CIMEIRA DO VIETNAME

E agora que Trump e Kim voltaram de Hanói sem um acordo? “O tempo está a apertar”

02 mar, 2019 - 16:06 • Tiago Palma

Há uma célebre pergunta de Abraham Lincoln que Trump parece querer incorporar na sua relação com Kim Jong-un: “Ao fazer de um inimigo um amigo, não estarei já a destruí-lo?” A cimeira falhou, era talvez previsível que falhasse, mas o caminho da diplomacia não se esgotou, garantem os analistas. No Vietname, ninguém quis ceder tudo. E dificilmente cederá, apesar da asfixia económica norte-coreana e da ameaça (nuclear) que Pyongyang é para os EUA.

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É bem mais aquilo que os separa. Trump exige a desnuclearização a Kim, total. Kim exige a Trump que levante as sanções económicas, totalmente. Ambos ficariam pelo meio termo na cedência e voltaram a Washington e Pyongyang sem acordo.

No entanto, para compreender a realização e causas do aparente (a diplomacia norte-americana nega-o) falhanço da cimeira de Hanói, no Vietname, entre os líderes norte-americano e norte-coreano, é preciso recuar e concluir que foi, no mínimo, uma cimeira precipitada. Isto porque a anterior cimeira, histórica, em Singapura, foi há tão somente oito meses e de lá não advieram avanços suficientes (foram positivos, até por ser os primeiros, mas vagos) para se crer, agora, que alguma das partes cederia no que já antes não cedeu.

Pode-se dizer, agora, que sem surpresa não o fizeram. Mas surpreende que tenham sequer avançado para o encontro no Vietname. Porquê? É que a paz é claramente podre entre Trump e Kim – o primeiro espiava o segundo e o segundo produzia mísseis à revelia do primeiro.

Vejamos: em janeiro, e já depois de Kim Jong-un, na sua mensagem de Ano Novo, ter declarado que pretendia encontrar-se com Trump "a qualquer momento" – as sanções asfixiam a já de si débil economia norte-coreana e urge suspendê-las para o ditador –, uma declaração que levaria, semanas depois, Mike Pompeo, secretário de Estado norte-americano, a encontrar-se (isto depois de um anterior encontro ter sido marcado e desmarcado entre ambos em novembro) em Washington com Kim Yong-chol, braço-direito de Kim Jong-un e interlocutor privilegiado nas negociações para a desnuclearização da Península Coreana.

Ao mesmo tempo que Pompeo e Kim Yong-chol se encontravam em Washington, decorria um encontro paralelo em Estocolmo (também com vista à negociação de nova cimeira) entre o ministra dos Negócios Estrangeiros norte-coreana Choe Son Hui e Stephen Biegun, o representante especial dos Estados Unidos para a Coreia do Norte.

Tudo apontava (e apontou) para a realização da cimeira. Mas os meses anteriores não. É verdade que logo após o primeiro encontro, o chefe da diplomacia americana, Pompeo, afirmou publicamente que uma segunda cimeira Estados Unidos-Coreia do Norte ocorreria "o mais depressa possível", garantindo que os norte-americanos continuavam a “avançar” relativamente aos acordos de desnuclearização] alcançados em Singapura. Mas não avançariam tanto assim. Estas declarações de Pompeo foram proferidas em outubro. Nos meses a seguir, a imprensa norte-americana, citando fontes da Casa Branca, referia que os satélites espiões detetaram “atividade contínua” numa fábrica em Sanumdong, perto de Pyongyang que produzia (até àquele encontro de outubro) mísseis balísticos – e que, nomeadamente, produziu o Hwasong-15, o primeiro míssil norte-coreano com capacidade para atingir os Estados Unidos da América.

É certo que podia ser somente uma suspeita, pois o que as imagens revelavam era a movimentação de veículos na fábrica, não havendo provas concretas de qualquer produção de mísseis balísticos intercontinentais. Em dezembro, porém, o caso mudou de figura e as suspeitas resultariam em certezas: imagens de satélite que a CNN obteve, destacavam melhorias significativas na base de mísseis de Yeongjeo-dong, cuja localização, no interior montanhoso da Coreia do Norte, era desconhecida dos norte-americanos e da comunidade internacional. Alguns dos mísseis lá produzidos seriam os tais ICBM, ou intercontinentais, muitos destes com capacidade para transportar ogivas nucleares.

Em comunicado, a Casa Branca referiria apenas que tem “acompanhado a Coreia do Norte de perto" e que "não discutirá informações confidenciais". A tensão era por demais evidente. E o falhanço da cimeira, não só pelo romper (à revelia) do acordo de Singapura, como pela desconfiança entre partes, evidente também.

Trump não cede e cimeira termina sem acordo
Trump não cede e cimeira termina sem acordo

Após dois dias de negociação, e antes do final previsto, Donald Trump, abruptamente – mas cordial e elogioso até – anunciou… que não haveria acordo a anunciar com Kim Jong-un.

“Estivemos o dia todo com Kim Jong-un. Ele é um bom tipo – uma personagem! – e penso que a nossa relação é muito forte. Tínhamos algumas opções, mas decidimos não optar por nenhuma delas. Vamos ver até onde é que isto vai… Foram dois dias muito interessantes e produtivos, mas às vezes temos de sair – e hoje é uma dessas vezes”, disse o Presidente norte-americano. E lembrou o que pode ter falhado: “Basicamente, eles [Coreia do Norte] queriam que as sanções fossem levantadas na sua totalidade e isso é algo que não podemos fazer. Eles dispuseram-se a desnuclearizar uma grande parte das áreas que nós queríamos, mas nós não quisemos abrir mãos das sanções em troca disso. Vamos continuar a trabalhar, mas tivemos de nos levantar da mesa perante esse pedido. Podíamos ter assinado um acordo hoje, mas eu não estaria feliz com esse acordo. Na realidade, já tínhamos documentos prontos a assinar, mas não pareceu apropriado. Prefiro fazê-lo bem do que rápido.”

À Renascença, Kelsey Davenport diretor de Política de Não-Proliferação da Arms Control Association, garante que o falhanço em alcançar um acordo em Hanói é apenas um “contratempo” e mas significa que a via diplomática “se tenha esgotado já”. “É imperativo que Trump e Kim deem mais força às suas equipas de negociação para que alcancem um acordo com passos concretos e verificáveis para reverter o programa de armamento nuclear da Coreia do Norte e para dar resposta às preocupações de segurança de Pyongyang. O tempo está a apertar”, lembra.

Por sua vez, Daryl Kimball, diretor-executivo daquela associação não-partidária dos EUA, acredita que nenhuma das partes pretende “apressar” um mau acordo. Mas terá sido apenas isso? Kimball responderia à Renascença, questionando: “Para perceber o que realmente aconteceu em Hanói, devemos perguntar-nos se Trump estaria preparado para propor um acordo que desse resposta às necessidades dos dois lados, e também se alguém – Trump, Kim ou talvez o conselheiro de Segurança Nacional [dos EUA, Michael Bolton] – se pôs no caminho desse acordo?”

Certo parece ser que Pyongyang é, apesar da diplomacia de Trump no seu discurso em Singapura, uma ameaça para os EUA, bem como para a Península Coreana. É o que explica Thomas Countryman à Renascença, ele que é o antigo responsável pelo controlo de armamento da Administração de Barack Obama. “A desnuclearização [da Península Coreana] e o estabelecimento de uma paz duradoura só podem ser alcançados através de diplomacia série e sustentada. Para que qualquer progresso aconteça, o Presidente Trump tem de evitar voltar à sua perigosa linguagem sobre ‘fogo e fúria’ e às arriscadas jogadas diplomáticas de 2017.”

E Trump parece estar realmente disposto em moderar a linguagem bélica do passado, garantindo ainda em Hanói. “Eu confio nele [Kim Jong-un], na sua palavra e espero que seja verdade que não pretende voltar a testar mísseis nucleares. Não desistimos de nada e, francamente, acredito que vamos acabar por ser bons amigos, com o Presidente Kim e com a Coreia do Norte."

Por ora, Trump, falando de uma relação de amizade com Kim, vai dando corpo (o Presidente dos EUA, que outrora ameaçou o ditador norte-coreano com os "maiores exercícios militares de sempre" na Península Coreana, ordenou esta sexta-feira a interrupção dos exercícios militares conjuntos com a Coreia do Sul) a uma célebre e bem apropriada expressão, ou interrogação, de outro Presidente norte-americano, Abraham Lincoln: "Do I not destroy my enemies when I make them my friends?", ou seja, “Ao fazer de um inimigo um amigo, não estarei já a destruí-lo?”

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