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Ana Sofia Carvalho
Opinião de Ana Sofia Carvalho
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Diálise paga por doentes com mais de 70 anos: um exemplo inapropriado para uma questão ética essencial

28 jun, 2019 • Opinião de Ana Sofia Carvalho


A questão das prioridades em saúde sendo, evidentemente, uma questão incómoda e eventualmente sempre eticamente ferida é algo que não podemos deixar de considerar urgente e pertinente.

A Sra. Dra. Manuela Ferreira Leite num recente programa televisivo defendeu entender que os doentes com mais de 70 anos que necessitem de tratamentos de hemodiálise os devem pagar. De facto, não podemos deixar de sublinhar a importância e a pertinência de discutir este assunto, mas, temos infelizmente que concordar que o exemplo foi inapropriado e, de alguma forma, prejudicial a um debate ético sério.

A questão das prioridades em saúde sendo, evidentemente, uma questão incómoda e eventualmente sempre eticamente ferida é algo que não podemos deixar de considerar urgente e pertinente.

Este assunto, inclusivamente, está, entre outros, como um dos determinantes históricos do aparecimento da bioética como área crucial do pensamento. Nos Estados Unidos em Seatle, em 1961, quando surge a hipótese de dialisar doentes renais, é fácil imaginar que a técnica, pela sua complexidade e pelos custos envolvidos, não poderia ser disponibilizada a todos os que dela necessitavam. Assim, esta Comissão, designada como the God´s Committee, teria de decidir quem beneficiaria da técnica e iria viver e, por outro lado, os que ficariam sem acesso a esta nova tecnologia e, por isso, iriam morrer. Se por um lado podemos compreender o uso do termo Deus, como aquele que tem o potencial para “dar ou tirar” a vida, não entendemos, por certo esta lógica ligada a Deus como aquele que escolhe numa lógica da utilidade das pessoas e não pelo seu valor intrínseco.

Esta Comissão constituída por sete pessoas, incluía médicos, líderes políticos e cidadãos, tinha como objectivo, desenvolver os critérios para a alocação deste bem escasso. Um artigo publicado na altura na Time “Medical Miracle or Moral Burden of a Small Committee: they decide who lives, who dies”(*) com excertos das reuniões que revelam, de uma forma impressionante, a dificuldade, a complexidade e, também o enviesamento ético, baseado essencialmente numa perspetiva utilitarista ligada ao valor social, destas decisões. Assim, mesmo considerando que a diálise tem um peso significativo nos gastos em saúde, é hoje, eticamente consensual que as mesmas devem estar disponíveis para todos os que possam realmente beneficiar do seu uso. No entanto, tendo em consideração os custos associados aos cuidados da saúde (p.e. as novas terapias oncológicas) teremos, por certo, de estabelecer prioridades e fazer escolhas que são, sem dúvida, difíceis e trágicas.

Tal como sublinhado no parecer 64/ CNECV/2012 (Parecer sobre um Modelo de Deliberação para Financiamento do Custo dos Medicamentos), também ele polémico, o CNECV considerou na altura que existe fundamento ético para que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) promova medidas para conter custos…, tentando assegurar uma "justa e equilibrada distribuição dos recursos".

Assim, mesmo tendo em atenção que existe ainda um caminho importante a percorrer na redução do desperdício, o racionamento (aqui usada como sinónimo de alocação) em matéria de cuidados de saúde feito a partir de critérios éticos adequados é inevitável como forma de garantir a equidade intra-geracional (dentro das pessoas da mesma geração) e inter-geracional (com as gerações futuras). Isto significa que as prioridades devem ser definidas tendo em consideração a idade tal como defende Daniel Callahan? (**) Por certo, tal como sublinhado no parecer do CNECV, a idade, por si só, não deve nem pode ser um critério para estabelecer prioridades. Além disso, é importante sublinhar que as pessoas mais velhas já contribuíram com os seus impostos para ter acesso a cuidados de saúde; se as contas e as projecções foram mal feitas a culpa não é certamente deles…

No entanto, não devemos usar um exemplo infeliz para escamotear o problema; as escolhas em saúde e o estabelecimento de prioridades são, sem dúvida, urgentes; só assim estaremos em condições de garantir que embora não seja possível dar tudo a todos, poderemos, se formos céleres, garantir a possibilidade de dar a cada um o que ele verdadeiramente precisa.


Professora do Instituto de Bioética



(*) “Milagre médico ou problemas morais de uma pequena comissão: eles decidem que vai viver e quem vai morrer (tradução livre)”

(**) A idade tem sido apontada por este autor como critério preferencial de racionamento de cuidados de saúde, convocando o argumento utilitarista de maior esperança de vida e produtividade após o tratamento.


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