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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

​Fé pop

13 set, 2019 • Opinião de Henrique Raposo


Mesmo na Nova Iorque boémia e artística dos anos 60 e 70, Patti Smith nunca deixou de fazer as suas orações à noite, nunca deixou de acreditar na Providência e, ainda mais espantoso, nunca permitiu que o seu desejo de afirmação artística comprometesse a sua fé.

Uma pastoral da cultura procura a fé em locais e tribos inesperados. Ficar no remanso da ortodoxia do claustro não é um caminho pastoral, é preguiça. Há que procurar a nossa herança em espaços menos óbvios. Por exemplo, há que esmiuçar a cultura pop à procura da herança católica. Ela está lá.

Nem católicos nem ateus estão habituados a pensar no cantor pop ou rock enquanto depositário da fé e da cultura bíblica. Mas eles existem.

A fé esconde-se debaixo de muitas guedelhas roqueiras. Olhe-se por exemplo para Patti Smith, que passou por Portugal neste verão. A sua autobiografia, "Apenas Miúdos", é uma grande partilha de uma autora católica que nunca perdeu a fé. É uma partilha de uma pessoa que é católica antes de ser artista, que é artista porque é católica; uma artista construída na brutal honestidade da oração e da confissão.

Mesmo na Nova Iorque boémia e artística dos anos 60 e 70, Patti Smith nunca deixou de fazer as suas orações à noite, nunca deixou de acreditar na Providência e, ainda mais espantoso, nunca permitiu que o seu desejo de afirmação artística comprometesse a sua fé. Ou seja, ela não se vendeu ao ar do tempo que pedia uma arte afastada de Deus, em geral, e do catolicismo, em particular. Nestas memórias, fica bastante claro que Patti Smith desconfiava do ethos artístico da pós-modernidade então em formação. Ela sentia aquela paisagem artística demasiado presa a modas e figuras mediáticas que encostavam a arte ao “socialite” e ao comércio, que enclausuravam as obras nos impulsos do momento e não na procura da verdade intemporal sobre o ser humano.

Esta distância entre Patti e o “meio” sente-se quando ela descreve o desprezo que sentiu pelo egoísmo de Jim Morrison; sente-se na distância evidente em relação à obra (vazia) de Warhol. A obra de Warhol, diz Patti, reflectia uma cultura descartável que ela queria evitar: "preferia um artista que transformasse o seu tempo em vez de o espelhar”. Num momento particularmente irónico, Patti compara o séquito de Warhol a um "estábulo”. Diz-nos ainda que as relações de poder dentro deste cortejo, a famosa mesa de Warhol no Max's, não eram diferentes das relações de poder do “liceu”. A turba cool do Max’s só reparou na jovem Patti quando ela apareceu com um corte de cabelo radical.

A crítica ao meio nem sequer poupa o seu grande amor e personagem principal deste livro, Robert Mapplethorpe.

- Tu estás à procura de atalhos, Robert!

Patti achava que Robert tinha demasiada pressa em entrar naquele meio "social" da arte, e que essa pressa tinha um custo elevado: o pacto faustiano que Robert acabou por desenvolver com o mal, ou melhor, com uma estética negra que suga a esperança do mundo. No quarto que partilhavam, ambos rezavam pela alma de Robert: ele para a vender no pacto faustiano, ela para a salvar.

Devoção

Se ele quis o pacto com Mefistófeles, ela manteve-se na esperança e na fé. Patti viu sempre na fé a génese do seu impulso criativo, que, na época, ainda não estava na música mas as artes plásticas e a poesia: “o fio de palavras impelidas por Deus que se transformam num poema, a camada de cor e de grafite riscada sobre a folha de papel que amplifica o movimento d’Ele”. “O que eu queria”, diz Patti, “era honestidade”. A fé ajudou-a nessa fidelidade à franqueza, mesmo quando essa verdade desafia a credulidade. Tal como sucede noutro livro de registo autobiográfico, Devoção, Patti Smith não esconde aqui os momentos de premonição, os presságios negros (sonhos durante o sono ou em consciência) sobre a morte de Mapplethorpe. É preciso coragem para assumir esta linguagem escondida do mundo.

Comentários
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  • Vera Costa
    15 set, 2019 06:11
    Não mataram, não roubaram, trabalharam com gana! naquilo que sabiam fazer: cantar! a pouco e pouco, arranjaram instrumentos velhos, consertaram-os, aprenderam a tocar, cantaram nas ruas de maior movimento, sobreviveram e fizeram-se gente! gente que distraem os outros, porque a vida é para se viver com calma, muita paciência e alegria! Outros, de roupas velhas modificaram-as e tornaram-as diferentes! criaram estilos de moda, venderam, multiplicaram e tornaram-se conhecidos! isto, fez-se com o pensamento e com muitas horas de trabalho! Parados à espera que o dinheiro caia do Céu, não dá! Do Céu só pode vir aquela força que nos diz: Tu és capaz! arregaça as mangas e mostra o que vales! E foi assim que muitos se tornaram famosos! ricos, não digo! mas com o suficiente para poderem viver, sem ajuda de ninguém! Se em vez de andarmos a criticar os outros, procurássemos saber como eles começaram na vida e tentássemos fazer qualquer coisa, que se não der aqui, dá noutro sítio qualquer! pois é!... Há uma velha teoria que não vem de nenhum filósofo, mas vem das escolas onde andei: "nunca digas que não és capaz, porque se os outros conseguem, tu também consegues!" e isto nunca me saiu da cabeça! e se não ficar bem à primeira, à segunda fica melhor e à terceira, sai perfeito. Bom fim de semana, Henrique Raposo!
  • Joaquim Santos
    14 set, 2019 Tojal 14:35
    Muito interessante.! Dizer-se católico tudo certo. Porem como é que eles cumpriram e respeitaram os dez mandamentos.?
  • Manuela Rodrigues
    13 set, 2019 19:59
    Estrelinhas! (peço desculpa) são estas lâmpadas de Led...
  • Manuela Rodrigues
    13 set, 2019 19:17
    Olá Henrique Raposo, esqueceu-se de Yves Saint Laurent, moda Francesa, era muito mais velho que Patti Smith, mas que despertou nela a moda do vestuário, perfumes... "A fé esconde-se debaixo de muitas guedelhas roqueiras. Olhe-se por exemplo para Patti Smith, que passou por Portugal neste verão. A sua autobiografia, "Apenas Miúdos", é uma grande partilha de uma autora católica que nunca perdeu a fé. É uma partilha de uma pessoa que é católica antes de ser artista, que é artista porque é católica; uma artista construída na brutal honestidade da oração e da confissão." Pois os guedelhudos, não eram más pessoas, todos eles têm agora à volta dos 70 anos e nós (os da mesma idade) damos-lhe valor, eles eram pessoas que vieram do nada e conseguiram vencer, com força de vontade, com a ajuda de Deus, que acreditavam! Agora eu tenho um problema (que acho que não é meu) porque sou da idade deles, gosto das músicas deles, aliás gosto deles, porque para mim eles são gente com jeito! Rod Stewart, Micke Jagger, Paul McCartney, John Lennon... e na moda Channel, Giorgio Armani... são pessoas que eu procurei saber como venceram na vida e não me consigo afastar deles! os mais novos riem-se porque não entendem como sou uma pessoa desta idade (72), posso gostar de músicas de guedelhudos ou de usar um chapéu que me tapa os cabelos brancos em vez de os pintar! Estes de hoje não sabem nada da vida! os da minha idade (senhoras), enfeitadas como pinheiros de Natal, até às unhas azuis com estrelinas!!!