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Carlos Guanziroli. “As pressões da indústria podem salvar a Amazónia”

01 set, 2019 - 09:19 • José Bastos

“É muito importante o agro-negócio ser claramente contra a desflorestação da Amazónia”, defende o especialista em economia agrícola. “O problema é que a bancada ruralista no Congresso representa os agricultores e os pecuaristas. Os pecuaristas não se importam com a desflorestação, mas os agricultores do agro-negócio são contra. Estou a ver os pecuaristas muito tranquilos e o agro-negócio a reagir de uma forma muito enérgica contra Bolsonaro”, nota Carlos Henrique Guanziroli.

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O Banco Nordea Finland, o maior do norte da Europa, suspendeu temporariamente a compra de títulos do tesouro brasileiros pela preocupação com a resposta dada pela administração Bolsonaro aos incêndios na floresta da Amazónia. A decisão descrita como de “quarentena temporária” está a ser lida nos mercados como uma campainha de alarme de que o problema ambiental pode ter implicações de monta para a economia brasileira.

A posição do Nordea Finland é uma das dezenas de reacções internacionais aos milhares de focos de incêndio que colocam a presidência Bolsonaro no centro de uma vaga de críticas à política ambiental das autoridades de Brasília.

O líder brasileiro acusa a Alemanha e a França de tentarem “comprar” a soberania do Brasil depois do G7 ter oferecido ajuda para combater fogo e aproxima-se ainda mais de Donald Trump de quem disse ter pedido apoio na questão da Amazónia. Eduardo Bolsonaro, designado pelo pai Jair Bolsonaro, como novo embaixador brasileiro em Washington esteve na sexta-feira na Casa Branca a garantir o apoio do presidente norte-americano nesta crise.

Na sexta-feira, Bolsonaro afirmou que a Europa “nada tem a ensinar ao Brasil” sobre matérias ambientais no momento da entrada em vigor um decreto presidencial a inviabilizar queimadas por 60 dias.

De que forma irá a crise evoluir? Pode Bolsonaro ceder às pressões da comunidade internacional? São questões para a reflexão de Carlos Henrique Guanziroli, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Carlos Henrique Guanziroli sustenta que existem políticas públicas de grande eficácia contra a desflorestação da Amazónia desde 2000, mas o que falha é a sua aplicação. O professor argentino, doutorado em economia agrícola e cadeias agroindustriais pelas universidades de Londres e da Califórnia, defende ainda que a esperança da floresta pode estar, ao contrário da percepção de alguma opinião pública europeia, nas posições da indústria do ‘agro-negócio’ para quem o desmatamento “é péssimo”.

Bolsonaro está a perder o conflito ideológico anti-ambiental?

As atitudes do presidente Bolsonaro geram muita incerteza, muita instabilidade. A tensão já começou há meses quando se concluía o acordo com o Mercosul com a União Europeia com Macron a colocar como condição de que Bolsonaro não saísse do acordo de Paris e o presidente brasileiro disse que sim, não abandonaria.

Mas, aqui no Brasil, a retórica de Bolsonaro não mudou radicalmente de tom. Esperemos que agora depois da pressão internacional algo mude, mas em geral há uma rejeição muito expressiva em relação a todas as propostas de ajuda, de apoio aqui, na esfera de influência do presidente, descritas como de "interferência na questão climática".

É extraordinário porque se considera aqui que a Amazónia é brasileira e que os outros países não têm nada a opinar. Sabemos não ser exactamente assim. A Amazónia é muito importante do ponto de vista ambiental global, embora não seja o pulmão do mundo como já se demonstrou - o pulmão do mundo são os oceanos - mas é decisiva do ponto de vista da biodiversidade e de tudo o que está em jogo. Não vejo que nada esteja resolvido por causa de uma declaração na cimeira de Biarritz.

E como foi vista a ameaça de usar armas económicas (França e Irlanda sobre Mercosul) para resolver uma questão ambiental?

Acho 'armas' uma expressão forte, não a usaria. Mas as pressões económicas são úteis e tiveram uma repercussão imediata. O ex-ministro da agricultura Blairo Borges Maggi - o maior produtor de soja no Brasil, 'rei da soja', tem fazendas de mais de 500 mil hectares - e também Kátia Abreu, outra ex-ministra da agricultura, pronunciaram-se expressivamente contra esta situação da deflorestação.

Blairo Maggi e Kátia Abreu mostraram-se contra por dois motivos: pela pressão económica internacional que possa eventualmente afectar o Brasil, via acordos do Mercosul com a União Europeia e um eventual boicote aos produtores brasileiros, mas, motivo mais importante é que para o próprio 'agro-negócio' a questão do desmatamento, da desflorestação, é péssima.

É que, por exemplo, para os produtores de soja do Estado do Mato Grosso a desflorestação da Amazónia provoca uma alteração do regime de chuvas.

Existe o que se chama ' rio de nuvens' que todos os anos vem da Amazónia como um grande rio aéreo e molha os estados de Mato Grosso, Goiás, Tocatins e todas essas áreas sede do agro-negócio de soja são irrigadas por essa 'nuvem' com origem na Amazónia. Estudos climáticos sugerem que se desmatada a Amazónia essa chuva deixará de vir.

Então, para o agro-negócio há uma necessidade imperiosa de que se diminua ou que se interrompa o ritmo actual de desmatamento.

O reconhecimento dos principais agentes do ‘agro-negócio’ que a desflorestação pode comprometer o sector constitui um estímulo para a administração Bolsonaro agir?

O problema de pressionar este governo é poder ter o efeito contrário ao pretendido. Este governo é integrado por pessoas muito fanáticas. O próprio ministro do meio ambiente - Ricardo de Aquino Salles - é uma personalidade obtusa e não reage a essas pressões. Agora, as pressões do agro-negócio, essas sim, têm algum impacto sobretudo pelas implicações climáticas no plano económico. No plano internaciona muita gente acha que o desmatamento é feito pelo "agro-negócio". Essa ideia é muito difundida aí na Europa e noutros continentes. Mas não é assim.

O ciclo da desflorestação começa assim: o pequeno agricultor errante, ou assentado da reforma agrária que vive em Estados circundantes como o Tocatins ou Pará, entra normalmente na Amazónia – e, historicamente, ele faz isso uma vida inteira - e desmata, queima e planta durante quatro anos algumas culturas do tipo de arrroz, feijão ou mandioca. Na Amazónia, contudo, como a camada orgânica é muito superficial não chega a 20, 30 centímetros o terreno fica exaurido de nutrientes orgânicos em quatro ou cinco anos. E o agricultor faz o quê? Avança ainda mais para o interior da floresta.

Aí entra em cena o gado. Essa área abandonada pelo pequeno agricultor fica com troncos de madeira queimada e não se pode fazer agricultura mecanizada e entra em em cena o gado até os troncos apodrecerem. Só então, teoricamente, ao fim desse período, três, quatro anos, o "agro-negócio", a cultura mecanizada da soja, poderia avançar, mas, na prática, não acontece. Para ter uma ideia nos últimos 40 anos o agro-negócio continua a ocupar práticamente a mesma área no Brasil, 60 milhões de hectares. No Brasil a grande expansão do "agro-negócio", o crescimento significativo, não ocorreu por expansão de fronteiras, mas sim pelo aumento de produtividade nas próprias terras que o “agro-negócio” já ocupava.

Mas não houve expansão territorial do 'agro-negócio' em outros estados que não apenas o Mato Grosso?

Houve uma expansão no estado do Tocatins, no sul do Pará e no Maranhão. Mas aí não se trata de floresta da Amazónia virgem, não foi essa a ocupação. Insisto: primeiro avança o pequeno agricultor, entra a pecuária, às vezes entra a soja, mas normalmente nessas áreas de pecuária nada acontece depois.

Quando vemos essas áreas de 'clarões' nas imagens satélite, por norma, assiste-se a uma reflorestação. Se se deixa essa área intocada durante seis, sete anos e não avançar a soja e a pecuária também não vingar aí por ser muito longe há lugar a um renascimento.

Mas quanto ao presente?

O que aconteceu é que nos últimos seis meses é que como o discurso de Bolsonaro foi do tipo "está tudo permitido" - porque ele acha que o agricultor de algo tem de viver - esses pequenos agricultores e outros madeireiros avançaram para o desmatamento. Então hoje o desmatamento de área de floresta virgem já teve o seu início há seis meses e agora chegou a época das queimadas das árvores que foram cortadas. É o que está a acontecer.

Como não há controlo e a fiscalização diminuiu considerávelmente porque demitiram gente do Ibama e a teoria dominante foi percepcionada como 'desmatar não é problema' esses agricultores e madeirenses avançaram em força. Agora, parte das queimadas também não é de florestas, mas de pastos.

Trata-se de uma prática muito antiga com raízes indígenas com a cinza do pasto a fertilizar os solos e a melhorar as plantações. É uma agricultura ultrapassada. O agro-negócio não faz nada disso, antes utiliza métodos de vanguarda. Assim, diria que metade dos focos de incêndio resultam de floresta nativa e a outra de pastos.

Então, como é que, agora, do ponto de vista das políticas públicas, esse cenário pode inverter-se no plano da economia ambiental sendo um especialista?

Tudo o que se passa cria problemas no aquecimento global, problemas de erosão dos solos e outros. Mas estes não são os piores focos de incêndio da história das queimdas. Em 2004/2005 havia 100 mil, 102 mil focos por ano e agora ronda os 70 mil. Nos anos 90 a desflorestação era, em média, de 25 mil Km2 por ano e agora desmata-se 7 mil Km2. Até 2012, no final da administração Lula da Silva, a desflorestação estava nos 4 mil Km2 por ano.

Com Dilma Rousseff começou a subir porque se registou um pouco de descontrolo. E agora está nos 7 mil. Quando a média caiu considerávelmente entre 2003 e 2012 foi resultado de uma política activa do Ministério do Meio Ambiente, primeiro com a ministra Marina Silva e depois com Carlos Minc, com fortes medidas repressivas. Exemplo são as brigadas do Ibama, de uniformes verdes e armadas, equipadas com modernos 4x4 que entram na floresta que prendiam quem encontrassem em situação ilegal a cortar árvores. Medidas que funcionaram. Para além desse quadro houve também lugar a compensações ambientais como um programa de pagar para não desmatar, numa espécie de bolsa para o pequeno agricultor. Se não desmatasse, o pequeno agricultor recebia 300 dólares por hectare nesse plano de incentivo ambiental.

Outro ponto que é muito importante são os relativos às questões agro-florestais trabalhados na perspectiva de se usar a floresta para plantar caucau ou café nas áreas de "sombreamento" ou pimenta do reino e outros produtos medicinais que proporcionem maior rendimento que a desflorestação. O problema é a tradição do mais fácil: cortar a madeira e primeiro extrai a madeira boa depois vem o madeireiro com correntes e derruba tudo e o que resta vai para aglomerado de madeira.

Aí outra decisão política correcta foi a da certificação da madeira: numa área de mil hectares um agricultor está apenas autorizado a desflorestar, por exemplo 10 hectares sendo que em 100 anos se pode desmatar tudo, mas a cada ano os primeiros hectares são reflorestados. Essa é a madeira certificada que se exporta para todo o mundo, sendo mais cara é obtida de forma sustentável. As grandes fábricas de mobiliário só aceitam esta madeira. O que é péssimo é derrubar indiscriminadamente para fazer aglomerados.

As políticas públicas devem apontar nesse sentido?

As políticas públicas já existem. Como estou dizendo essas políticas já foram criadas desde os anos 2000. O Ibama, instituição muito importante, tem mais de 3 mil fiscais. O que aconteceu agora de mau foi Bolsonaro, no início do ano, dar luz verde na base do conceito de que a única forma de gerar riqueza na Amazónia é cortar madeira e pegar fogo.

Isto quando já existia toda uma rede e toda uma bagagem de conhecimento e políticas públicas da Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - e do Ministério da Agricultura sobre sistemas agro-florestais, madeiras certificadas e aplicação da lei por parte do Ibama. Agora a actuação destes organismos tem de voltar ao normal.

Então o agro-negócio não é o vilão?

Não. Não de todo. A produtividade do agro-negócio triplicou nos últimos 30 anos dentro das áreas já atribuídas. Quando o agro-negócio se expande é em áreas de pecuária degradada, mas não na floresta. É um absurdo dizer que existe a menor condição de cortar floresta e plantar soja, nem sei como há pessoas a afirmar isso. Agora para os pequenos agricultores, os pequenos pecuaristas, os primeiros a entrar em cena é necessário ter um conjunto de políticas agro-florestais, o plantar café, cacau na sombra e isso já vinha sendo feito.

Só que em algumas regiões pode ser mais fácil a um agricultor pobre chamar um madeireiro que lhe diz "você dá-me a sua terra, eu retiro madeira de castanho, de mogno, dou-te 1500 dólares e eu desmato o resto e depois você planta". Acontece muito esta jogada, mas é fácil de resolver: aplicando a lei.

A pressão internacional vai abrandar e a questão desaparece da agenda nos próximos tempos?

Por um lado a pressão internacional vai parar um pouco porque a época das queimadas já está a terminar e este foi um momento em Agosto em que todos os anos se produzem queimadas e a questão vai desaparecer nos noticiários. Agora que o governo Bolsonaro vá mudar radicalmente de opinião sobre a Amazónia é algo em que não acredito.

Talvez haja algum tipo de atitude por causa da pressão do agro-negócio. É muito importante a posição do agro-negócio que se colocou claramente contra a desflorestação da Amazónia.

Mas então a pressão da bancada ruralista no Congresso, importante no apoio político a Bolsonaro, vai aumentar?

O problema é que a bancada ruralista representa dois sectores: os agricultores e os pecuaristas. Os pecuaristas não se importam com a desflorestação já os agricultores do agro-negócio são contra. Também é verdade que hoje em dia os pecuaristas já sabem que os produtores correm o risco de ver as suas exportações boicotadas na Europa.

Pode ser que mudem de posição, mas o que estou a ver é os pecuaristas muito tranquilos e o agro-negócio a reagir de uma forma muio enérgica contra o governo. Mas há aqui vestígios muito atávicos. Estamos num momento onde não se sabe muito bem o que vai acontecer.

Agora é de seguir o caso do acordo do Mercosul com a União Europeia até porque o provável vencedor das eleições na Argentina, Alberto Fernández, já anda a dizer que vai rejeitar o acordo por não estar nada convencido. O Brasil ficou muito dividido e o 'sim' surgiu numa última hora. Do lado europeu também há países como a Irlanda ou a França que são contra por pressões dos produtores de carne domésticos e não sei o que vai acontecer. É uma pena por ser um acordo que está a ser trabalhado há 20 anos e agora pode acabar por não sair. Vai demorar.

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