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Prémio Gulbenkian 2019

Amin Maalouf. "A Europa tem o dever de definir um novo contrato da vida em comum​"

19 jul, 2019 - 14:54 • Maria João Costa

Nasceu no Líbano, mas vive em França há mais de 40 anos. A Renascença falou com o escritor e antigo jornalista que venceu o Prémio Calouste Gulbenkian 2019, no valor de 100 mil euros.

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Gosta da palavra "lucidez", considera-a um caminho para a sabedoria, o "início" dessa sabedoria. Aos 70 anos, o escritor e antigo jornalista Amin Maalouf foi galardoado com o Prémio Gulbenkian deste ano.

O autor de origem libanesa que vive há mais de 40 anos em França e é, nas palavras do júri, “um construtor de pontes”. Cristão nascido no seio da cultura árabe, Maalouf conversou com a Renascença antes de receber o prémio.

Num tom de voz profundo e muito calmo, explica as suas preocupações com temáticas como a vida em comum, o racismo e o ambiente, sobre o qual refere a necessidade urgente de uma solidariedade global. Sobre os escritores, defende que têm uma missão no mundo.

O júri do Prémio Gulbenkian fala de si como um “construtor de pontes”. Para si, o que significa isto?

Eu sei, efetivamente, o que é construir pontes. Digo isto porque partilho dois mundos diferentes. Por um lado, nasci na região do Levante, no Líbano, no mundo árabe e depois vim instalar-me em França, na Europa, há já 40 anos. Considero que são dois mundos que têm relações complicadas e penso que há um dever por parte das pessoas que têm ligações entre estes dois mundos de tentarem manter as relações, de compreender o que se passa. É o que eu tento fazer. Construir pontes no mundo de hoje é difícil, mas é mais necessário do que nunca.

Porquê?

Porque o mundo está a portar-se mal. Há muitas interrogações sobre o andamento do mundo, há muitas tensões identitárias, porque estamos num mundo onde não há uma verdadeira ordem mundial. Há poucas pessoas com verdadeira credibilidade moral. É um mundo que está muito perdido. Acho mesmo que o mundo inteiro hoje está desorientado.

O júri do Prémio Gulbenkian sublinha também a sua voz preocupada em encontrar “o caminho das reformas necessárias para construir um mundo em paz”. Mas hoje a paz não é um valor que todos tenham em conta, sobretudo neste confronto entre a cultura ocidental e árabe.

Acho que nós temos a necessidade de construir de acordo com o espírito daquilo a que chamamos uma cultura de paz. Os conflitos estão no espírito das pessoas e conduzem a comportamentos violentos. Acho que temos de tentar e é esse o papel dos escritores. O primeiro papel dos escritores é debater dentro do espírito dos seus contemporâneos, o espírito da paz, porque as pessoas, como disse, não consideram o conflito inevitável.

"Construir pontes no mundo de hoje é difícil, mas mais importante do que nunca"

Acho mesmo que estamos todos embarcados na mesma aventura, mesmo aqueles que não veem as coisas assim. Estamos todos dentro desta aventura humana e neste mesmo planeta, com o qual também não nos estamos a portar bem. Creio mesmo que temos todo o interesse em construir um mundo onde possamos viver em paz, dignidade e serenidade. Todos ficamos a perder com um mundo fraturado, em turbulência permanente.

No seu livro “Le Naufrage des Civilizations” fala justamente da necessidade de “viver juntos”. Sei que é também um escritor preocupado com as questões ambientais e com o futuro do planeta. A casa comum está ameaçada. Mas o ambiente não é o único sob ameaça.

Para mim, a questão do “viver juntos” é uma das grandes questões, é crucial hoje em dia. Nunca foi fácil fazer pessoas diferentes viverem juntas. Exige habilidade, vontade e paciência. Estamos num mundo onde há tensões reais. É necessário um grande esforço para que as pessoas possam viver juntas, mas não acho que isso deva ser olhado de forma separada da questão ambiental.

O problema do ambiente é que nós não conseguimos uma solidariedade global para resolver a questão, mesmo que todos saibamos que há esse problema e que temos de o resolver. Essa incapacidade de gerarmos uma verdadeira solidariedade é um pouco como o problema de não conseguirmos viver juntos.

Há no mundo um défice de compreensão pelo outro, temos necessidade de construir outra relação entre nós. Cada um tem a sua origem, cultura, religião, mas isso não pode dizer que não façamos este combate. Podemos desenvolver uma sociedade em que pessoas de diferentes crenças, cores e preferências podem viver em conjunto, em paz. Não é impossível, mas exige verdadeiramente que nos ocupemos disso de forma séria. Não podemos deixar passar o tempo. Com o tempo as coisas podem deteriorar-se.

A Europa política tem responsabilidade nessa construção. Acha que está a desempenhar esse papel?

Acho que a Europa está mais bem preparada que o resto do mundo. As pessoas na Europa têm consciência dos problemas, têm uma visão do que é preciso construir. Penso que a Europa é uma região que deve dar o exemplo, que deve formar um modelo de vida em comum para os países da União Europeia, para a sua população, mas também para aqueles que vêm de fora. Acho que a Europa é a região do mundo onde temos possibilidade de debater um modelo para o mundo inteiro.

E como vê a situação no mar Mediterrâneo e a situação dos refugiados?

Há problemas que não dependem da Europa. O facto de haver pessoas que deixam os seus países em situação difícil, precária, só depende de cada um dos países de onde vêm. A Europa não pode negar esse problema. Julgo que a comunidade internacional pode ajudar a regular esse problema, ou seja, a comunidade internacional, incluindo a Europa, pode ajudar a resolver o problema, mas há questões que não estão nas nossas mãos resolver.

"Estamos todos dentro desta aventura humana e neste mesmo planeta, com o qual também não nos estamos a portar bem"

É na verdade um desafio. Mas não é um desafio inultrapassável. Considero que a Europa tem o dever de definir uma espécie de novo contrato da vida em comum. Não podemos deixar as coisas derivar em conflito e tensão perpétua. Quem chega à Europa tem de saber os seus direitos e deveres para que conheça o contexto da vida em comum. Não é uma coisa simples, mas não podemos deixar de o fazer. Temos de fazer esse esforço.

Mas na Europa há racismo. Como vê as respostas políticas mais à direita?

O racismo está em todo o lado, não é só na Europa. O racismo é um sintoma de doença, de uma situação que foi mal gerada. É preciso remediar essas situações.

As pessoas têm de viver juntas sem se sentirem ameaçadas, humilhadas. Acho que as autoridades têm o dever de fazer os seus cidadãos sentir que estão em segurança e que não estão ameaçados. Esse é o primeiro dever dos dirigentes. Não podemos considerar que é inevitável que o simples facto de serem emigrantes vai provocar tensão. É preciso encontrar soluções, evitar situações onde as pessoas se sentem ameaçadas. Temos de remediar isso, antes de os conflitos se desenvolverem. Por isso, digo que é preciso uma cultura da paz para vivermos em conjunto, mas é uma arte difícil.

É um cristão nascido numa cultura árabe e que vive em França. Como escritor, sente que tem uma missão para com o mundo?

Considero que é um dever de um escritor tentar compreender o mundo, tentar torná-lo melhor, deve dizer algumas coisas aos seus contemporâneos. Acho que, hoje em dia, um escritor não pode ser insensível aos problemas que se colocam. Deve mostrar muita lucidez. É uma palavra para mim importante. A lucidez é indispensável. Acho que é o início da sabedoria.
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