Portugal precisa de mais quotas? O debate sobre as desigualdades ainda vai no adro

Portugal precisa de mais quotas? O debate sobre as desigualdades ainda vai no adro

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05 ago, 2019 - 07:30 • João Pedro Barros

A hipótese de se estabelecerem quotas étnico-raciais no acesso ao ensino superior fez soar campainhas. Distinguir pessoas pela cor da pele é um mal necessário, tal como as quotas de género, ou serve para aprofundar a discriminação? E quem rejeita esta ideia mostra indícios de racismo? Ouvimos vários quadrantes de uma discussão que remonta ao passado colonial.

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As quotas têm má fama em Portugal? Se é certo que a discriminação positiva para as mulheres tem vindo a ter cada vez menos opositores, a possibilidade de se estabelecerem quotas étnico-raciais, nomeadamente para o acesso ao ensino superior, criou um burburinho no espaço público e nas redes sociais. Na conversa com sociólogos, um historiador, um economista e um politólogo, as opiniões divergem mas há um diagnóstico claro: há um problema para resolver e meritocracia não é a palavra-chave nesta discussão, até porque já há discriminação positiva em vários quadrantes.

“Porque é que agora, de repente, houve este levantamento popular no espaço público por causa das quotas? É porque elas são raciais e este país é racista, como todos os países. As pessoas não querem partilhar poder e a questão é: 'mas agora vamos deixar estes tipos subir?' Estamos a oferecer uma microluz ao fundo do túnel para gerar algumas dinâmicas positivas, não igualdade”, sustenta Susana Peralta à Renascença. A economista e professora da Universidade Nova de Lisboa foi uma das participantes na última edição do programa “Em Nome da Lei”, em que se debateu o racismo. “Conto pelos dedos de uma mão os alunos luso-africanos que tive nos últimos 15 anos”, afirmou então.

Outro dos participantes da emissão foi André Ventura, fundador do partido Chega, que tem estado envolvido em declarações polémicas, nomeadamente sobre a etnia cigana. Trata-se de outro espetro da discussão: “A universidade tem um sistema centralizado de acesso. Não é um sistema por onde passem subjetividades, não é uma cafetaria. É público e monitorizado pela lei. ‘Eu sou de etnia cigana, deixe-me lá passar à frente de outros que estudaram 10, 15 ou 20 anos, porque há um problema sério de discriminação. Isto cabe na cabeça de alguém?”.

Para Maria José Casa-Nova, professora da Universidade do Minho e coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, Portugal é um país racista porque “não há nenhum país” que não o seja. “Diria mais: não há nenhum povo nem nenhuma minoria que não seja racista, temos é de ver o tipo ou o grau. Dizer o contrário é escamotear a realidade", refere a socióloga das desigualdades, que começou a fazer investigação em 1991.

Manuel Loff, historiador e professor associado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, elogia as palavras da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, num discurso proferido precisamente na apresentação de um relatório parlamentar sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal, liderado pela deputada do PS e relatora Catarina Marcelino. Van Dunem disse então que negar que há racismo em Portugal “conduz ao desastre”.

“Que eu tenha notado, foi a primeira vez em que um membro do Governo diz isto de forma muito clara. Tornou-se lugar comum negar a existência de racismo e discriminação social. Fazemos uma narrativa da nossa história e passado de que somos um caso excecional na história do mundo e nas potências coloniais. Nunca teria havido discriminação, racismo, ódio de raça, etc. Esta construção, para ser moderado, é uma pura falácia. Um estado que foi colonial necessariamente discriminou. Até 1961, nas colónias havia um estatuto de indigenato, 90% não eram cidadãos portugueses, eram nativos. Isso só foi corrigido sete meses depois de iniciado a guerra colonial.”

Já há quotas “há muitos anos”

As quotas voltaram à ordem do dia, por via étnico-racial, nas últimas semanas, primeiro com a discussão sobre os programas eleitorais dos vários partidos, nomeadamente o PS, depois com a publicação de um polémico artigo de opinião da historiadora Maria Fátima Bonifácio no “Público”. Por isso, talvez importe voltar ao início: as quotas são uma novidade em Portugal? A resposta é simples: não são, a começar pelo exemplo das quotas das mulheres (já lá vamos). É por esta razão que Manuel Loff olha com estranheza para quem fala em “exceções” a propósito da proposta de adotar quotas étnico-raciais.

“Já aceitamos legalmente, há muitos anos, fazer discriminação positiva. Já estão criados precedentes há muito tempo”, sublinha, em entrevista à Renascença. E acrescenta ainda mais exemplos: “Em parte, aceita-se por via fiscal e até no emprego, para aquelas pessoas que têm necessidades educativas especiais e até deficientes. Aceitamos em todos as sociedades formas de discriminação positiva que uma parte da sociedade, porventura hoje a maior parte da sociedade em Portugal, não aceita ainda para outras formas”.

Rui Pena Pires, sociólogo e membro da Comissão permanente do PS, lembra as quotas para alunos oriundos dos Açores e Madeira – “definidas num tempo em que estas regiões não tinham ainda universidade mas que se mantiveram até hoje” –, alunos da emigração, emigrados e filhos de pais emigrados e pessoas com deficiência.

Um relatório elaborado por um grupo de trabalho nomeado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior estimou que 28% dos alunos que ingressaram em universidades portuguesas no passado ano letivo o fizeram através de concursos especiais, destinados, por exemplo, a candidatos com mais de 23 anos, com diploma de especialização técnica ou internacionais.

O caso das mulheres

A introdução de quotas para a igualdade de género começou por ser vista com muita desconfiança, quer dos decisores políticos quer da opinião pública. Com o passar dos anos, é inegável que a maior parte dos observadores olha para a adoção em Portugal desta medida como um sucesso.

Foi em 2006 que foi aprovada a chamada Lei da Paridade, que vinculava uma representação de pelo menos 33% de ambos os sexos nas listas eleitorais para a Assembleia da República, Parlamento Europeu e autarquias. Em fevereiro, a percentagem foi atualizada para 40% de cada género, já com um maior consenso político e votos favoráveis da generalidade das bancadas do PS, PSD, Bloco de Esquerda (BE) e PAN. Apesar de tal exigência não ter sido aplicada nas eleições europeias de Maio, o resultado foi uma quase paridade: dos 21 eurodeputados portugueses, 10 são mulheres (48%).

Desde janeiro de 2018, também as empresas do setor empresarial do Estado e local e as empresas cotadas em bolsa estão obrigadas a cumprir uma quota do género menos representado nos conselhos de administração e nos órgãos de fiscalização. O mínimo estipulado é de 33,3% para as empresas estatais, uma fasquia que também será aplicada às sociedades em bolsa a partir de 2020.

“O problema é que as mulheres, por processos que vieram do passado, estavam fora. Não é automaticamente que passam a estar dentro. Para isso é preciso usar quotas”, explica Rui Pena Pires. Para a economista Susana Peralta, a palavra-chave é mesmo “poder”. “Sei que, à partida, os meus filhos – e tenho três – vão ser pessoas bastante privilegiadas neste mundo em que os estou a fazer crescer. É um mecanismo quase de sobrevivência as pessoas agarrarem-se a esse poder e não o quererem partilhar”, completa.

"Uma mulher não pode ser quadro superior de uma empresa porque vai ter de ir buscar os filhos"

Maria José Casa-Nova lembra que um dos argumentos usados contra as quotas raciais era um dos principais itens apontados para afastar também as quotas das mulheres. “As pessoas não estão suficientemente preparadas e ao integrar o mercado de trabalho vão enfraquecer as empresas, que tem de ser competitivas. Uma mulher não pode ser quadro superior de uma empresa porque vai ter de ir buscar os filhos e, quando eles estiverem doentes, é ela que vai ter de tratar deles”, aponta.

A socióloga lembra mesmo um episódio que lhe foi contado: numa reunião que se prolongava, uma mulher hesitava em pedir para sair mais cedo para ir buscar o filho ao infantário. O colega do lado sugeriu-lhe que dissesse que ia buscar o carro à oficina. “Assim, ia ser olhada como um homem. Isto diz tudo do ponto de vista da estruturação mental, que é difícil de mudar. Por isso é que é fundamental a naturalização das diferenças nas mesmas esferas do social para que se comece a perceber que todos têm de facto capacidades. Não é por falta de mérito que não estão lá, mas sim por falta de oportunidades de chegar lá”, sublinha.

O facto de dois partidos – BE e CDS – terem à sua frente mulheres – Catarina Martins e Assunção Cristas – certamente contribuiu para uma normalização desse papel. Assim como, nas grandes empresas, os nomes de Paula Amorim, presidente da Galp, e Cláudia de Azevedo, presidente executiva da Sonae, tiveram a mesma importância.

“Desde finais dos anos 70, inícios dos anos 80 que a maioria dos licenciados em Portugal são mulheres, mas essa maioria qualificada, a quem mais mérito se reconhece – pela via escolar, pelo menos – não dirige a grande maioria das empresas nem está nos postos mais importantes da administração pública”, acentua Manuel Loff.

Alexandre Homem Cristo, politólogo, comentador e antigo membro do Conselho Nacional de Educação (entre 2013 e 2015), considera-se “por princípio” contra as quotas, mas dá o braço a torcer. “Estávamos a discriminar metade da população. Aí a quota teve um efeito positivo, por mais que se gostasse ou não. Dou-me por vencido, os resultados que obteve são esclarecedores sobre a sua eficácia. Se me perguntar se é uma solução duradoura, eu espero que sejam sempre solução transitória. No caso das mulheres, presumo que se daqui a cinco ou dez anos desaparecem a prática atual se mantenha”, esclarece.

Discriminar etnias ou territórios?

Já sobre as quotas étnico-raciais, o politólogo mantém uma oposição clara. “O problema tem a ver com pobreza e não com cor de pele. Mesmo que houvesse vontade do legislador, seria impraticável fazê-la em função da origem étnica de um candidato ao ensino superior. Não cabe na cabeça de ninguém dizer que uma pessoa é demasiado branca para poder preencher uma quota. Não sei quem iria avaliar isso”, argumenta.

Para Homem Cristo, este caso é em todo diferente das quotas para o sexo feminino, porque aí há uma “seleção de pessoas por pessoas”. Já o acesso ao ensino superior é um sistema “cego”, em que há outras quotas, mas que são “discriminações objetivas” e não de “identidade que diria genética”. Pode até haver contextos em que “faça sentido” quotas para debelar sub-representações sociais, admite, “como o mercado de trabalho”, mas neste caso há uma “impossibilidade administrativa”.

Para a ultrapassar, ou para mitigar efeitos negativos da discriminação positiva de uma etnia, Rui Pena Pires propõe, em entrevista à Renascença, quotas “de base territorial, definidas em função da desigualdade sócio-económica”, o que também “teria sobre efeitos sobre pessoas oriundas de minorias étnico-raciais”. Ou seja, os alunos de escolas e/ou regiões com problemas sociais e de integração poderiam ser favorecidas.

Homem Cristo reage: “Já reparou que ninguém propõe quotas? As pessoas como o Rui Pena Pires, que se têm dedicado a este tema, quando dão o salto de fazer uma proposta dificilmente o conseguem fazer com base na cor da pele. É verdade que as pessoas não partem todas da mesma linha. Há umas que partem com desvantagem, mas essa desvantagem não é a cor de pele, é o seu perfil socioeconómico”.

"Olhamos para o Parlamento e temos um afro-descendente e pouquíssimas pessoas não brancas, na universidade há uma enorme subrepresentação, no hospital raramente sou atendido por um médio afrodescendente"

O programa eleitoral do PS, que teve o dedo de Pena Pires, não refere medidas concretas. “Promover processos de discriminação positiva” e “combater a segregação, direta e indireta, das crianças afrodescendentes e das crianças ciganas dentro do sistema educativo” são objetivos. Já quanto à Assembleia da República, o relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal, cuja versão preliminar viu a luz do dia em julho, inclui uma proposta um pouco mais concreta: “desenvolver um estudo sobre a integração de jovens afrodescendentes e ciganos no Ensino Universitário, com vista a avaliar possibilidades de integração de medidas de ação positiva”.

Susana Peralta vê-se como uma “pragmática” e, por isso, diz não entender a resistência a quotas étnico-raciais. “As pessoas como eu, que acreditam pouco na meritocracia – seja ou não a versão malévola de dizer que é tudo cunhas e amiguismos –, ficam perplexas quando ouvem dizer que não vamos lá por quotas, que vai lá tudo pelo mérito. Olhamos para o Parlamento e temos um afro-descendente e pouquíssimas pessoas não brancas, na universidade há uma enorme subrepresentação, no hospital raramente sou atendido por um médio afrodescendente. É porque têm falta de mérito? Isso é esquisito, é voltar a uma conceção da raça e da etnia do tempo da colonização. Quer dizer que essas pessoas são mais burras”, ironiza.

Na visão de Maria José Casa-Nova, o problema está a montante da universidade - ou seja, está “no 'funil' dos ensinos básico e secundário, ao canalizar muitos destes jovens para vias escolares alternativas ao currículo padrão, privando-os do acesso ao currículo 'mainstream'" -, mas a criação de quotas poderia ajudar a repor “um pouco de justiça social”: “Não estamos a falar de benesses. É a mesma coisa quando se fala de beneficiários do Rendimento Social de Inserção. Não é nenhum benefício, não há aqui nenhuma generosidade, o que aliás tem uma enorme dose de paternalismo, porque quem é generoso está num plano de superioridade”.

A professora da Universidade do Minho tem um longo trabalho realizado com a comunidade cigana e defende que haveria uma forte componente exemplar numa medida deste género. “Diziam-me frequentemente: ‘a escola não é para nós, porque nós sozinhos não conseguimos. Um pai cigano dizia-me uma frase extraordinária, há uns 10 anos: ‘o cigano é rei porque não tem patrão, mas não tem futuro porque não tem escola’. É a fatalidade. Quando começaram a ver os primeiros jovens a entrar na universidade dizem: ‘afinal isto também é para nós, também podemos’”.

As quotas são impossíveis por não se perguntar a etnia no Censos?

Chegados a este ponto da discussão, importa perguntar se há ou não a tal “impossibilidade administrativa” que alega Alexandre Homem Cristo. A quem se aplicariam estas quotas étnico-raciais. Que custo teriam economicamente e/ou em termos de redução das vagas ditas normais de entrada na universidade? Que etnias vivem em Portugal e como estão espalhadas no território?

Ao primeiro passo possível, parece haver logo uma porta fechada. O Instituto Nacional de Estatística decidiu que os Censos 2021 não vão incluir nenhuma pergunta sobre a origem étnico-racial dos cidadãos, como pretendia a maioria dos membros do grupo de trabalho criado pelo Governo para avaliar a questão. A decisão foi tomada em junho, de acordo com um entendimento do Conselho Superior de Estatística.

Rui Pena Pires foi um dos integrantes do grupo de trabalho e a sua opinião foi negativa. Mesmo que se percam dados, assume, “as categorias étnico-raciais só foram inventadas para discriminar”. “Defendi que não se devia colocar essa pergunta e que se coloquem ainda menos. A pergunta da religião já devia ter desaparecido há muito do censo. É verdade que perdemos alguma informação, mas ter toda a informação reunida e compilada pelo Estado para poder agir é o princípio do totalitarismo, não de uma sociedade democrática”, justificou. Marcelo Rebelo de Sousa também alinhou pelo mesma princípio e considerou que foi uma opção “sensata”.

Está longe de ser uma opinião unânime: Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa e comentador da Renascença, declarou-se surpreendido com a decisão. Noutro espetro político, André Ventura, do Chega, pronunciou-se favoravelmente. No entanto será entre os académicos que a discussão é mais acesa: Manuel Loff, historiador já com muitos textos e reflexão produzida sobre questões étnicas e de migrações, considera “muito pouco honesto” que um “princípio constitucional liberal que vem do século XVIII” impeça as pessoas de se descreverem como sendo membros ou não de uma minoria.

“Os Censos perguntam se somos homens ou mulheres, é básico para qualquer demógrafo. Há muitos anos também pergunta se as pessoas são religiosas. Porque é que uma pergunta sobre o sexo e a religião não contradiz a constituição mas perguntar se sou afro-descente diz? Deveríamos saber, para um debate aberto, transparente e sustentado em dados objetivos, se há, e em que medida, discriminação de origem étnica em Portugal. Em minha opinião, a argumentação contra é completamente vazia.”

Na visão de Manuel Loff, a falta de dados origina um eterno impasse. “Sempre que chegamos a esta discussão, um cientista social ou um dirigente de uma das associações preocupadas com isto vem dizer que não temos a certeza, que não pode ser provado”, lamenta. Para Pena Pires, há alternativas, como a realização de inquéritos: “A meu ver, tudo o que reforce as categorias étnico-raciais, em vez de as enfraquecer, deve ser posto de lado”.

Alexandre Homem Cristo, apesar de ser contra quotas étnico-raciais, considera fundamental que se obtenha uma radiografia da sociedade portuguesa. “É esse o instrumento que vai fazer a caraterização da população portuguesa, dizer onde está a população que se identifica com a etnia A, B ou C e quais os desafios. A partir daí poderíamos compreender o que estão a enfrentar e ajudá-los”, resume.

Susana Peralta também tem frisado no espaço público a necessidade de recolher os dados. “O que está por verificar, em parte porque não nos deixam recolher dados, é se há ou não desproporção de afrodescendentes nas populações pobres. Tem de haver alguma coisa na maneira como a nossa sociedade interpreta a cor da pele e interage com estas pessoas. Não sei como lá vamos ignorando isto”, queixa-se.

Os casos americano e brasileiro

Que exemplos há no estrangeiro de quotas étnico-raciais? E que sucesso tiveram? Os dois exemplos “clássicos”, diz Manuel Loff, vêm dos Estados Unidos e do Brasil. No primeiro caso, trata-se de uma “discussão dos anos 60”, relacionada com a “affirmative action” (ou ação afirmativa), dentro “do contexto da luta pelos direitos cívicos”. “Várias universidades reservam um número mínimo de lugares para representação de minorias étnicas”, explica. No Brasil, estas medidas só se iniciaram nos mandados de Lula da Silva como presidente (entre 2003 e 2011).

“Há contextos históricos específicos, mas são os dois maiores estados das Américas, herdeiros, para bem e mal, de séculos de escravatura. A discriminação por motivos raciais tem aqui um significado mais duro do que noutras regiões do globo. Foi invocando essa herança que a ação afirmativa acabou por vingar do ponto de vista legal”, reconhece.

Nos Estados Unidos, estas medidas “abriram caminho à democratização do acesso ao ensino superior” e, consequentemente, do mercado laboral. “Há uma melhoria muito consistente, nas últimas duas ou três gerações, do nível de rendimentos pelo menos de uma parte da minoria afro-americana e, mais tardiamente, dos chamados latinos ou americanos de origem latino-americana”, relata.

"Aumentou significativamente a proporção de alunos afrobrasileiros e indígenas dentro do ensino superior. Isso é particularmente notório em estados como São Paulo"

Quanto à popularidade destas medidas, entre os afro-americanos, latinos e outras minorias há uma taxa de aprovação “superior a três quartos”. Entre os brancos (ou caucasianos, como é comum definir nos EUA) há uma divisão quase perfeita de opiniões. “É uma clivagem esquerda-direita. Os eleitores democratas são claramente favoráveis e os republicanos claramente desfavoráveis”, nota Manuel Loff.

No Brasil, há muito menos tempo de aplicação da lei para analisar e o historiador ressalva que a discriminação étnico-racial positiva veio acompanhada de outra medida: uma percentagem das vagas de entrada nas universidades passaram a ser destinadas ao ensino público, que a “classe média e alta praticamente não utilizam”. “No início do século XXI, nas universidades mais prestigiadas, as federais, uma imensa maioria concluía o ensino médio num colégio privado. Isso, de resto, também sucede em Portugal nos cursos de média mais elevada, em que há uma seleção social e de rendimento muito evidente”, afirma.

O que sabemos então, passados 10 anos da aplicação destas medidas? “Aumentou significativamente a proporção de alunos afrobrasileiros e indígenas dentro do ensino superior. Isso é particularmente notório em estados como São Paulo, onde a proporção de afro-brasileiros é francamente inferior à do Rio de Janeiro e sobretudo à dos estados do nordeste. Entrar na universidade de São Paulo sempre foi especialmente difícil para jovens oriundos do ensino público e da minoria afro-brasileira.”

O historiador admite que Portugal “tem sido uma relativa exceção à escala do conjunto do ocidente”, onde a sensibilidade para questões de discriminação racial “é particularmente baixa”, nomeadamente tendo em linha de conta casos como os de Inglaterra, Espanha, França e Reino Unido. Por isso, os resultados obtidos do outro lado do Atlântico podem não ser barómetros adequados para realidades tão distintas.

Ainda assim, Manuel Loff não deixa de referir que, na sua opinião, “é preciso aplicar a mesma lógica” das quotas femininas às minorias étnicas, que “no caso português têm sido claramente invisibilizadas”: “Toda a discriminação positiva é para corrigir formas de desigualdade objetiva. Nunca são formas de discriminação na lei, são objetivas nas relações sociais. Qualquer constituição dos nossos dias dirá que é inaceitável a discriminação negativa em razão de sexo, raça ou religião. O problema é que as constituições não asseguram a efetiva igualdade de oportunidades”, teoriza.

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