Enid Blyton foi “racista, xenófoba e homofóbica”? Talvez, mas "a personalidade não mancha o legado"

28 ago, 2019 - 16:00 • Inês Rocha

Casa da Moeda britânica recusou fazer moeda comemorativa da autora de "Noddy" e "Os Cinco" pelo facto de Blyton ter sido “racista, xenófoba e homofóbica”. Alice Vieira, autora de "O Mundo de Enid Blyton", discorda da decisão: "Os escritores deixam livros, o mau feitio vai com eles."

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A escritora britânica Enid Blyton “é conhecida como tendo sido racista, xenófoba e homofóbica e não é uma escritora muito bem vista."

Esta foi a argumentação da "Royal Mint", a Casa da Moeda Real da Grã-Bretanha, para justificar a recusa em fazer uma moeda comemorativa no 50.º aniversário da morte da autora que criou a personagem Noddy e célebres coleções de livros infanto-juvenis como “Os Cinco”, “Os Sete” e “O Colégio das Quatro Torres”.

Documentos agora tornados públicos mostram que os planos de fazer esta moeda comemorativa foram bloqueados, em dezembro de 2016, já que o comité temeu que a decisão provocasse reações adversas entre o público.

Blyton era “terrível”. Mas "os escritores deixam livros, o mau feitio vai com eles"

Alice Vieira é, provavelmente, a portuguesa que melhor conhece a vida de Enid Blyton, além dos livros.

Em 2013, Alice Vieira lançou uma biografia da escritora, “O Mundo de Enid Blyton”. Para isso, falou com a filha mais nova de Blyton, Imogen Smallwood, com fãs e com jornalistas que estudaram a vida da britânica, que sempre esteve um pouco envolta em mistério.

Blyton “dizia umas coisas numa entrevista, noutra entrevista dizia outras", conta Alice Vieira à Renascença. "De tal maneira que, quando morreu, foi muito complicado fazer a notícia porque ninguém se entendia. Uns jornais diziam umas coisas, outros diziam o seu contrário."

Nas suas investigações, Alice Vieira descobriu uma mulher “terrível”, que passou a vida inteira a escrever para crianças, mas não as suportava. A filha mais nova da escritora confidenciou mesmo à escritora portuguesa que só aos 10 anos percebeu que tinha mãe.

"Ela só tinha uma obsessão na vida, que era escreve. Se as filhas faziam um bocadinho de barulho quando ela estava a trabalhar, levavam pancada, as empregadas sabiam que ela não queria crianças ao pé dela.”

Para escrever mais de 600 livros, Enid não fazia muito além de trabalhar. “Escrevia tanto, tanto… Começava às 9h00, acabava às 18h00, 19h00, às vezes às 21h00. Escrevia sempre sentada com a máquina de escrever ao colo. Um dia, foi parar ao hospital, achavam que podia ser um ataque cardíaco, mas era do estômago, estava tantas horas dobrada sobre a máquina que até lhe fez mal”, explica Vieira.

Ainda assim, a escritora não concorda que a britânica deva deixar de receber a distinção pela sua personalidade.

“É uma coisa que desde sempre me intrigou: que a Enid Blyton tivesse tão poucos prémios, nunca foi muito premiada”, revela.

“O problema não é a Enid Blyton ser ou não ser aquelas coisas que dizem. A moeda, com certeza, não era para comemorar a Enid Blyton como pessoa. É, com certeza, para comemorar o trabalho dela como escritora”, afirma a autora da sua biografia.

Blyton “foi a introdutora de uma literatura que pode não ser grande literatur,a mas levava os miúdos à leitura. As pessoas liam os Cinco, os Sete e, depois, tinham vontade de ler mais”.

“Não me parece que se tenha de misturar isso com a pessoa que ela é. Eu não dou uma medalha, um prémio à personalidade, mas ao que a pessoa faz”, considera Alice Vieira.

“As pessoas todas com quem falei que eram leitores da Enid Blyton dizem quase todas o mesmo, foi importante, gostei muito de ler os livros... acho que isso é que as pessoas deixam, não é o mau feitio. O mau feitio vai com elas. Deixam a obra feita”.

Enid Blyton foi mesmo “racista, xenófoba e homofóbica”?

Muitos críticos apontam alguns temas e expressões racistas em alguns dos livros da escritora britânica. Exemplo disso é o livro “The Little Black Doll”, que conta a história de uma boneca negra, com uma “cara feia”, que era odiada pelo seu dono e todas as outras bonecas. A boneca foge de casa e a chuva lava a sua cara, transformando-a em cor-de-rosa. Depois disso, os outros brinquedos e o dono voltam a querer recebê-la.

Também na série “Noddy”, a escritora incluiu “Golliwogs”, bonecos negros que viviam na Cidade dos Brinquedos e eram identificados como ladrões, mentirosos e criminosos. Em 2009, estas personagens foram removidas das novas edições dos livros.

O livro “The Mystery that Never Was” foi criticado por ser xenófobo, por identificar ladrões como “estrangeiros” e essa ser a justificação para a sua criminalidade.

A palavra “nigger”, ofensiva para os negros, aparece também em algumas passagens.

As acusações de homofobia são menos claras. Há quem aponte expressões como “ela tem de aprender que nunca será tão boa como um rapaz real”, para descrever a personagem George, Zé nos livros d’Os Cinco em português, que que queria ser vista como rapaz.

No entanto, existem até rumores de que a escritora terá mantido uma relação homossexual com a ama das suas filhas, Dorothy Richards.

Alice Vieira considera que estas características não são notórias na grande maioria dos livros da escritora. “A personalidade dela não mancha o legado que ela deixou. O que ela nos deixou não foi o ser homofóbica, o mau feitio... o que nos deixou foram os livros”.

A portuguesa considera que Blyton sabia separar as coisas. “Um escritor tem a sua personalidade, há grandes escritores que foram nazis, coisas assim. A questão está em se essas ideologias se refletem na escrita deles. Quando não se reflete, o que escrevem é uma coisa e a pessoa deles é outra”, considera Alice Vieira.

Ainda assim, a escritora não nega que os livros reflitam uma sociedade em que o papel da mulher era muito diferente do atual e em que o racismo era uma realidade premente. “Temos de ver o que ela escreve à luz daquilo que era a cultura e a educação naquela altura”.

Alice Vieira vê hoje uma sociedade pouco tolerante, que aponta o dedo com muita facilidade, à luz dos valores atuais. “Acho que estamos todos a exagerar muito, devíamos acalmar um bocado”, afirma.

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  • MARIA FERNANDA
    06 set, 2022 Entroncamento 14:06
    Os livros da Enid Blyton acompanharam a minha meninice e uma boa parte da minha adolescência... Adorava aquelas aventuras, "participava" nelas... um encantamento !! À minha aldeia ia a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, e era um dia feliz procurar nas prateleiras os livros que ainda não tinha lido. Foi sem dúvida uma razão muito forte para, ainda hoje, adorar a leitura. Se preferia que a Enid tivesse sido uma mãe maravilhosa, uma mulher de eleição em que ao talento se aliassem bons sentimentos para com o seu próximo ?? É claro que sim, mas, realmente, o mau feitio levou-o com ela, ficaram as boas obras... obrigada Enid !!
  • Renan II de Pinheiro
    31 mar, 2020 Parnamirim 20:33
    Nunca li seus livros, só o conheci através de obras sobre sua vida. Nesse sentido, fiquei tão revoltado com o monstro que ela foi para a filha e seu primeiro marido que não tenho nenhuma vontade de ler seus livros.
  • Pedro Cunha
    09 set, 2019 Lisboa 21:59
    Desconheço o personagem. Mas esta influenciou a minha meninice com o gosto pela aventura e pela leitura. O mesmo aconteceu com a maioria da minha geração. Negar relembrar esta escritora é inqualificavel e de mentes muito limitadas.

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