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​Ecologia. “Se o que afeta Moçambique não me afetar, não tenho limite para o meu consumo”

27 mar, 2019 - 17:10 • Ângela Roque

Responsável pela Associação Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade fala à Renascença da atualidade da mensagem do Papa para a Quaresma, que desafia os cristãos a uma mudança de vida que respeite mais a natureza. Para Margarida Alvim, é cada vez mais urgente olhar as tragédias ambientais como “um problema que é de todos”.

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A recente devastação causada pelo ciclone Idai “vem ao encontro do apelo Papa, que tem insistido tanto na nossa conversão na relação com a natureza”, diz Margarida Alvim à Renascença. Convidada a comentar a mensagem de Francisco para a Quaresma deste ano, a responsável pelo projeto Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade considera urgente levar a sério o desafio para que se adotem novos estilos de vida, mais solidários e mais ecológicos.

Na mensagem o Papa critica muito do que guia as sociedades de hoje - a “avidez”, a “ganância insaciável do homem”, a “ambição desmedida pelo bem-estar” e a “exploração” das pessoas e da natureza. “É sobretudo um desafio social e de desigualdade territorial”, refere Margarida Alvim, que vê nas mais recentes tragédias ambientais uma “impaciência da Criação” que espera a participação de todos “num mundo melhor”.

“Se não somos parte de um todo maior, se não nos sentimos moçambicanos, se o que afeta Moçambique não me afeta a mim, não tenho limite para o meu consumo, para a minha avidez”, diz. No fundo, o jejum a que os cristãos são convidados a fazer na Quaresma também pode passar por aqui, por uma mudança na forma como se olham as tragédias ambientais, que não são só dos outros, porque “trata-se de renovar o sentido de pertença a um corpo maior, de pertença à Criação, e portanto tudo o que afeta as criaturas, a natureza, tudo o que afeta os meus irmãos em Moçambique, afeta-me a mim”, afirma.

“É um desafio muito profundo para nós, cristãos, porque muitas vezes vivemos a nossa vida de fé como uma dimensão separada de todas as outras, da família, do trabalho. Esta vida fragmentada em que vivemos, todos nós, a nível pessoal, a nível de sociedade, a primeira coisa a que nos leva é a uma vida individualista, ao ‘salve-se quem puder’. Vamos navegando para irmos levando a nossa vida, o nosso projeto, a nossa comunidade ou o nosso país a bom porto, muitas vezes esquecendo que fazemos parte de um todo muito maior, de uma história muito maior, que fazemos parte da Criação que aguarda a nossa vida comprometida”, defende Margarida Alvim, que acrescenta: “a nossa vida de fé tem que nos levar a uma conversão interior que se revele no nosso dia a dia”. E isso passa, necessariamente, pelas opções que se fazem em termos de consumo.

O apelo do Papa na mensagem para a Quaresma deste ano reafirma o que defende na encíclica ‘Laudato Si’, sobre a ecologia humana e a necessidade de cuidar da ‘Casa Comum’. Um documento que para Margarida Alvim “está ainda por explorar, e sobretudo por viver”. Mas não tem dúvidas de que “à medida em que experimentarmos a ‘Laudato Si’ em pequenas experiências na nossa vida, vamos perceber o alcance do que o Papa quer trabalhar connosco. Porque, no fundo, trata-se de olhar para o mundo e deixarmo-nos tocar pelo que está a acontecer, que são desastres ambientais sucessivos, catástrofes humanitárias, migrações, refugiados. O que é que fazemos com isto?”.

“Cada um de nós tem o seu papel concreto, numa realidade concreta, e o Papa fala muito nisso. A realidade é maior do que as ideias, porque às vezes queremos transformar o mundo a partir de ideias, e não com os pés na terra”. Os recentes protestos que mobilizaram jovens estudantes em todo o mundo, incluindo em Portugal, para lembrarem que não há um ‘planeta B’, podem significar que estamos num momento de viragem. “Uma aluna de 16 anos que, de repente, com a sua determinação, pôs o mundo a mexer, é importante”, afirma ainda a responsável pela ‘Casa Velha’, que lembra que para além da responsabilidade que cada um tem em mudar coisas que estão ao seu alcance, há que ter capacidade de ir levando as mudanças também às agendas políticas.

“Também se trata disso. Vemos como o Papa, tão sabiamente, tanto nos desafia a nós e aos nossos estilos de vida, como está a falar ao Parlamento Europeu, à ONU, à FAO. Por isso, o que é que isto tem a ver connosco? Até que ponto é que eu, de facto, devo viver uma vida mais coerente e ligada à natureza e a todas as pessoas, mas quando é que eu tenho que dar voz e participar mais politicamente em todos estes temas? Temos várias oportunidades de o fazer, e as próximas eleições europeias são uma das oportunidades”, acrescenta, lembrando que o secretário-geral da ONU, António Guterres, “também tem tido um papel chave em todas estas matérias, porque está muito consciente de que temos que trabalhar estes dois campos ao mesmo tempo, ambiental e social. Por isso há uma urgência política, mas também de todos nós como sociedade civil”.

Uma ‘Casa Velha’, para ajudar a nascer um mundo novo

Margarida Alvim está á frente da Associação Casa Velha - Ecologia e Espiritualidade, que nasceu em 2012, na quinta que pertence à sua família desde 1906. “Tenho essa sorte e essa responsabilidade, que não é um pormenor na história, porque é um lugar que foi cuidado pela nossa família ao longo de várias gerações, com este sentido de cuidado pelo bem comum, por aquela aldeia, aquela região, com respeito e com sentido de reverência também pela vida. E chegou a hora de ter que cuidar”.

Este pretende ser um espaço de encontro com a natureza, com as pessoas e com Deus. “Começámos a trabalhar com a comunidade e com vários amigos, e até ordens religiosas, que têm na ‘Casa Velha’ uma simples casa de família. No fundo é um Laboratório da Casa Comum e da humanidade”, explica.

A associação tem na direção um representante da Companhia de Jesus e um representante das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, de espiritualidade inaciana, por isso a dimensão espiritual nunca é descurada. “Há sempre um tempo de oração, de paragem individual, e depois de partilha, em comunidade. A própria Casa Velha tem crescido como um exercício espiritual”, explica.

Na Casa Velha recebem-se grupos de forma regular. “Trabalhamos na educação, com escolas do concelho, mas também com escolas que cada vez mais vêm da cidade. Porque a tensão cidade-campo é algo que é urgente trabalhar. E é um bocadinho este trabalho de nos religarmos à terra, sobretudo os mais novos, que estão completamente desligados da terra, que é a nossa raiz, e nós somos terra também. É tomar consciência da nossa verdadeira identidade. Porque quando tomamos, quando percebemos o valor da nossa história, é impossível não responder e não nos implicarmos, e neste caso é a experiência comunitária, através de grupos que ali se encontram, alguns todos os meses, outros de passagem. Algumas escolas já vêm regularmente para terem um tempo, um ritmo de vida diferente, ligado à natureza e à comunidade, cuidando da aldeia e das pessoas, que são os mais velhos e são os mais novos, cuidado daquele território que está abandonado e arder também, muitas vezes”.

Quem quiser saber mais sobre o projeto, e as iniciativas que ali são promovidas, pode consultar o site casavelha.org ou a página no Facebook. A quinta fica situada em Ourém, na aldeia de Vale Travesso. E Margarida Alvim deixa o convite: “nada como virem experimentar. São muito bem-vindos”.

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