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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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​Pequenos heróis ignorados

26 fev, 2019 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Este projeto com cães terapeutas é pioneiro mas em Espanha os cães já há algum tempo que trabalham com vítimas de violência doméstica, nomeadamente na proteção e companhia oferecida a mulheres que foram objeto de violência machista.

Na semana passada, a Cadena COPE, congénere da Renascença na vizinha Espanha, emitiu uma reportagem que trouxe a público o inovador trabalho de Bosco, Venus e Pot. Estes três cachorros são cães terapeutas que trabalham com crianças vítimas de violência familiar. O projeto retratado está a ser implementado em A Coruña, mais precisamente na jurisdição de Betanzos, num esforço conjunto da Fundação Maria José Jove e a APICO (Associação pela Igualdade e Coeducação).

Os cachorros foram treinados para ajudar as crianças a recuperar dos inúmeros traumas sofridos em ambientes familiares de uma disfuncionalidade difícil de conceber e cujo sofrimento, intenso e persistente, não termina com a horrível tragédia da violência continuada, nem com a tentativa de homicídio da sua mãe ou, mesmo, da sua morte, mas deve ser recordada e revivida inúmeras vezes durante os procedimentos legais tão tardiamente convocados, como seja o julgamento do (ex)companheiro da progenitora, muitas vezes o próprio pai.

Como refere a jornalista Noela Bao, detrás destes dramas há todo um universo familiar do qual uma denúncia por abuso é só um momento pontual, uma vez que essa denúncia desencadeará – e muito bem – as investigações pertinentes, as declarações perante o juiz, o estabelecimento do regime de cuidado dos menores… e tudo isto se ainda se está a tempo de evitar o pior. Todos esses procedimentos são complexos e difíceis para os adultos – por isso se fala da necessidade de criar estruturas de proximidade e de melhorar a legislação no sentido de fornecer mais apoio e conforto às vítimas e de agilizar os processos – mas resultam incrivelmente dolorosos, assustadores e incompreensíveis para a criança, obrigada a lidar com técnicos atentos mas que lhes são desconhecidos.

É aqui que surge este projeto: o seu objetivo é – nas palavras dos promotores – «empoderar» as crianças, aumentando a sua confiança e reduzindo o stress e os traumas provocados por uma cadeia de sucessos a que nunca deveriam estar expostas. Espera-se que o vínculo estabelecido com o cão terapeuta possa significar o início de uma amizade desinteressada que as ajude a sarar as feridas e a viver de forma plenamente funcional. Este projeto com cães terapeutas é pioneiro mas em Espanha os cães já há algum tempo que trabalham com vítimas de violência doméstica, nomeadamente na proteção e companhia oferecida a mulheres que foram objeto de violência machista. Estes animais são preparados para viver em família e interagir adequadamente com as crianças, apesar de terem aprendido a defender a sua dona e a dar sinal de alarme quando o potencial abusador se aproxima. Infelizmente, os abrigos de que estas famílias podem usufruir não permitem a estadia de animais e muitas mulheres não recorrem a essa ajuda para não deixar para trás esse outro membro do grupo.

Esta reportagem é importante pela esperança que nos deixa quanto aos meios que podemos convocar para melhorar a vida e a reintegração das vítimas de violência e não é necessário ter muita imaginação nem conhecimentos técnicos para se compreender que o trabalho destes animais especiais pode fazer uma grande diferença, tal como já faz com pessoas que enfrentam outro tipo de dificuldades ou limitações. Mas também é importante por nos fazer pensar nestes pequenos heróis silenciosos e, frequentemente, ignorados pela comunicação social e os cidadãos em geral, que são as crianças destas famílias.

Do ponto de vista legal e do ponto de vista dos cuidados, é preciso ter em consideração as necessidades específicas destas crianças, sobretudo as que ficam órfãs, já que, nesse caso, se torna imperioso encontrar um novo lar, um encarregado de educação habilitado e confiável, e garantir que a criança recebe a pensão necessária para a sua subsistência e educação nessa nova família, independentemente do regime contributivo da mãe desaparecida. Tal como relativamente às vítimas de abuso sexual, precisamos ouvir as vítimas para nos comovermos, para nos movermos, para perceber o que realmente está em causa. E precisamos de acompanhar o seu calvário em busca da possível normalização das suas vidas para podermos acreditar que vivemos numa sociedade humana e digna.

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