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O "My Way" de Diogo Freitas do Amaral

05 out, 2019 - 23:30 • José Ribeiro e Castro

O advogado e antigo presidente do CDS recorda um "homem tranquilo, de bem consigo", e rejeita que alguma vez tenha estado só, mesmo politicamente. "A notícia da sua solidão era como a morte de Mark Twain: uma notícia, afinal, um pouco prematura", escreve.

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Às vezes, é preciso deixarmos os acontecimentos acontecerem para percebermos bem as coisas. Às vezes, é mesmo necessário tudo expirar para entendermos plenamente o seu sentido.

Acabo de regressar do Cemitério da Guia, em Cascais, onde, esta tarde, Diogo Freitas do Amaral foi a enterrar. Ainda de manhã, à entrada nos Jerónimos com minha mulher, para a última missa de corpo presente antes do funeral, fui abordado pelo jornalista António Esteves, da RTP, que me perguntou se Freitas do Amaral estivera “muito angustiado, nos últimos meses, por não ter conseguido fazer as pazes com a direita”. Respondi que não – é a verdade que conheço e testemunhei. Sofrendo por vezes com a doença, certamente; mas angustiado, de maneira nenhuma. Nunca o vi. E com essa questão, de todo.

Diogo Freitas do Amaral foi sempre um homem tranquilo, de bem consigo. Mesmo com a doença, que foi avançando duramente ao longo deste ano, comendo-lhe muitos dias, lidou com ela, tanto quanto vi, com coragem e serenidade. Nem sombra de angústia ou de ansiedade. Uma estrada natural.

Mas a questão de António Esteves compreende-se. Em muitos comentários, depois da sua morte na quinta-feira, e nos obituários publicados, este tema foi incontornável: a “solidão” de Freitas do Amaral e a ruptura com o seu campo político ou deste com ele – o “ostracismo”, como o próprio o nomeou, na apresentação do seu último livro, em Junho passado. Este ostracismo existiu, de facto, e tem um marco caricatural e simbólico naquele deplorável episódio da retirada e devolução do retrato, quando aceitou ser ministro dos Negócios Estrangeiros no governo PS em 2005. Já a “solidão” tem muito mais que se lhe diga. Primeiro, a dimensão e a amplitude dos testemunhos e das homenagens, pessoais e institucionais, que lhe foram prestadas e dirigidas nestes dois dias relevam que, afinal, a notícia da sua solidão era como a morte de Mark Twain: uma notícia, afinal, um pouco prematura. Segundo, porque alguma solidão é a condição necessária do homem livre – ninguém é livre se tem medo do escuro, isto é, se tem medo de ficar só. Freitas do Amaral escolheu ser livre quer quando serviu – e muito bem – a direita (ainda que fosse do centro), quer quando, depois de largado pela direita (que quis seguir para outros rumos), continuou a definir e a seguir o seu próprio caminho.

Na sessão em que, há três meses, apresentou o terceiro e último volume das suas Memórias, “Mais 35 anos de democracia – um percurso singular”, Freitas do Amaral surpreendeu toda a gente, ao ler, no final, como poema de referência, estrofes de “My Way”, uma inesquecível canção de Frank Sinatra. Hoje, nos Jerónimos, após o final da missa e a seguir a uma formidável evocação do pai pelo seu filho Domingos Amaral, uma senhora, que cantara antes um canto religioso (o “Avé Maria”, de Frei Hermano), subiu também ao altar, para cantar o “My Way” de Frank Sinatra, como a despedida antes da saída para o enterro.

Imagino a surpresa de muita gente. Não sei se fora uma das últimas vontades de Diogo Freitas do Amaral, ou apenas uma ideia da família, para melhor nos irmanar com o espírito do falecido: cantar o seu poema de referência, ali mesmo de onde ia partir.

Acredito que os Jerónimos nunca tenham vivido um momento destes: a canção de Frank Sinatra assim cantada na Capela Mor, com os Senhores Bispos ainda no altar solenemente paramentados, ecoando outro som e ambiente naquelas belas e monumentais pedras manuelinas. Mas, primeira vez que fosse, foi assim mesmo. Pareceu-me que, à medida que a canção avançava, os vitrais ficaram ainda mais sublimes, ganhando brilho, sobretudo no rosto luminoso das suas figuras. E, olhando para trás, lá longe, na entrada para a nave central, pareceu-me que até Camões, deitado em cima no túmulo, esboçou um sorriso. Disto tive, pouco depois, a certeza: quando, à frente de um impressivo cortejo académico, a urna de Freitas do Amaral, carregada aos ombros por professores da sua Universidade, passou ao lado do túmulo de Luís de Camões, vi perfeitamente o sorriso rasgado na sua face e, logo, ouvi-lhe este sussurro repentino: “Porreiro, pá!”. Camões gostara do "My Way" e é sabido que também soube de ostracismo.

O "My Way" foi a forma de Diogo Freitas do Amaral responder às perguntas como aquela que António Esteves me fizera. E a forma de nos sinalizar que não era apenas um poema de referência, como pudera parecer em Junho, não longe dali na sessão do livro, do Centro Cultural de Belém; mas, no Mosteiro dos Jerónimos, naquela cerimónia e naquele momento, a canção era, afinal de contas, o hino da sua liberdade de consciência.

Não há mal nenhum em ter divergências – afinal, a democracia justifica-se por causa disso. Eu também as tive com Diogo Freitas do Amaral e ele comigo. Isso não é motivo sério para romper e distratar. Não creio que Freitas do Amaral deva o que quer que seja à direita – à esquerda também não. Mas sei que a direita deve muito a Freitas do Amaral. Quando foi preciso, quando foi mais preciso do que em qualquer outro momento, ele esteve lá – e não esteve somente na multidão (que é muito importante e essencial), mas esteve, mais do que isso, a liderar: a dar a cara, a voz e o rumo. A direita que, no seu pleníssimo direito, se separou dele desencadeou que ele se separasse também. E aconteceu o que é frequente nestas circunstâncias. Eu não acompanho algumas posições de Freitas do Amaral, ou o modo por que as manifestou. Mas não ponho em causa o direito de o fazer, nem exprimi a discordância por insultos. Isso, aliás, incomodava-o pouco. Porquê? My way.

Já no Cemitério da Guia, a Marinha prestou-lhe uma última e tocante homenagem, conduzida pelo Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada. E o Presidente da República, que com o seu esclarecido patriotismo democrático foi o responsável por estes dois dias de exéquias, culminou o acto com a entrega à viúva, Maria José Freitas do Amaral, da bandeira nacional que estivera a cobrir a urna. Com este gesto e as palavras que disse à família de Diogo Freitas do Amaral, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quis expressar e transmitir, pessoalmente, a gratidão de Portugal pela grande figura que partiu: o professor, o jurista, o jurisconsulto, o homem de pensamento, o académico, o político, o líder partidário, o parlamentar, o governante, o publicista, o cidadão activo, o homem de cultura, o escritor, o democrata, o patriota.

É isso que tenho dito que é mais devido a Freitas do Amaral: gratidão. Sobretudo por parte daqueles que mais serviu: o centro e a direita. Podemos discordar, mas não devemos esquecer, nem maltratar a nossa própria história.

Por aquelas coincidências que o calendário nos reserva, Diogo Freitas do Amaral foi a sepultar a 5 de Outubro, isto é, no dia em que passam 876 anos sobre a assinatura, entre D. Afonso VII de Leão e o nosso D. Afonso Henriques, do Tratado de Zamora por que o Condado Portucalense passou a Reino e Portugal foi reconhecido pelos vizinhos de que nos separámos. Sabendo quanto do seu tempo, da sua energia e da sua vida Diogo Freitas do Amaral dedicou ao estudo e à divulgação do nosso primeiro rei fundador, não tenho dúvidas de que não foi só Camões: D. Afonso Henriques também sorriu certamente, até porque ele também foi um campeão de "My way". Não existiríamos sem isso.

Gostaria que a Rádio Renascença, para que escrevo este texto, pusesse na página uma ligação que permita aos leitores ouvir na íntegra a bela canção de Frank Sinatra, não apenas lendo o poema, que transcrevo. Só assim, escutando, podemos perceber inteiramente o último legado que, como hino de liberdade e de consciência, Freitas do Amaral nos quis entregar, no exacto momento em que ia sair da igreja para a sepultura.

My Way

Frank Sinatra

And now, the end is near
And so I face the final curtain
My friend, I'll say it clear
I'll state my case, of which I'm certain

I've lived a life that's full
I've travelled each and every highway
But more, much more than this
I did it my way

Regrets, I've had a few
But then again, too few to mention
I did what I had to do
And saw it through without exemption

I planned each charted course
Each careful step along the byway
And more, much more than this
I did it my way

Yes, there were times, I'm sure you knew
When I bit off more than I could chew
But through it all, when there was doubt
I ate it up and spit it out
I faced it all and I stood tall
And did it my way

I've loved, I've laughed and cried
I've had my fill my share of losing
And now, as tears subside
I find it all so amusing

To think I did all that
And may I say - not in a shy way
Oh no, oh no, not me
I did it my way

For what is a man, what has he got
If not himself, then he has naught
To say the things he truly feels
And not the words of one who kneels
The record shows I took the blows
And did it my way

Yes, it was my way

Comentários
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  • João Lopes
    06 out, 2019 18:30
    Há pessoas a quem faltam convicções profundas e por isso são capazes de fazer algo e o seu contrário. Não sabem ir contra a "corrente". São como os "dançarinos", que bailam conforme a música do momento. Nem são exemplares como as pessoas de bem, que sabem ser coerentes e fieis aos princípios, mesmo que sejam prejudicadas social e materialmente! Há gente que não olha a meios para atingir os fins… Mas com a morte toda a verdade ou mentira das nossas vidas virá ao de cima…não se pode apagar!

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