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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Trancão na Galileia

01 fev, 2019 • Opinião de Henrique Raposo


Não há no país inteiro um local tão carregado com a ideia cristã de recomeço. O que era símbolo de morte e poluição vai ser símbolo de esperança e alegria.

Meu caro jovem católico, tens de conhecer a história do local que vai acolher as próximas jornadas da juventude. Tens de conhecê-la como português e como católico. Como português, tens o dever de conhecer a tragédia e a pobreza que estão a montante daquela fronteira entre Lisboa e Loures. Como católico, deves estar atento ao potencial de redenção desta história.

Em 1967, cerca de 700 pessoas morreram nas cheias da região de Lisboa, o maior desastre natural da história recente de Portugal. Além do Tejo, as cheias tiveram como palco um grande mas escondido sistema fluvial a norte da cidade: Ribeira de Frielas (que apanha a Ribeira de Odivelas), Rio de Loures, Rio Trancão; a ribeira e o Rio de Loures desaguam no Trancão, que depois vai desaguar no Tejo. Juntos, estes três cursos de água formam um vale a norte da cidade. Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, meu caro amigo, este foi o vale da morte.

A maioria das vítimas morreu afogada na lama destes três pequenos rios. Mas porque é que as pessoas estavam ali?, podes tu perguntar. Bom, estes portugueses invisíveis faziam parte do último êxodo rural do século XX europeu: nos anos 50, 60 e 70, centenas de milhares de alentejanos, beirões, minhotos e transmontanos acorreram às oportunidades económicas da Grande Lisboa. Como não havia casas, construíram barracas. As margens dos rios e ribeiras foram os locais escolhidos para esses bairros de lata por razões óbvias: sem água canalizada, estas comunidades perdidas entre o campo e a cidade precisavam de água para alimentação e para a higiene possível.

Além da morte de 1967, este sistema fluvial, sobretudo a parte final do Trancão, já em cima de Sacavém, era conhecido pela sua poluição – esgotos e poluição industrial. Sei que para ti será quase impossível acreditar, mas o certo é que o Trancão era um dos rios mais poluídos da Europa, e era de longe o mais poluído de Portugal.

A pestilência que varria a zona de Sacavém era uma das marcas mais negras de quem viva a norte da cidade. O rio era poluído pelas tais fábricas do grande crescimento económico dos anos 50, 60 e 70. Ou seja, as pessoas viviam em barracas e trabalhavam em fábricas que lançavam no Trancão uma poluição oitocentista. Tudo começou a mudar com o anúncio da Expo 98. No início dos anos 90, as autoridades começaram a limpar o Trancão, o que parecia uma tarefa quimérica e até risível. Se para ti vai ser difícil acreditar que aquele sítio era o símbolo da poluição, para mim - na época - era impossível acreditar que o Trancão poderia voltar a ser um rio. Mas a verdade é que chegámos a esse dado inverosímil: a foz do Trancão, no Mar da Palha, é hoje em dia um local aprazível, famílias fazem ali piqueniques no fim-de-semana, os circos instalaram-se naquele prado verde.

Quem escolheu a foz do Trancão como espaço para as jornadas da juventude não teve obviamente nada disto em conta. Do ponto de vista da organização, aquele é só um espaço amplo à beira Tejo. Mas a verdade é que não há no país inteiro um local tão carregado com a ideia cristã de recomeço. O que era símbolo de morte e poluição vai ser símbolo de esperança e alegria. Vai e espalha a boa nova: nada está destinado à morte. O Trancão é o Mar da Galileia.

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  • Vera
    03 fev, 2019 Palmela 21:31
    Olá Henrique Raposo, foi realmente uma tragédia que aconteceu com as cheias de 1967, o Trancão não Aguentou tanta água talvez pela poluição, ou talvez porque os afluentes também estavam entupidos de resíduos das fábricas e o percurso das águas galgou para as margens, a ribeira de Odivelas sei eu como foi, porque nessa altura morava perto! estudava em Lisboa e telefonaram-me a dizer para não ir para casa! fiquei em casa da minha tia durante uma semana, porque à volta de Odivelas os passeios desapareceram: as terras envolveram centenas de pessoas que os bombeiros desenterraram, as casas dos mais pobres desapareceram, havia automóveis pendurados nas árvores... Era este o cenário que encontrei, quando os transportes começaram a circular e consegui ir para casa! falta de água, falta de luz! tudo destruído, parecia uma cidade fantasma! Talvez por isso, o Henrique Raposo chame ao Trancão o mar da Galileia, que também lhe chamam o mar Morto! e que o Papa Francisco sem saber, é lá nas margens do Trancão, que o vão esperar para fazer o Encontro Mundial da Juventude! Há coisas que se conjugam por arte mágica de Deus: um local que deu numa tragédia, vai agora ser abençoado! ao fim de 50 anos.