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José Mattoso distinguido com Prémio Árvore da Vida. ​“Senti-me sempre nas mãos de Deus"

31 mai, 2019 - 13:11 • Filomena Barros , Ana Lisboa

Distinguido com o Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes 2019, o historiador diz-se surpreendido com este galardão, porque nunca foi “uma pessoa de palco”. Aos 86 anos diz-se grato por tudo o que fez ao longo da sua vida e carreira.

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A atribuição do Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes 2019 a José Mattoso vai ser entregue este sábado, 1 de Junho, em Fátima, durante a 15ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura.

O galardão, com o valor pecuniário de 2.500 euros, é atribuído pela Igreja Católica, através do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, com o apoio da Renascença.

O júri tomou esta decisão “por unanimidade calorosa”, referindo que se trata de um “irradiante homem de espiritualidade cristã e de ação cívico-cultural”.

A escolha é ainda justificada pelo “alto valor científico da investigação historiográfica levada a cabo por José Mattoso, bem como o pensamento sobre a identidade nacional portuguesa e a trajetória espiritual”.

Em entrevista à Renascença, o historiador reconhece que ficou surpreendido com a distinção do Prémio Árvore da Vida. “Surpreendeu-me, porque eu nunca fui uma pessoa de palco, sinto-me sempre muito intimidado quando sou o centro das atenções. Sei que não tenho o dom da palavra", diz.

Mattoso considera que não tem "o dom da palavra". "Uma vez na Academia de História disse 'eu sei escrever, mas não sei falar'. Isso foi sempre uma dificuldade nas minhas aulas", reconhece, acresentando que, ainda assim, procurou "sempre objetivos claros, simples e ao meu alcance".

"Quanto às funções que desempenhei na Universidade, na investigação e na Igreja, fiquei sempre à espera que me dissessem o que queriam de mim. Nunca pedi nada, nunca ambicionei nada e essa posição obrigava-me a fazer o melhor possível aquelas tarefas e aquelas incumbências que tinha aceitado”, diz o historiador.

Aos 86 anos, mostra gratidão por tudo o que fez ao longo da sua vida e carreira, admitindo que é o presente que nos coloca diante de Deus. “Procurei sempre viver o dia a dia, porque é o presente que nos coloca diante de Deus eterno. A minha existência passa. Posso ter um dia de fulgor, outro dia de grande sensibilidade, muita emoção, tristeza, de acabrunhamento, dúvida, mas Deus está lá sempre. E a consciencialização dessa presença de Deus é que me conduz na vida”, afirma.

Entrou para o Mosteiro Beneditino de Singeverga em 1950 e, 20 anos depois, regressou à vida laical. “Fui dispensado dos meus votos, casei, tive os meus filhos. Entretanto, proporcionou-se a ocasião de ser assistente convidado na Faculdade de Letras de Lisboa e isso lançou-me para a investigação que eu fiz com toda a paixão, com todo o cuidado, que me deu um lugar de modesta referência ou de uma referência que foi evoluindo através dos tempos e tornei-me um investigador”, conta.

Nunca sentiu que foi afastado pela Igreja. “Senti-me sempre nas mãos de Deus, mesmo quando me casei, depois houve uma situação em que deixei a família durante alguns anos e divorciei-me. Mas fui sempre recebendo sacramentos, nunca ninguém me negou a comunhão. Tive sempre um grande interesse e apoio da hierarquia, contactei com muitos bispos, muita gente da Igreja”.

Percurso de vida livre e arquivos abandonados

José Mattoso fala num percurso de vida livre, em que teve de fazer escolhas, desde as funções nos arquivos, passando pelas funções de investigador, “sempre dentro de uma linha de fidelidade, tentativa de fidelidade, porque nunca se consegue alcançar aquilo que Jesus propõe".

"Foram-me surgindo situações em que eu tinha que escolher. E tentei escolher dentro da minha linha de conceção do mundo, da Igreja e da sociedade. E foram-me proporcionadas tarefas de direção escolar, por exemplo, professor da Faculdade de Letras, presidente do Conselho Científico da Universidade Nova, reitor, depois os arquivos", descreve Mattoso, detendo-se depois sobre a sua passagem pelos arquivos.

"Pus um grande empenho, porque sempre estive convencido que a história só se pode fazer com documentações completas, recolhendo tudo aquilo que resta de uma determinada instituição, para poder fazer a história dessa instituição. E os arquivos em Portugal estavam muito abandonados, muito inferiorizados. Os diretores dos arquivos eram considerados uma espécie de maníacos, de colecionadores de papéis velhos. Apesar de que o Estado Novo falava muito numa política do espírito, mas essa política passava por inferiorizar os arquivistas. E, portanto, eu tive a sorte de poder contar já com uma certa força necessária para a organização dos arquivos e depois participar nela intensamente”, relata.

Mattoso diz ainda que foi assim também no papel de investigador, em que defendeu uma história crítica e a procura da verdade. “Foi também uma espécie de percurso, sempre na direção da investigação e da averiguação da história, sem apologética. E em Portugal verifiquei também que a Igreja defendia-se dos seus ataques anticlericais da República e de outras épocas com uma atitude apologética, mostrar os seus feitos, as suas vitórias, os seus milagres, a proteção de Deus, a luta contra tudo. (…) A necessidade de mostrar a crítica, uma história sem milagres, com altos e baixos, com fidelidades e traições, essa história não era cultivada pela hierarquia, é preciso contar a verdade, é preciso contar as derrotas e as vitórias. Do ponto de vista da historiografia eclesiástica, é isso mesmo que eu procuro”.

Reconhece que tem tido sorte na vida. Penso na “minha própria vida como uma resposta em que eu sou livre, mas em que me empenho. Depois, aparecem conjunturas que me conduzem numa determinada direção e, por isso, acho que estou nas mãos de Deus. E como tenho tido sorte, digamos assim, em termos corriqueiros, no meio disto tudo, em situações tão diferentes umas das outras, eu saio sempre, como diz a Sofia de Mello Breyner, ‘não saio nunca com as mãos vazias’”.

No sábado, dia 1 de Junho, vai receber o prémio em Fátima. Confirma que vai estar na cerimónia e que já tem o discurso quase feito. “Revi o meu texto para aí 50 vezes, fui cortando as frases, fui tentando ser mais claro, mais explícito, mais simples. Fiz esse esforço e continuo a fazer, como um menino da escola. Mas realmente está escrito, quase tudo. Umas frases que eu já tinha considerado completas, mas esta manhã comecei a pensar que posso dizer isto de uma maneira mais clara, uma forma de dizer menos complicada”.

Entrevista feita em conjunto pela Renascença, Agência Ecclesia e Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura no Centro Neurológico Sénior, em Torres Vedras, onde José Mattoso está atualmente a viver.

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