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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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O “homem desnaturado”

10 jul, 2019 • Opinião de José Miguel Sardica


Os direitos humanos estão por toda a parte e são por muitos invocados: resta saber de que direitos se fala atualmente e que dignidade humana é, a partir deles, respeitada ou… atacada.

O filme «Seven» («Sete Pecados Mortais»), realizado há quase 25 anos por David Fincher, com Brad Pitt, Morgan Freeman e Kevin Spacey, é uma das mais negras e impressionantes incursões cinematográficas sobre o mal e sobre os impulsos, e também as circunstâncias, que podem, um dia, levar cada ser humano a cometê-lo. Na última frase da película, o detetive Somerset (Morgan Freeman) cita, em “voz-off”, Ernest Hemingway: “O mundo é um belo local, merecedor que lutemos por ele. Concordo com a segunda parte”. Eu tenderia a concordar com as duas partes, mas as certezas acerca da primeira parte da citação são constantemente testadas pelos muitos males que vão atropelando os direitos humanos e de que todos os dias tomamos conhecimento.

Neste quadro, ofereceram-me há dias um livro que recomendo: «Os Direitos do Homem Desnaturado», de Grégor Puppinck, diretor do European Center for Law and Justice e perito colaborador junto dos serviços diplomáticos da Santa Sé. Publicada em 2018, a obra celebra os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, procurando explorar (na verdade, criticar), a interpretação evolutiva que foi sendo feita daquele documento fundador, desde então até hoje, em vários domínios da vida comum - em instâncias e na jurisprudência internacionais, na política e no direito nacionais, na sociedade, na economia, no ambiente, na cultura, na ética e mesmo na religião. Os direitos humanos estão por toda a parte e são por muitos invocados: resta saber de que direitos se fala atualmente e que dignidade humana é, a partir deles, respeitada ou… atacada, semeando, por muitos meios e partes, males diversos.

Grégor Puppinck recenseia diversas “releituras antropológicas” que foram sendo feitas, para alertar que estamos hoje perante uma “nova imagem do homem”. Isto porque se evoluiu dos direitos humanos de 1948 para o “direito do indivíduo” nos últimos vinte anos e para a atual explosão de “direitos transumanos”, à medida que a relação de outrora entre o homem e a natureza, a política ou a moral foi também mudando e fazendo triunfar “direitos antinaturais” (como o aborto) e “transnaturais” (como o eugenismo ou o intergénero). Mediante esta involução, a dignidade humana foi-se reduzindo à simples vontade individual, mais ou menos atomizada e absolutizada, que encara a natureza ou os condicionamentos éticos como obstáculo a uma reivindicada emancipação e progresso dos seres humanos.

O livro resume a problemática com uma Tabela Recapitulativa onde, a três colunas - direitos naturais do homem, direitos antinaturais do indivíduo e direitos transnaturais - se esquematiza o que mudou, para pior, numa perspetiva de humanismo cristão. Na inspiração, foi-se da democracia cristã para o individualismo e para o simples progressismo. No objetivo dos direitos, passou-se da proteção da pessoa para a libertação do indivíduo e, hoje, para o (suposto) melhoramento do homem, por qualquer via que este autodefina. Na dignidade, o ser deu lugar à vontade livre e esta à busca da perfetibilidade. Na relação do sujeito com a sociedade e os outros, a participação foi ultrapassada pela autonomia e esta pela alienação. Na finalidade, a realização pessoal subsumiu-se na expansão individual e no simples poder. O corolário de tudo isto está à vista. Desligando-se da natureza que lhe pré-existe, a humanidade produz hoje sociedades e leis dela dissociadas, arrogando-se um (pseudo)-direito de redefinir essa mesma natureza e de a mudar ao sabor das causas ou modas do momento e de alguns. O “homem desnaturado” - eis o alerta central de Grégor Puppinck - é a condição do presente. E não parece ser uma condição muito tranquilizadora.

Comentários
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  • Sasuke Costa
    10 jul, 2019 20:00
    Não partilho da ideia de que estão a evoluir para o individualismo, utilizam essa falsa liberdade (?) das escolhas sexuais para demonstrar mais humanidade na sua organização simplesmente. As cúpulas têm de ludibriar os povos, agora que os convenceram de que têm de trabalhar 8 horas para viverem é bom que lhes vão dando umas palmadinhas nas costas para não esmorecerem.