Entrevista a Kevin Sullivan, do "The Washington Post"

“Jimmy Carter prova que a decência conta”

30 mar, 2019 - 08:43 • José Bastos

“Carter lembra-nos que as pessoas procuram um exemplo de bondade e decência nos seus líderes. É esse o seu grande legado”, defende Kevin Sullivan. Milhões de americanos leram o seu artigo no "The Washington Post" sugerindo a releitura da invulgar personalidade do presidente que mais tempo viveu depois de sair da Casa Branca.

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A caminho de se cumprir quatro décadas da rejeição dos eleitores à tentativa de reeleição, Jimmy Carter, o 39º presidente alcançou um marco que a aritmética não consegue negar: é já o mais longevo da história dos Estados Unidos.

Na sexta-feira, 22 de Março, Carter cumpriu 94 anos e 172 dias, superando por um dia a senioridade do ex-presidente George H.W. Bush, que morreu a 30 de Novembro com 94 anos e 171 dias. Bush pai e Carter nasceram em 1924: Bush a 12 de Junho e Carter a 1 de Outubro.

Jimmy Carter soma mais um recorde: já ostentava o do ex-governante que viveu mais tempo depois de deixar a Casa Branca com mais de 38 anos desde que abandonou Washington.

Depois de Carter e Bush pai (1989-1993), os ex-presidentes mais longevos da história foram Gerald Ford (1974-1977) e Ronald Regan (1981-1989) ambos falecidos com 93 anos, seguidos de John Adams (1797-1801) e Herbert Hoover (1929-1933) com 90 anos no momento da morte.

É assim a mais recente distinção pós-presidencial para Carter, cujo legado desde que regressou à Georgia superou em muito o seu complexo período na Casa Branca e a notável trajectória política que o levou da empresa familiar de cultivo de amendoim à inesperada vitória presidencial em 1976.

O mandato presidencial de Carter durou apenas quatro anos, sofreu o impacto da crise dos reféns em Teerão de 1979 e embora os mais conservadores continuem a criticar a sua gestão, o líder democrata não deixou de intervir na vida pública.

É recordado por ter conseguido que, em 1979, Israel e o Egipto assinassem um acordo de paz em Camp David e por ter contribuído para a queda do ditador Somoza na Nicarágua. Também lhe é creditada a normalização das relações com a China.

A partir do Centro Carter de Atlanta, o ex-presidente promoveu acções de defesa da democracia na observação de eleições, direitos humanos e saúde pública à escala global. Carter escreveu ainda dezenas de livros desde que deixou a Casa Branca além de dar catequese todos os domingos na Igreja Baptista da sua cidade natal de Plains, na Geórgia.

A aparente saúde de ferro de Carter debilitou-se em 2015 quando anunciou padecer de um problema oncológico, mas, depois de seis meses de radioterapia, garantiu ter concluído com sucesso o seu tratamento contra um tumor. A sua longevidade vencia também as probabilidades médicas porque o cérebro e o fígado haviam sido afectados.

Mas, antes ainda de efemérides recentes, foi o jornalista Kevin Sullivan, do Washington Post que redefiniu para milhares de americanos o papel de um ex-presidente condenado nos últimos anos a um relativo anonimato.

Com vários Pulitzer na bagagem, Kevin Sullivan deu conta, para uns, e reavivou, para outros, a história de uma personalidade invulgar para quem os valores morais e éticos ainda estão intactos e os americanos acabarão por regressar “ao que é certo e ao que é errado, ao que é decente e não é, ao que é verdade e o que é mentira”.

Kevin Sullivan respondeu ao telefone a partir de Washington.


O artigo, em coautoria com Mary Jordan no "The Washington Post", “The un-celebrity president", tornou-se um fenómeno viral e tocou milhares de norte-americanos que, aparentemente, tinham esquecido Jimmy Carter. Ficou surpreendido com as reacções?

Nós sempre pensámos que as pessoas iriam reagir, mas ficámos surpreendidos pela dimensão e amplitude das reações. Recebemos centenas e centenas de e-mails, registou-se uma reacção incrível, a maioria dos jornais regionais nos Estados Unidos reproduziu a peça, milhões de pessoas leram a matéria e também surgiram reações de todo o mundo.

Obviamente as pessoas não estavam focadas no presidente Carter porque ele não é presidente há já mais de 30 e muitos anos o que é muito tempo.

O texto recorda às pessoas quem foi Carter e quão grande exemplo ele deixa não só como presidente, mas como ser humano e isso teve um quase efeito de reverberação sonora junto das pessoas. Saber isso de Carter fez as pessoas sentirem-se realmente bem.

Como está o ex-presidente Carter de saúde?

Para escrever o artigo nós passámos uma semana em Agosto, mas voltamos a estar com o presidente Carter há poucos dias na pequena cidade de Plains, Georgia, onde ele vive. Ele está a caminho dos 95 anos e continua muito activo. O presidente anda muito a pé e continua a gostar de nadar na sua piscina.

Acompanhado pela sua mulher Rosalynn, 91, Carter continua a dar passeios na vizinhança. Os Carter continuam muito activos. Carter estabeleceu para si mesmo um padrão de vida muito saudável.

Não fuma. Não bebe. É muito dinâmico. Exercita-se muito. Está em muito boa forma física. E, claro, como homem ele constitui uma maravilhosa fonte de inspiração. Quando falamos com ele ficamos com uma sensação de bem-estar.

O artigo enfatiza o facto de Carter viver modestamente e, ao contrário de antecessores e sucessores, não ganhar milhões…

É verdade. Se se é um ex-presidente dos Estados Unidos as oportunidades de se fazer dinheiro são imensas. E, lembre-se, muitas destas personalidades, como Gerald Ford, Barack Obama, Bill Clinton e até os Bush, foram a vida inteira funcionários públicos e auferiram salários relativamente modestos se comparados com o que poderiam ter ganho se estivessem no sector privado.

Alguns deles - e o fenómeno começou com Ford e sobretudo com Clinton - decidiram que, depois de abandonar a Casa Branca, seria aceitável integrar lugares chave em conselhos de administração de grandes empresas ou fazer intervenções em conferências em que podem fazer milhões de dólares.

Mas Carter escolheu não ir por aí. Ele disse que optar por essa via sentiria estar a tirar algum tipo de vantagem de ter sido presidente dos Estados Unidos e que não o queria fazer. Mas Carter também é muito rápido a sublinhar que nada tem contra quem o faça e não critica antecessores ou sucessores por o terem feito. É perfeitamente legal. Não há nada de errado nisso. Se alguém te quer pagar milhões de dólares para que faças um discurso não há nada de errado.

Carter optou por outra via e vive modestamente. Ele e a mulher – Rosalynn - vivem na mesma casa que mandaram construir em 1961. É uma casa muito modesta e levam um estilo de vida muito calmo, muito recatado e não estou certo de que alguma vez possamos assistir a algo semelhante.


A cidade de Plains é das explicações para esse estilo de vida?

Sim. Plains é uma cidadezinha minúscula, duas horas a sul de Atlanta, na Georgia, e está bem inscrita num cenário agrícola onde se cultiva milho e amendoins. Não se passa muito mais em Plains.

A taxa de pobreza é, creio, à volta de 40%, portanto quase metade da população vive com dificuldades e sofrendo de algum tipo de pobreza. A população é de 700 pessoas. É uma cidade muito pequena.

Se lá for a cidade inteira é um museu vivo dedicado a Jimmy Carter: a estação de comboios onde ele tinha instalada a sua sede de campanha continua muito bem preservada e todas as lojas da cidade vendem comida e vendem ‘memorabilia’ de Carter, objectos ligados à recordação do vínculo de Carter à cidade. Plains inteira é uma espécie de santuário dos Carter.

A Carter é atribuída a frase: “nunca foi minha intenção enriquecer”. Vinda de quem vem é quase uma declaração filosófica em si mesma, uma declaração de intenção de vida…

E é. Carter é um homem com uma enorme dimensão espiritual. A religião sempre ocupou uma parte importante da sua vida e é uma dimensão muito enraizada na sua existência. Alguém me disse que ele não gosta de "show-offs", de se mostrar exageradamente, de grandes exuberâncias, e também não gosta de pessoas que têm de si mesmas uma visão exagerada ou que se julgam importantes.

O presidente Carter também não se vê a si como sendo alguém importante o que, no mínimo, não deixa de ser algo estranho considerando que ele foi... presidente dos Estados Unidos.

Queira ou não queira ele é alguém importante, Carter é um 'big-shot', mas ele vive e tenta viver de uma forma modesta, muito humilde e com uma dimensão religiosa assinalável. Ele continua a conduzir lições de catequese dominicais na mesma Igreja onde continua a ir desde criança.

É verdade que Carter voa em normais aviões de linha aérea?

É verdade. É claro que ex-presidentes quando querem ir de um sítio a outro viajam em jatos privados, mas Jimmy Carter usa velhos jatos de linhas comerciais como todos nós fazemos.

Ás vezes ele abandona o seu lugar e, porque lhe pedem, caminha ao longo do corredor do avião saudando e interagindo com os outros passageiros. É verdadeiramente muito engraçado.

A presidência Carter (1977-81) é frequentemente lembrada pela crise dos reféns no Irão. A História absolverá Carter neste episódio?

É difícil de dizer. Já passou muito tempo e penso que Carter continua a ser olhado não própriamente como um grande presidente. Há duas semanas ele mesmo me confidenciou não achar ter feito uma grande presidência, mas que não tinha sido um mau presidente.

Muitos dizem que ele foi terrível, mas penso que avaliando todos os dados acabará por ser lembrado como alguém que fez coisas importantes enquanto presidente e que também foi posto à prova por algumas crises terríveis para as quais nada contribuiu, por exemplo a crise dos reféns em Teerão.

Não foi nada que Carter tivesse feito a provocar essa crise e ele teve de enfrentar o problema. Carter envolveu-se muito profundamente na sorte desses reféns e passou muito tempo, como ele diz, obsessivamente a tentar que regressassem sãos e salvos a casa e como ajudar as famílias implicadas.

A crise dos reféns em Teerão afectou a sua imagem, mas ele não deixa de estar muito orgulhoso do facto de ter colocado no topo, enquanto presidente, a agenda dos direitos humanos.

Camp David, normalizar relações com a China, direitos humanos, Nobel da Paz, são um conjunto de grandes feitos…

Claro que sim. Esses são os pontos altos da administração Carter. Saiu um livro recentemente que formula a mesma pergunta que me faz: foi a administração Carter bem melhor do que achamos ou do que maioria das pessoas recorda?

A História irá reconhecer que ele conseguiu grandes feitos.

Como será Carter lembrado? Ele afirmou: “eu sempre disse a verdade”

O nosso artigo não tinha uma leitura política ostensiva, não era sobre Trump, mas quando lhe pedimos a opinião sobre Donald Trump essa frase foi a sua maior queixa sobre o actual presidente.

Carter disse: "não acredito que ele esteja a dizer a verdade" e, logo a seguir, completou "eu posso ter cometido muitos erros, mas sempre contei a verdade e tenho muito orgulho nisso".

Deixou claro não acreditar que o presidente Trump o faça. Há aí uma grande diferença entre Carter e Trump.

Com um bilionário na Casa Branca alguma vez um ex-presidente irá viver como Carter?

É difícil de responder ou imaginar esse cenário. Quando Barack Obama deixou a Casa Branca - ele e a mulher Michele Obama - assinou um contrato de direitos de autor para escrever livros que julgo ter sido de 60 milhões de dólares.

Não vejo nada de errado nesse contrato porque os Obama trabalharam muito para escrever os livros, mas nunca vão viver como Jimmy Carter vive. Em si mesmo isso não é nem bom nem mau. É apenas um dado objectivo.

Portanto no futuro iremos alguma vez ver outro ex-presidente a sair da Casa Branca e a viver na mesma casa em que, ele ou ela, viveu durante anos a fio antes de ter sido presidente? Não sei. É difícil de imaginar tal cenário.

Importa dizer que boa parte dos candidatos que se posicionam para as eleições de 2020 não são gente abastada, não são ricos. É gente sem meios de riqueza pessoal, meios modestos mesmo, e muitos deles com um discurso que soa muito idêntico ao de Jimmy Carter. Donde… quem sabe? Nunca se deve dizer nunca.

Qual é o grande legado ético e moral de Carter?

Creio que o grande legado pessoal de Jimmy Carter é o de que a decência pessoal realmente conta. Aos seus líderes as pessoas desejam - e quase imploram - bondade e decência. Também pretendem ver força e energia em alguém que lute por eles, mas penso que no final de contas Carter lembra-nos que as pessoas procuram um exemplo.

As pessoas procuram alguém, uma figura que lhes permita dizer aos seus filhos: "olhem para o presidente, vejam o seu exemplo, sejam como ele, ele é um bom homem, ele é um homem decente, honesto, gentil e generoso". Este será no final de tudo, acho, o grande legado de Carter.

No plano pessoal foi gratificante o artigo ter contribuído para um novo entendimento de Jimmy Carter?

Ao longo da minha carreira os momentos mais compensadores foram sempre aqueles em que consegui dar voz a quem não tinha voz, seres humanos que se encontravam em circunstâncias terríveis e não tinham ninguém a quem contar o seu sofrimento. Sempre gostei de as ouvir e contar as suas histórias.

Mas, sim, houve mesmo algo muito compensador, muito gratificante em ter relembrado às pessoas quem Jimmy Carter foi e continua a ser.

Escrevi o artigo em conjunto com a minha mulher Mary Jordan e sentimos que é gratificante que as pessoas - e sobretudo os mais jovens - digam 'não conhecia este homem, nem sequer tinha nascido quando ele foi presidente dos Estados Unidos, mas agora tenho orgulho nele'. Isto faz-nos sentir bem.

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