Dulce Maria Cardoso: “Somos todos herdeiros de Salazar”

22 dez, 2018 - 09:26 • Maria João Costa

“Eliete – a vida normal” é o novo romance de Dulce Maria Cardoso. A autora de “O Retorno” regressa para contar a história de Eliete. Num romance que diz ser sobre a “identidade”, Salazar está presente, porque diz a autora “somos todos herdeiros” de Salazar.

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Sete anos depois de “O Retorno”, a escritora Dulce Maria Cardoso regressa ao romance. “Eliete – a vida normal” anuncia-se como um primeiro volume de uma história que tem como personagem central, uma mulher com a qual a autora, Dulce Maria Cardoso se identifica. Eliete foi um dos nomes que o pai “enviou por carta” e que lhe quis dar.

“A Eliete também sou eu. Quer dizer, não sou eu como na resposta do Flaubert sobre a Madame Bovary, mas também sou eu como o Rui de “O Retorno” que também era eu”, afirma a autora no inicio da nossa conversa. Dulce Maria Cardoso esclarece: “Eu sou todas as personagens que vou criando, porque à medida que elas existem na minha cabeça existem em mim. Se vivo muitas horas com estas personagens, sou eu também. Sou eu, eu, Dulce, uma parte delas.”

No livro conhecemos Eliete como uma mulher de meia idade que nasceu no ano da revolução de abril. De alguma forma é um retrato, também, do país pós-revolução que surge perante o olhar do leitor.

A Dulce Maria Cardoso interessou escrever um livro sobre a “identidade”. A escritora explica que “há algumas frases no romance” que são suas “de outros romances” em que assume é ela própria “a brincar” consigo.

Eliete é, “portanto, um romance sobre a identidade” clarifica Dulce Maria Cardoso que acrescenta: “De repente, eu percebi que, com muita pena minha, eu sou herdeira do Salazar, somos todos. Ele governou o país durante demasiado tempo e foi uma presença tão forte no país, que de alguma maneira nós somos todos herdeiros. Podemos ter

consciência disso ou não, mas somos todos herdeiros dele. E, portanto, ele que não deixou herdeiros físicos, deixou estes herdeiros todos. E eu, interessou-me pensar sobre isso.”

António de Oliveira Salazar está no livro no inicio e no fim. De resto, o subtítulo “A vida normal” remete para a “maneira como ele convenceu os portugueses á ditadura”. Nas palavras da autora, “há muito de salazarento em muitas das personagens, só que não de uma forma direta”.

Um romance dos tempos modernos

Eliete é uma agente imobiliária e tem duas filhas. Vive “neste mundo” diz Dulce Maria Cardoso que na entrevista que pode ouvir no programa Ensaio Geral da Renascença, explica que quis retratar uma personagem que vive em 2016. “A internet está la, as redes sociais estão lá, o Facebook está lá, o “Tinder” está lá. E, portanto, é difícil tornar isso matéria literária, porque não há tradição. É como se isso não fosse suficientemente nobre ou fosse uma coisa de entretém. Mas não é, porque nos está a mudar profundamente, e nós somos outros porque isso existe. Comportamo-nos de outra maneira e sentimos de outra maneira” explica Dulce Maria Cardoso que conclui: “Ignorar isso significa divorciarmo-nos da vida real, e isso nunca é muito bom, porque perdendo a identificação é mais difícil criarmos empatia. Se estamos cada um a falar do seu ponto de vista, de um ponto de vista autista, não estamos a comunicar e a escrita é uma arte de comunicação.”

O leitor entra na vida de Eliete no momento da hospitalização da avó que a leva a repensar a vida e a mergulhar nas memórias. Segundo a autora nos livros “tem de haver identificação, senão não conseguimos continuar a ler, não nos identificarmos”. Para Dulce Maria Cardoso “o grande conforto da literatura é servir-nos de espelho”, por isso a ideia de “vida normal existe para falar da mudança e como estes tempos são de mudança”.

A escritora que se estreou em 2001 com “Campo de Sangue” refere que escolheu a ideia de “normalidade estrategicamente”. “Todas as vidas vistas ao perto são anormais, mas a normalidade é uma capa por baixo da qual tudo pode acontecer. De alguma maneira, temos o olhar anestesiado para aceitar essa normalidade” sublinha a autora.

O mistério da existência das personagens

Passado grande parte em Cascais, “Eliete” é um livro onde as personagens femininas têm um papel central. São vidas que vão acontecendo á vista da autora Dulce Maria Cardoso à medida que a escrita se vai desenrolando. A escritora que criou Rui que protagoniza “O Retorno” explica que “a única coisa misteriosa que há na escrita é exactamente a existência das personagens, como elas se apresentam” diz Dulce Maria Cardoso que assum “não controlar” as suas personagens.

“Eu nunca me sentei a dizer “Vou escrever sobre uma mulher desta idade, que se chama assim, que tem este aspecto”. Não! Vou avistando muito ao longe, como na vida real se avista uma pessoa e depois vou conhecendo – “Ah! Afinal chama-se assim. Ah! Tem esta idade. Ah! Faz aquilo. É casada.” Por exemplo, eu não queria que Eliete existisse com filhas, porque me dá mais trabalho e porque sou um bocadinho preguiçosa. Mas ela existia sempre com filhas, ou seja, ela falava de filhas”. A Márcia e a Inês impuseram-se á autora, “porque era como se ela não ficasse completa se não tivesse as filhas” explica Dulce Maria Cardoso.

As vontades das personagens trocam muitas vezes as voltas á escritora. “Por exemplo, logo no primeiro capítulo aparece a mãe e a Eliete no hospital a verem a avó. A mãe e ela nunca se deram bem e, portanto, é estranho estar ali no hospital. Mas tentei reescrever o primeiro capítulo sem a mamã e aquilo não funcionava. Portanto, há uma lógica que eu não sei explicar. E talvez se eu soubesse explicar perdia o interesse na escrita” clarifica Dulce Maria Cardoso que fala contudo, “num processo inconsciente”. “Sou eu que faço o trabalho inverso, que tenho de procurar o caminho.” Nesse processo misterioroso de construção das personagens, Dulce Maria Cardoso explica: “É como se eu tivesse o ponto A e depois o ponto C e tivesse de descobrir o ponto B para fazer o percurso.”

Eliete, segunda parte?

Eliete anuncia-se como a primeira parte de algo que ainda irá sair. A autora não sabe se esta será uma trilogia. Dulce Maria Cardoso deixa a sua escrita ser conduzida pela vontade das

personagens. Embora a autora admita que “não tinha ideia de fazer o livro dividido”, “de repente” percebeu que “tinha mil páginas e ainda estava incompleto”.

A autora de “Os Meus Sentimentos” com que ganhou o Prémio União Europeia para a Literatura em 2005 diz na entrevista á Renascença que ficam “muitas pontas soltas” neste novo romance. Embora considere que Eliete “existe sozinho”, há ainda mais para escrever sobre a história desta mulher. “Vamos imaginar que me dava qualquer coisa e eu não podia concluir, eu acho que Eliete vale por si, mas ficam pontas soltas. Mas na vida também ficam muitas pontas soltas, não é?” interroga Dulce Maria Cardoso a autora de “Eliete – a Vida Normal” que chegou ás livrarias pela mão da editora Tinta-da-China.

Comentários
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  • ADISAN
    25 dez, 2018 Mealhada 16:48
    Em minha opinião, os grandes herdeiros de Salazar foram os políticos que lhe herdaram, não só o lugar mas também o ouro que ele deixou, pois, ao contrário dos seus sucessores, não levou nada.
  • fanã
    22 dez, 2018 aveiro 17:35
    Bem ...........deixo o meu quinhão de herança do Salazar de bom grado a Sra. Dulce , de Salazarento nada tenho !!!!!!

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