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Reportagem

Na freguesia com mais votos no Chega, o resultado eleitoral "surpreende e assusta"

08 out, 2019 - 06:30 • Joana Gonçalves

Com um total de 772 votos, Algueirão-Mem Martins é a freguesia portuguesa onde o Chega alcançou maior número absoluto de votos. Entre o “desgaste do CDS” e a “tática do Marcelo”, os eleitores procuram uma explicação para a eleição de André Ventura.

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Horas depois do anúncio do resultado das legislativas de domingo, o reconhecimento de vencedores e vencidos é matéria de debate na regular conversa de café, no número cinco da rua Fanares, em Algueirão-Mem Martins, a freguesia portuguesa onde o Chega, de André Ventura, conquistou o maior número absoluto de votos (772).

Sentados numa mesa recatada longe do balcão, Artur e José são o exemplo que confirma a regra. “Ainda há pouco falávamos da noite eleitoral. Disse aqui ao meu amigo que nunca mudei o meu sentido de voto”, garante José Cabeça.

Aos 68 anos, nunca falhou uma eleição e só por uma vez votou fora do círculo eleitoral de Lisboa, “há muitos anos”.

Para ambos, foi previsível o resultado das duas maiores forças políticas, PS e PSD. Com o que não contavam era com a eleição de André Ventura. E foi nesta freguesia, onde vota José Cabeça, que o líder do Chega conquistou o maior número absoluto de votos. Explicação? Ainda não a conseguiu encontrar.

“Eu não entendo este resultado eleitoral. A nossa freguesia está longe de ser aquela que concentra mais minorias. Se olharmos, por exemplo, para o Cacém ou a Amadora, estas, sim, são freguesias onde as minorias, que deixaram de ser tão minorias assim, são muito mais acentuadas. Talvez o que tenha contribuído para esse valor seja mesmo o facto de esta ser a maior freguesia do país.”

Algueirão-Mem Martins não foi a freguesia portuguesa onde Ventura conquistou uma maior percentagem de votos. Esse marco vai para a Póvoa de São Miguel, no concelho de Moura, em Beja, onde o líder do Chega foi a terceira força mais votada, com 15,43% dos votos. Contudo, foi aquela onde o candidato obteve maior número absoluto de votos: 772 num universo de mais de 66 mil eleitores, quase o mesmo número de votos que, a nível nacional, garantiram a André Ventura a estreia no Parlamento.

“Acho que a ascensão do Chega é também resultado de um grande desgaste do CDS, a grande alternativa à direita”, completa Artur Nascimento, que há cinco anos mudou de círculo eleitoral para Santarém.

Nenhum dos dois votou Chega e também nenhum “convive com apoiantes da extrema-direita”, mas apesar da “desilusão” não acreditam que este seja um partido “com pernas para andar”.

“Ainda somos diferentes do centro da Europa", defende Artur Nascimento. "Basta vermos o exemplo de França, dos bairros periféricos de Paris, onde este discurso populista ganha muito mais força. Não acredito que a extrema-direita tenha margem para ascender em Portugal.”

“O André Ventura usou a tática do Marcelo”

Do outro lado do balcão está Nuno Miguel Levita, gerente do "Tulipa Dourada". “Nascido e criado” em Mem Martins, “foi com surpresa” que assistiu ao resultado da noite eleitoral.

“Hoje de manhã foi a primeira coisa que fui ver. Chamou-me muito a atenção ver mais de 770 pessoas aqui na minha freguesia a votar no Chega. Acho assustador que eles tenham conseguido entrar na Assembleia”, desabafa.

Para Nuno Levita, a justificação também não é clara. “A minha freguesia sofre dos mesmos problemas das outras todas, nem mais nem menos. Até em termos de segurança não me parece que esteja pior do que as outras, de maneira nenhuma. Acho até que há outras bem piores, onde seria mais fácil para o Chega angariar votos. Aqui não consigo entender”.

Há falta de melhor explicação, o gerente de 44 anos relembra um outro fator que acredita ter garantido ao líder do Chega, anterior candidato do PSD à Câmara de Loures e ainda comentador da CMtv, um lugar em São Bento.

“O André Ventura usou a tática do Marcelo. Aproveitou a exposição mediática de um canal onde se fala alto e onde se chama muito a atenção, para dizer que estava aqui”, explica.

Estela Santos votou este ano pela primeira vez. Acompanhou de perto a campanha para as legislativas mas confessa que sempre desvalorizou a presença do Chega.

“Nunca lhe dei grande atenção, até ontem, quando percebi que tinham elegido um deputado. Não conheço ninguém que tenha votado no Chega”, conta.

Apesar de se ter estreado este domingo, recorda as últimas presidenciais e, como Nuno Miguel, não resiste em comparar o percurso de Marcelo ao de Ventura.

“Lembro-me de pensar, quando o Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito Presidente, “ele fez a cama onde agora se está a deitar”. Não me admira nada que o André Ventura enquanto comentador de futebol tenha influenciado a intenção de voto de alguns eleitores”.

“Os verdadeiros extremistas não votam Chega”

Se para José, Artur, Nuno e Estela a eleição de André Ventura permanece um mistério, para Palmira Sousa, residente em Mem Martins, a razão “prende-se com o fator novidade”.

“Há uma faixa da sociedade, talvez acima dos 50/ 60 anos, que começa a ficar um bocadinho cansada e procura uma nova alternativa. Aconteceu o mesmo com o PAN, numa faixa etária mais nova”, defende.

Aos 71 anos, Palmira soma uma vasta experiência eleitoral. Acompanhou várias campanhas de perto, primeiro no PS e mais tarde no PSD, onde é ainda militante.

“Conheço bem o funcionamento destes dois grandes partidos e sei também como reagem as pessoas a estas forças políticas. O Chega é, sem dúvida, a grande novidade. Desconheço por completo a campanha do Chega na nossa freguesia”, conta.

Uma ideia confirmada por Amílcar Adrigo, 72 anos, que garante só ter tomado conhecimento do partido depois de ver o boletim de voto. “Só ontem quando fui votar é que soube que ele existia. Mas ele é de direita?”

Entre opositores e desinteressados é inegável a existência de pelo menos 66.442 simpatizantes, que este domingo festejaram a vitória do Chega.

Nuno Miguel Levita aponta o discurso populista como o grande promotor do resultado eleitoral do partido de extrema-direita.

“A linha que separa o estúpido do populista é muito ténue, mas acho que ele açambarca as duas, usa clichés fáceis para cativar votos e, a partir daí, consegue cavalgar para o poder”, explica.

“Eu não consigo entender qual é o eleitorado alvo dele, porque acho que os verdadeiros extremistas de direita não votam nele. Acredito mais num voto de desagrado, numa mensagem que lhe soa a vingança”, acrescenta.

Uma tese partilhada por Palmira que não nega o clima de insatisfação que se faz sentir na freguesia. “Se há ruas que não estão pavimentadas, escolas sem funcionários ou centros de saúde lotados é normal que a manifestação acabe por ser feita numa perspetiva local".

O partido Chega teve melhores resultados nas eleições legislativas de domingo onde há menor poder de compra, menos serviços de saúde e criminalidade inferior à do resto do país.

Ventura estreia-se na Assembleia da República com a promessa de "restabelecer a esperança num país que não a tinha" e tornar, "dentro de oito anos", o Chega no "maior partido de Portugal".

Comentários
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  • José Alcobia
    12 out, 2019 Elvas 20:37
    Seria interessante analisar os concelhos do Alentejo onde o Chega teve mais votos, e verificar a percentagem existente de comunidade Cigana. Não me parece que tivesse votos por ai, podemos concluir que é um problema serio que não deve ser esquecido mas sim resolvido. Um povo não se integra por decreto , tem de querer ser integrado. temos de ficar nas duas filas dos direitos e dos deveres. A população que convivem com estes minorias não todos do SLB.
  • José Pereira
    08 out, 2019 09:20
    O André Ventura cresceu nessa freguesia, nos grupos de jovens de lá. Muitos devem conhecê-lo e votam porque o conhecem, não apenas pelo que se diz dele e das afirmações publicadas, mas pelo que privaram com ele... E talvez estas não coincidam

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