Emissão Renascença | Ouvir Online
Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
A+ / A-

Nem ateu nem fariseu

A linguagem escondida do mundo

07 jun, 2019 • Opinião de Henrique Raposo


Sem respeito interior pelo tom de voz do outro, não é possível construirmos uma liberdade colectiva. Sem a empatia construída em redor dos valores do Reino, não há liberdade na cidade dos homens.

O que é uma jornalista? O que é uma intelectual pública? Nesta época que destruiu em menos de uma década a própria ideia de espaço público, uma grande jornalista como Aura Miguel é em si mesmo um pequeno senado; uma intelectual pública como a Aura é em si mesmo o espaço público, é a personificação do espaço público, um espaço com regras e memória.

E talvez comece por aqui, pela memória. Durante as últimas décadas, diversos tipos de forças económicas e de escolas intelectuais destruíram o próprio conceito de memória. A memória desapareceu. O respeito pela cultura geral, da história à literatura, desapareceu. Vivemos num presente perpétuo, fechado sobre si mesmo; vivemos no mesmo dia que se repete num loop sem fim como no filme “O Feitiço do Tempo”. Ora, neste livro de entrevistas da Aura, a primeira coisa que se nota é precisamente o odor da memória, do passado. É como entrar numa biblioteca e sentir aquele pó adorável dos livros. Sentimos esse pó nos padres (padre António Oliveira, por exemplo) que conheceram de perto a guerra colonial, no rapaz (Johnson Semedo) que passou pela epidemia de droga e delinquência dos anos 80 e 90, em pessoas como Jaime Nogueira Pinto que reflectem sobre a Idade Média. Sentimos isso na própria estrutura de todas as conversas, que são pequenas histórias de Portugal, são buracos da fechadura que nos permitem espreitar a nossa história. As conversas com Gentil Martins, Ricardo Ribeiro, José Avillez, Marçal Grilo, Johnson Semedo, Regina Mateus, Laborinho Lúcio e Walter Osswald, entre outras, são pequenas histórias de Portugal. Fala-se de fé. Fala-se de classe social e de como podemos quebrar as fronteiras que a classe social impõe às pessoas de cima e de baixo.

Dou três exemplos desta libertação da prisão que pode ser a classe e o berço.

Num país e numa Nazaré divididos entre meninos calçados e meninos descalços, os pais de Laborinho Lúcio, um calçado, decidiram colocar o filho numa escola dos meninos descalços para que ele aprendesse a gramática da empatia social desde cedo.

O fadista Ricardo Ribeiro foi criado num ambiente pobre e duro em que os pais não davam mimo aos filhos; o mimo era visto como uma fraqueza, mimar era desarmar o rapaz para a vida dura. Repare-se que esta aridez sentimental ainda era a norma nos anos 80. Agora, o fadista Ricardo Ribeiro usa esse vazio emocional para alimentar o seu fado.

José Avillez dizia que queria ser carpinteiro e o seu meio social respondia: Está louco! Depois passou a ser que queria ser cozinheiro e o seu meio social respondia, Está louco! Isto porque o trabalho manual, “o trabalho vil e mecânico”, não era próprio de uma certa classe social mais alta. Avillez venceu esse bloqueio quando ser cozinheiro ou chef ainda não tinha a actual respeitabilidade. O que me leva a um ponto curioso: a elite hipster com os seus cozinheiros, padeiros, floristas, baristas e cervejeiros é uma novidade positiva, porque traz o calo artesão para as classes privilegiadas, que sempre tiveram um certo asco pelo trabalho manual – esta é uma novidade que merece reflexão.

Além da memória, um intelectual público é em si mesmo a personificação das regras da liberdade. A Aura Miguel fala muito disso nestas conversas. A liberdade não é o mesmo que um livre arbítrio à solta. Liberdade não é fazer ou dizer sem filtro o que nos passa pela cabeça. Isso é anarquia. A liberdade só existe num espaço comum com regras comuns. Como dizia Hannah Arendt, a liberdade não está no coração de cada um, a liberdade é uma interacção republicana entre duas pessoas, é uma interacção com regras que são superiores a cada um de nós. A minha posição é inferior às regras que permitem a circulação de todas as posições. A liberdade, no fundo, depende da boa educação, do respeito. Talvez por isto, uma das minhas entrevistas favoritas é do Johnson Semedo, um rapaz da Cava da Moura que passou pela delinquência, droga e crime e que, depois de um momento de redenção, saiu da cadeia para criar uma instituição que acolhe e acompanha outros miúdos da Cova da Moura. Semedo salva vidas, literal e metaforicamente falando. Visto que estamos a falar de alguém que conheceu na pele a confusão que as pessoas fazem entre liberdade e anarquia, destaco este excepto do discurso que ele costuma dar aos garotos:

“Ou te limitas dentro de um crescimento pedagógico ou então vais e fazes o que quiseres com a tua liberdade e depois a própria vida vai-te trazer uma fatura e dizer: Tu tiveste liberdade e não soubeste lidar com ela e agora a consequência é esta”.


Já que estamos a falar de um livro de entrevistas, convém ainda dizer que entrevistar alguém é uma boa corporização destas regras do espaço público. Para começar, é preciso estudar o outro, respeitando-o. O que está relacionado com outra obsessão da católica Aura Miguel: o chão comum entre pessoas diferentes. Não é possível haver catolicismo sem este busca incessante da irmandade humana entre pessoas diferentes na classe, na etnia, na geografia, até na religião. Ademais, numa época de tribalismo, os católicos não podem ser uma das tribos, têm de ser a ponte entre tribos. Em segundo lugar, a entrevista implica saber ouvir. E estou certo que esta é a virtude mais rara hoje em dia: estar calado e ouvir. Não estou a falar apenas da conversa do dia-a-dia. Nas tvs, rádios e jornais, percebemos que muitos jornalistas não estão a ouvir o entrevistado, estão a seguir um guião que procura um resultado pré-definido. A Aura escuta mesmo. Isso nota-se quando ela faz perguntas que procuram o pormenor. Por exemplo, coloca a seguinte pergunta a Gentil Martins: como foi pegar no bisturi e cortar pela primeira vez a carne humana? Esta pergunta é tão boa que dói – e não é por causa do bisturi.

Devido a este silêncio e ao consequente respeito pela voz do outro, quero sair do espaço público e entrar na nossa intimidade, na voz escondida do mundo, na linguagem secreta que segura o mundo: os gestos, a linguagem corporal e, acima de tudo, o tom da voz. Escritas ou faladas, as palavras não surgem de um vazio neutral, trazem consigo um tom subjectivo e variável. Um tom de ferro quando queremos dar uma ordem. Um tom de barro ainda maleável quando temos dúvidas. Um tom de barro já cozido quando chegamos à conclusão. Um tom de água a ser derramada quando estamos tristes. A mesma frase, “Estou aqui a apresentar o livro da Aura”, pode ser dita com um tom azedo ou um tom alegre, e é esse tom não gramatical, digamos assim, que contém a verdade do que estamos a dizer. Às tantas, Ricardo Ribeiro, o fadista, diz assim: “eu gosto de si, Aura, porque você me entende”. Ele diz isto porque a Aura está mesmo a ouvir, e não está a ouvir apenas o que está a ser dito à superfície do texto, está a ouvir o subtexto, o tal tom, a chave que abre a verdadeira alma do entrevistado, a voz interior que é muito diferente da persona pública que muitas vezes bloqueia qualquer conversa franca. A Aura, até como boa católica, procura essa voz interior que procura Deus e não a persona que procura os gostos da sociedade. É a voz que não tem medo de mostrar fragilidade e franqueza.

O tom de voz é o que me interessa. É essa linguagem escondida que me interessa. Linguagem, essa, que está presente noutros momentos destas entrevistas. Está presente na voz de Ana Maria Vieira, do Convento dos Cardaes. Esta irmã cuida de mulheres com deficiência profunda. Ora, estas mulheres não têm obviamente um discurso articulado, mas têm com certeza o mesmo tom de voz que nós temos. A voz humana tem uma paleta de tons universal que ultrapassa fronteiras cognitivas entre um mente sã e uma mente danificada.

Esta linguagem escondida está numa cena contada pela minha figura preferida (a par do Johnson Semedo), o padre António Oliveira, figura chave no processo de paz entre o exército português e a Unita. Imaginem a cena: marca-se um encontro no meio da selva, 500 soldados portugueses de um lado, 500 guerrilheiros da UNITA do outro, separados por alguns metros; os portugueses chegam em veículos, estão frescos e alimentados; os da UNITA estão esgotados e com fome. Às tantas, os portugueses percebem a fome e o cansaço no olhar e nos gestos dos outros e começam a alimentá-los. Alimentam o “inimigo” com rações de combate.

No fundo, o que eu quero dizer com base no livro da Aura é isto: esta linguagem escondida é a base da empatia sem a qual não há espaço público. Sem respeito interior pelo tom de voz do outro, não é possível construirmos uma liberdade colectiva. Sem a empatia construída em redor dos valores do Reino, não há liberdade na cidade dos homens.

Obrigado.

PS: texto da apresentação do livro de Aura Miguel realizada na Feira do Livro, dia 5 de junho.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Vera Costa
    17 jun, 2019 06:26
    Que é isto? 1498? Os que vivem em minha casa? não obrigo ninguém a nada! e volto para o carreiro? Qual livro? Qual voz?... será o Luis Vaz de Camões! Agora é que é caso para dizer: - Vá chatear o Camões!!! Cuidado Henrique Raposo, que ou anda aqui confusão! ou anda algum doido por aí à solta!!! e por via das dúvidas vou entregar isto na esquadra, depois explique-se lá!
  • Sasuke Costa
    10 jun, 2019 11:45
    Sobre o artigo não li o livro mas quanto ao comentário genuíno sinto-me impelido a comentar o texto de 1498 carateres da Sra Vera. “Não deixe de publicar, não ligue a essa voz “queres salvar os outros mas não salvas os que vivem na tua casa”, seguir este caminho é relativizar essa voz, esta escolha não se ensina pois tive uns amigos em que o pai os obrigava a assistirem à sua doutrinação e não deu resultado nenhum, vem muito de lá do fundo seguir este caminho, a si compete-lhe amar, como ama incondicionalmente e deixa-los voar rezando para que Deus lhes toque pedindo-o na oração. Exigindo os preceitos de justiça do mundo, que são claríssimos e todos são obrigados a respeitar. Não se trata de salvar a sua alma e deixar os próprios filhos não serem salvos mas de não se deixar derrotar, dizer o que lhe apetece dizer, não ligando a essa voz que a rebaixa. Deus salva a casa dos seus amigos e se o não for visível é porque não estamos à altura de entender as linhas tortas. Da insónia que gira gira sem conseguirmos parar, cada um utiliza técnicas diferentes, para mim empurro a roda com Avé Marias seguidas umas às outras, a roda empurra as Avé Marias para o lado mas quem manda sou eu e volto a pô-la no carreiro de novo é assim que vai ser e quando a roda gira pelo campo a baixo adormeço martelando pelo sono dentro as Avé Marias.
  • João Lopes
    08 jun, 2019 11:47
    Excelente artigo!
  • Vera Costa
    08 jun, 2019 07:03
    “Ou te limitas dentro de um crescimento pedagógico ou então vais e fazes o que quiseres com a tua liberdade e depois a própria vida vai-te trazer uma fatura e dizer: Tu tiveste liberdade e não soubeste lidar com ela e agora a consequência é esta”. Olá Henrique Raposo, esta frase tem todo o sentido e é por aqui que eu vou começar! Eu estou a notar que está cada vez mais complicado falar, fazer entender, aos mais novos que, eu nem sei como lhe vou explicar! só sei que cada vez que eu abro a boca para falar dos ensinamentos de Jesus, é uma tormenta, que eu passo! porque não me acreditam! e se eu falar na palavra Deus, isso então chamam-me todos os nomes que lhes vier à cabeça! Há duas semanas escrevi um texto e tive que o anular!... até perdi o sono e fiquei toda a noite a ouvir a Renascença, para não ficar a noite toda a pensar no mesmo! contei ao meu filho mais velho! -Eu não sei como hei-de falar com aquele rapaz, vou deixar de lhe falar! porque eu estou habituada em tudo o que faço emprego a palavra Deus,não sei falar de outra forma! o meu filho disse-me: Não o enxotes! se Deus to pôs no teu caminho é para lhe ensinares! -Eu também senti isso! mas não sei como fazer, porque não sei falar de outra forma,mal eu abro a boca já ele está a trocar-me as palavras! tudo o que eu digo, ele acha que eu inventei! eu sinto-me muito nervosa com esta situação! para mim tudo tem a ver com Deus, para ele vive num mundo diferente! que ele chama Inferno e que não tem Deus nenhum! Isto é 2019