Incêndio em Monchique
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Incêndio em Monchique Um ano depois do incêndio, a vida não voltou à Serra de Monchique Um ano depois do incêndio, a vida não voltou à Serra de Monchique Um ano depois do incêndio, a vida não voltou à Serra de Monchique

Um ano depois do maior fogo da Europa, os moradores não escondem o desespero face ao atraso na implementação dos apoios públicos e os produtores têm receio de renovar o investimento.

Joana Bourgard e Joana Gonçalves
 
 

Em Monchique há ainda pessoas desalojadas, nenhuma casa foi reconstruída, os apoios agrícolas tardam em chegar e o presidente da câmara municipal descarta responsabilidades. Em 2018 arderam mais de 27 mil hectares de terreno, num incêndio que lavrou durante sete dias. Um ano depois do maior fogo da Europa, os moradores não escondem o desespero face ao atraso na implementação dos apoios públicos e os produtores têm receio de renovar o investimento.

 
 
 
 

Numa rua sem nome junto à estrada velha é fácil reconhecer a nova casa de Evelyne Regnault, uma artesã que aos 70 anos contraria a expectativa de quem sabe o tormento por que passou em agosto de 2018.

O nome denuncia a origem francesa da mulher que, “inspirada na revolução pacífica de 1974”, rumou a Portugal, dois anos mais tarde. Como em Lisboa, no histórico 25 de abril, também aqui as flores que vemos junto à entrada cumprem muito mais que um mero propósito decorativo. Simbolizam a resiliência de quem se recusa a cruzar os braços e insiste em procurar ânimo onde mais ninguém o vê.

Foi o que fez em 1976, quando decidiu dizer adeus a um trabalho das nove às cinco, numa empresa de telecomunicações, e comprar uma autocaravana.

Percorreu Portugal de lés a lés, numa viagem com início na antiga estação fronteiriça de São Gregório, em Cristóval, a freguesia mais a norte do território nacional.

“Ainda hoje me lembro. Quando cheguei aqui fiquei encantada com as pessoas, com a vida, com tudo. Parecia um jardim. Portugal parecia mesmo um jardim”, conta com evidente emoção na voz. “Pensei, «não quero voltar a França»”, acrescenta.

Foi a vida algarvia, “em tempo de burros” e “muita infelicidade”, que conquistou a jovem francesa, na época com 27 anos. Hoje, a serra que lhe serviu de inspiração durante mais de três décadas e meia perdeu a cor e a janela junto à qual recorta os tecidos, que compõem cada peça vendida, apresenta um quadro bem diferente daquele a que se habituou.

Entre os dias 3 e 10 de agosto de 2018 arderam mais de 27 mil hectares na região de Monchique. O maior incêndio da Europa naquele ano destruiu 74 habitações. Evelyne faz parte das estatísticas e, também ela, perdeu a casa. É um dos cinco proprietários cuja candidatura não é elegível ao programa de apoio público, Porta de Entrada, por ter adquirido um seguro.

O valor da indemnização atribuído pela seguradora está fixado nos 72 mil euros, porém, o preço médio de uma habitação com três assoalhadas na Serra de Monchique ultrapassa os 150 mil euros e a grande maioria das casas apresenta necessidade de investimento em reabilitação.

“Neste momento eu estou um bocadinho perdida. A minha vida tomou um rumo que eu não estava à espera. Eu não sei como hei de continuar”, desabafa.

 
Evelyn vai todos os dias regar as flores que crescem espontaneamente no terreno onde antes estava a sua casa.
Evelyn vai todos os dias regar as flores que crescem espontaneamente no terreno onde antes estava a sua casa.
 

Barranco dos Pisões é o nome da localidade onde se instalou há mais de 35 anos. Depois do fogo, que só poupou o pavimento, foram necessários 11 meses para que a artesã regressasse ao lugar de onde nunca quis sair.

À semelhança da imprevisibilidade de uma catástrofe natural, também a resposta de Evelyne ao cenário que encontrou foi inesperada. “Eu pensei francamente que nunca ia voltar, mas por causa daquelas flores.... É incrível não é? Como uma coisa tão pequenina provoca uma reação positiva. Uma flor”, explica.

A vontade de colorir um terreno agora deserto é motivação para esta mulher, que aos 70 anos enfrenta um outro obstáculo, agravante da condição em que vive. Evelyne sofre de parkinson, uma doença que afeta cerca de 20 mil portugueses, resultante da morte de 70 a 80% das células cerebrais responsáveis pela produção de dopamina.

Num discurso que alterna entre notável desânimo e improvável alento, a conclusão não tarda em chegar. “Mesmo com o que aconteceu no ano passado e os problemas todos que eu tenho, eu voltava a ficar aqui. É uma vida agradável afinal de contas”, conclui.

Como Evelyne, também João Furtado e António integram as estatísticas do incêndio de 2018. Três histórias diferentes, um dificuldade em comum.

“Não é a câmara que tem de arranjar as casas às pessoas”

 
 

João Furtado trabalha com cabedal, faz cintos, malas e sapatos. Em 2018 perdeu tudo. Vivia numa casa alugada na Serra de Monchique, onde mantinha uma oficina. As chamas consumiram todo o edifício, sobraram apenas as paredes.

Artesão há mais de 40 anos, restabeleceu um ateliê improvisado, ainda antes de ter assegurado uma casa. Poucos dias depois do incêndio arregaçou as mangas e retomou o ofício na rua Engenheiro Duarte Pacheco, no centro da vila de Monchique.

No mesmo mês, em agosto de 2018, alugou uma casa sem apoios públicos. Depois de concorrer ao programa Porta Aberta, gerido pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), recebeu um parecer negativo. A habitação onde estava não cumpria as normas de elegibilidade necessárias à aprovação da candidatura. Reiniciou, então, todo o processo, em dezembro do mesmo ano.

João não é caso único. Das 51 candidaturas ao apoio público do IHRU, 16 foram excluídas e 21 estão ainda num impasse. Um ano depois do incêndio não há uma única casa reconstruída e apenas uma habitação iniciou o processo de reabilitação.

 
João Furtado, artesão há 40 anos, é um dos desalojados do incêndio de 2018.
João Furtado, artesão há 40 anos, é um dos desalojados do incêndio de 2018.
 

Entres as casas excluídas, seis “não apresentaram os documentos solicitados”, quatro não garantiram as condições de elegibilidade por se tratarem de segundas habitações, cinco tinham seguro e uma não é elegível por morte da proprietária.

A estes casos somam-se, ainda, dez processos que permanecem em fase de instrução, cinco que aguardam um acordo, coordenado pela câmara municipal, com uma empresa responsável pela apresentação dos projetos, e seis situações em que os arrendatários não concordam com as regras propostas pelo IHRU.

“Estas seis situações são as que apresentam maior problema para mim e são aquelas que exigem um trabalho mais próximo com o Governo. Isto implicará, certamente, uma alteração das regras do jogo, portanto desta portaria”, adianta à Renascença Rui André, presidente da Câmara de Monchique.

O autarca algarvio garante que “os casos arrendatários estão todos resolvidos, as pessoas já estão a viver noutras casas alugadas pagas através deste programa [Porta de Entrada]“.

 
Rui André, presidente da Câmara de Monchique.
Rui André, presidente da Câmara de Monchique.
 

João Furtado integra este universo. Agora vive numa casa na rua da Estrada Velha, perto do centro da vila, a 15 minutos da Artesanato Monchique Crafts, a loja da N’ArteCicus, Associação Profissional dos Artesãos e Artistas Plásticos de Monchique, onde expõe para venda grande parte do seu trabalho. Desde janeiro que recebe um apoio de arrendamento na ordem dos 90%.

António não tem a mesma sorte. Em 2018 sobreviveu ao segundo grande incêndio que destruiu por completo a casa onde vivia há mais de 70 anos. Depois do processo de reabilitação, em 2003, aguarda agora o apoio do Governo para avançar com a reconstrução.

Em agosto do ano passado, António fez um pedido humilde: “só queria um telhado até ao Natal”. Um ano depois “está tudo igual”.

“É difícil de aceitar que uma pessoa que tem uma casa parcialmente destruída, com uma solução de baixo investimento, enfrente um processo de resolução tão demorado”, critica o presidente da junta de Alferce, a freguesia mais afetada pelo incêndio de 2018.

Em resposta, o autarca Rui André adianta que “a morosidade dos processos tem, essencialmente, a ver com estas duas questões: uma, não haver empreiteiros para fazer as obras. E outra, os processos terem obviamente e necessariamente de passar por uma fase administrativa de apresentação de projetos de arquitectura e especialidades, porque eu não vou permitir que sejam reconstruídas casas sem projetos, de forma alguma”.

“Aqui são as próprias pessoas que recuperam [as casas], a câmara é só um intermediário entre as pessoas e o Governo. Não é a câmara que está atrasada, nem é o Governo que está atrasado. As pessoas é que têm de trazer os documentos e fazer os processos. Não é a câmara que tem de arranjar a casa às pessoas", acrescenta o presidente da Câmara de Monchique, que descarta qualquer responsabilidade pelo atraso no processo de reabilitação das habitações afetadas.

 
Casa de António. Um ano depois, nada mudou.
Casa de António. Um ano depois, nada mudou.
 

António recusou o apoio ao arrendamento do IHRU. Aos 72 anos, não quer abandonar a casa onde nasceu e de onde nunca saiu. Vive, há um ano, num anexo que resistiu às chamas. Num colchão no chão, sem pavimento, teme não voltar a ver a casa reconstruída.

Um receio validado por Rui André, que aponta como prazo de resolução de todos os processos o verão de 2020. “Eu penso que será necessário talvez mais um ano para que as coisas fiquem resolvidas”, afirma.

O humilde pedido de António foi, mais uma vez, rejeitado. Pelo segundo inverno consecutivo, o último habitante de Barranco Fundo terá de resistir ao vento e às baixas temperaturas num edifício construído para armazenar ferramentas.

“Antes tínhamos um pulmão, agora temos um deserto”

Por caminhos íngremes, de terra batida, João Dimas visita os apiários que mantém distribuídos pela Serra de Monchique.

No incêndio de 2018, o jovem apicultor de 35 anos perdeu mais de 370 colónias, um prejuízo sobre o qual não receberá qualquer apoio público. Em média, neste negócio familiar, produz por ano entre 15 a 20 toneladas de mel. No ano passado o total de produção não ultrapassou os quatro mil quilos.

Ao contrário do que se verificou em 2003 - quando a serra foi atingida por outro grande incêndio -, os apoios agrícolas referentes ao fogo de 2018, ao abrigo do Programa de Desenvolvimento Rural 2014-2020 (PDR), não cobrem os prejuízos, mas recaem antes sobre o reinvestimento. Uma opção que não agrada os produtores locais.

“Devido às perdas de mel e à ausência de faturação, tive dificuldades em concluir o projeto, porque é um grande investimento e não tenho capacidade financeira para desenvolver, o mais rápido possível, a candidatura”, explica João Dimas.

 
João Dimas perdeu mais de 370 colónias de colmeias. Por ano, produz entre 15 a 20 toneladas de mel. No ano passado, não ultrapassou os quatro mil quilos.
João Dimas perdeu mais de 370 colónias de colmeias. Por ano, produz entre 15 a 20 toneladas de mel. No ano passado, não ultrapassou os quatro mil quilos.
 

Para José Gonçalves, presidente da junta de freguesia do Alferce, “isto é o mesmo que dizer que alguém que trabalhou a vida toda e colocou o dinheiro no banco, um dia vai lá e não tem nada porque alguém o levou. A nós aconteceu-nos a mesma coisa. Investimos tudo o que tínhamos num futuro rendimento. Veio um incêndio e levou-nos o dinheiro todo”.

“A única diferença é que em vez de depositarmos o dinheiro todo no banco, depositamo-lo na floresta e, de um dia para o outro, tudo desapareceu”, esclarece.

João e José garantem que a vontade de recuperar as produções perdidas é enorme, mas o atraso nos processos “prolonga o sofrimento” e reduz o ânimo.

No dia 22 de agosto de 2018, o ministro da Agricultura, Capoula Santos, anunciou um programa de apoio aos agricultores afectados pelo incêndio de Monchique, no valor de cinco milhões de euros. O financiamento deveria começar a chegar aos proprietários no início de novembro.

De acordo com Aurélio Cavaco, responsável pelo apoio a cerca de 150 candidaturas, num universo de quase 280, apenas dois produtores receberam o valor total acordado com o PDR. O excesso de burocracia é apontado como principal obstáculo, num processo que enfrentou, por duas vezes, um adiamento do prazo de apresentação de candidaturas.

Contrariando a convicção dos produtores, o autarca de Monchique adianta que a solução adotada este ano é “melhor” e “mais interessante”.

“Em relação aos apoios agrícolas, comparando com 2003, o que acontece foi que as pessoas foram ressarcidas de um prejuízo que disseram que tiveram e não houve uma garantia de que elas tivessem investido. O que aconteceu em 2003? Praticamente ninguém investiu esse dinheiro”, garante.

“Acho que estes processos são muito mais rigorosos e interessantes”, defende.

A dificuldade no acesso aos apoios agrícolas, acrescida de um atraso na recuperação das casas parcial ou totalmente destruídas pelo fogo, traduz-se num grande abandono de terrenos algarvios. Um fator que representa, igualmente, um obstáculo à prevenção e combate eficaz de incêndios.

Em 50 anos, entre 1960 e 2010, Monchique registou um decréscimo populacional na ordem dos 60%. Onde antes o número de pessoas em idade ativa era seis vezes superior ao número de idosos, agora o envelhecimento populacional faz-se notar a um ritmo preocupante. Por cada idoso, há um jovem em idade ativa, o segundo valor mais baixo na região do Algarve.

João Dimas contraria esta tendência e queixa-se da ausência de incentivos à fixação das gerações mais jovens. Hoje o cenário que encontra é convidativo à partida para Portimão, ou outra cidade que ofereça melhores opções no acesso à saúde e educação. “Onde tínhamos um pulmão, agora temos um deserto”, desabafa.

“A paixão pela apicultura”, as flores que nascem sobre chão queimado e as lembranças de uma vida fixadas num só lugar são a motivação de cada um destes sobreviventes. Resiliência é a palavra de ordem em todas estas histórias, mas como elas tantas outras terminaram de forma bem diferente, longe da verde paisagem de Monchique.

 

Agosto de 2019 – © Renascença

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