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Crónica

João Gilberto, louco de perfeição

07 jul, 2019 - 11:26 • Sérgio Costa

O músico brasileiro morreu no sábado, aos 88 anos, na sua casa no Rio de Janeiro.

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"Veja se me ouve: O pa-to. O pa-to"... João Gilberto deixava aberta a porta do apartamento de Ronaldo Bôscoli e ia para o outro extremo do corredor, onde ficava o elevador... e sussurrava o mais que podia: O pa-to. O pa-to... Os vizinhos, a princípio, estranharam, mas acabaram se ir acostumando."

O episódio bizarro, múltiplas vezes repetido num prédio de Copacabana e deliciosamente relatado por Ruy Castro no livro "Chega de Saudade", traduz o génio e loucura - sim, a loucura - de João Gilberto.

João Gilberto era um louco. Louco perfeccionista. Criou a batida no violão e a técnica de o tocar, e sussurrou cantando como ninguém. "O pa-to. O pa-to"... "Veja se você me ouve". Contudo, nunca pareceu satisfeito.

O génio de João Gilberto, lado a lado com o de Tom Jobim, domou o samba inflamado, adoçou o jazz e concebeu a bossa nova, conquistando o mundo e, não raras vezes, dividindo o Brasil.

Sem o violão e a voz do baiano, Helô Pinheiro, a verdadeira Garota de Ipanema, jamais teria balançado na composição de Tom e na poesia de Vinícius. Sem João Gilberto, nunca tão lindo seria o Corcovado visto da janela nem o coração bateria tanto num desafinado.

Para João (com Tom e Vinícius), nem dois minutos seriam necessários para mudar radicalmente a música contemporânea. O minuto e 59 segundos de "Chega de Saudade", gravado em conflito com os técnicos de som, aos gritos de "Tom, você é brasileiro, é preguiçoso", resultou num sublime e suave retrato dos narcisos jovens cariocas. Recebido parcialmente com desdém (sobretudo paulista), haveria de conquistar o mundo com a sua plangente vocalização e inovação musical.

A carreira de João Gilberto foi construída de perfeccionismo intransigente, de genialidade arrogante, de conflito, de alienação social, de excentricidades (rejeitava violões onde só ele identificava defeitos no som).

Só o amor (por Astrud, mais tarde por Miúcha) faria um génio louco ceder às exigências das "gravadoras". Para João Gilberto, seria impensável cantar em espanhol ou aceitar qualquer programa de televisão. Por amor, aceitou fazê-lo.

Viveu as últimas décadas em reclusão. Surgiram mais histórias bizarras, como a de jogar cartas, por debaixo da porta fechada do apartamento, com o porteiro que estava no corredor.

Essas são apenas histórias a circular em torno de alguém que, afinal, e nas suas próprias palavras, procurou apenas "cantar sem prejudicar o sentido poético das palavras e das composições". E como todos percebemos isso... na perfeição.

Chega de Saudade. João Gilberto é eterno.

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