depois, saíram, casaram, mas nunca largaram o compromisso com a Igreja e hoje são pessoas que têm um papel preponderante na defesa dos povos indígenas, dos povos ribeirinhos e pobres da Amazónia. Essas pessoas poderiam ser imediatamente reabilitadas ao sacerdócio e, com isso, teríamos centenas de padres a mais na Amazónia.

Outra coisa é dar maior espaço e poder às mulheres que hoje já estão na direção das comunidades. Creio que isso é uma necessidade, creio que essa seja até a perspetiva do Papa, mas que há muita resistência dentro da Igreja para isso.

Porquê?

A resistência dentro da Igreja, normalmente, apela para o direito canónico, para as leis. Ora, o direito canónico e as leis na Igreja também já são um pouco idosos e, muitas vezes, não levam em conta os desafios novos que a história vai propondo. Talvez haja necessidade de rever algumas diretrizes das próprias leis que regem a Igreja.

Mas não o choca que a Igreja, num futuro próximo, possa seguir o caminho de criação de novos ministérios, de ordenação de homens casados e, eventualmente, até o sacerdócio feminino?

Não me choca, não. Se visitarmos as comunidades na base da Igreja, hoje, em países como o Brasil, onde tenho mais experiência, vemos que as mulheres são aquelas que garantem a preservação das comunidades. São as que estão mais presentes, que levam adiante, sobre os ombros, responsabilidades maiores, pastorais e sociais, comunidades de base. Isso precisa de uma resposta efetiva.

Por outro lado, também não me choca o facto da Igreja precisar de mudanças, porque a Igreja sempre avançou em cima de mudanças. Desde o tempo das primeiras comunidades cristãs, periodicamente, a Igreja sofreu mudanças substanciais para se adaptar aos tempos. A Boa Nova de Jesus Cristo precisa de ser adaptada aos tempos. E as realidades novas que vemos hoje - as redes sociais, a internet, as migrações, o mundo urbano, os meios de comunicação cada vez mais instantâneos -, tudo isso merece que o Evangelho seja adaptado.

O que sair deste Sínodo é suposto ser aplicado à Amazónia, mas há quem receie que possa generalizar-se. Qual é a sua opinião?

Penso que poderia ser feita uma experiência modelo, de laboratório, na Amazónia, e, depois de alguns anos, ver-se a possibilidade de se entender a outros lugares, onde é mais difícil encontrar pessoas que se disponham a levar adiante a Boa Nova de Jesus Cristo. Penso que, nesse sentido, o Papa teve uma intuição muito grande. Poderia ser, realmente, um lugar de laboratório, porque é um lugar de muita fé, de povos abandonados pela Igreja. Abandonados, não no sentido de deixar de lado, mas no sentido de mal assistidos. Então, poderia ser uma resposta imediata e poderia ser uma resposta de laboratório, para repensar o resto do planeta, sem dúvida.

Ou seja, em sua opinião, a Igreja não pode continuar fechada à mudança? A organização que tem na Europa pode já não servir para África ou para a Ásia? Tem de haver essa adaptação?

A Igreja, as suas estruturas, as suas leis têm não só de se adaptar aos casos, como o da Amazónia, mas adaptar-se, por exemplo, ao mundo urbano. O mundo urbano é hoje o maior desafio à Igreja. As paróquias territoriais já não respondem à realidade do mundo urbano. Dificilmente um católico hoje reconhece onde começa e onde termina a sua paróquia e, devido à facilidade de locomoção, de telefone, de carro, de redes sociais, ele vai na igreja onde se encontra bem...

A organização baseada nas paróquias também tem de ser repensada?

Tem de ser repensada. A estrutura paroquial da Igreja não responde mais à mobilidade e à diversidade do mundo urbano. Aliás, o mundo urbano não coincide com a cidade, não é uma área geográfica, é uma visão de mundo, uma mentalidade, um conceito muito mais antropológico do que geográfico. Hoje, a mentalidade urbana está na cidade, mas está também no campo, na zona rural.

E requer novos instrumentos de pastoral?

Requer novas formas de exercer a pastoral, de acolher as pessoas. E essas novas formas têm muito a ver com os desejos e interesses das pessoas.

As pessoas, hoje, no mundo urbano, não só escolhem a sua religião, mas podem escolher o seu lugar de participação. No mundo rural, a gente herda a religião, é uma coisa de família. No mundo urbano, a religião é uma escolha e, às vezes, na mesma família há diversas religiões.

Além da religião ser uma escolha, é também uma escolha o lugar onde vou exercer a minha fé. As pessoas vão onde tem um determinado movimento da Igreja, uma determinada forma de celebrar, onde o casamento ou o baptizado é mais bonito, coisas deste tipo. Ora, a Igreja não está preparada para isso, a estrutura de paróquias e dioceses já não responde. O mundo urbano e as migrações estão a exigir grandes mudanças dentro da Igreja.

A exigir novas respostas... É isso que também está em causa neste Sínodo?

É o que também está em causa neste Sínodo. Não só para a Amazónia, mas também para essa questão da mobilidade humana, do mundo urbano. Penso, repito, que o Sínodo da Amazónia podia ser um laboratório para adaptar a Boa Nova de Jesus Cristo aos novos tempos.

Se olharmos o Evangelho, vemos que Jesus adaptou muito a sua Boa Nova, com uma linguagem que o camponês entende, que o artesão entende, que o rei entende, que a dona de casa entende. A Igreja devia-se adaptar, não só em termos de estrutura, mas também em termos de linguagem, porque é ainda muito académica, muito fechada.

ENisso, o Papa Francisco será um exemplo...

O Papa Francisco fala com o povo de maneira simples, mas sem deixar de ser profundo. E com as metáforas e parábolas de Jesus Cristo.

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