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Reportagem

​Inclusão fora da moda

27 nov, 2018 • Liliana Carona


Carolina, professora universitária, Ricardo, informático, e Miguel, atleta paralímpico, fazem parte da percentagem da população portuguesa que tem nanismo. As diferenças e as dificuldades começam logo na altura de comprar uma simples peça de roupa.

Em Portugal há 600 pessoas com displasias ósseas, das quais 400 têm acondroplasia, uma das formas mais comuns de nanismo. A patologia tem como uma das consequências visíveis, a baixa estatura. Mas há outros quadros clínicos que também impedem o crescimento normal da pessoa.

A percentagem a nível nacional, de prevalência de baixa estatura, é de cerca de 2,5% da população incluindo todos os diagnósticos. Com poucos centímetros além de um metro de altura, as dificuldades passam por diversas áreas da vida e uma delas, menos visível, mas que provoca preconceito, entre piadas e olhares indiscretos. É a hora de ir às compras, não há roupa ou calçado que sirva. Uma vida de ajustes caros e constantes e projetos que não chegam a sair da gaveta, por falta de apoios. Experiências de vida de três pessoas com nanismo: uma professora universitária, um informático e um atleta paralímpico.

“Nunca comentei estas questões de roupa com ninguém, só com a minha mãe”, explica à Renascença Miguel Monteiro, atleta paralímpico de 17 anos, ao abrir o guarda-fatos, paredes meias com uma estante repleta de troféus e medalhas.

Retira um par de calças, as preferidas, para dizer que as veste, graças ao trabalho da costureira, que em Mangualde, lhe deixa a roupa toda a medida. Rosa Dias, 46 anos, é costureira, a trabalhar desde os 16 anos. Não há peça de roupa a que não consiga dar a volta desejada.

“Fatos de treinos, equipamentos, camisas, calças, tenho que por tudo às medidas dele”, conta Rosa ao mesmo tempo que pega na tesoura para fazer mais uma bainha às calças de Miguel, que olha, encolhendo os ombros. “As calças tinham rasgos ali abaixo que agora foram cortadas, perderam o efeito, ficam uma espécie de bermudas”. “É muita quantidade a cortar, e não é possível manter o mesmo corte e a mesma bainha”, realça a costureira.

Miguel não é o único cliente de Rosa, com baixa estatura, e por isso a costureira acredita que “se sentiriam melhor indo às compras e adquirir roupa à medida”.

Atleta paralímpico adapta roupa oferecida para representações oficiais

Arranjar toda e qualquer peça de roupa que seja comprada nas grandes superfícies ou no comércio tradicional faz parte da rotina da mãe de Miguel, Isabel Marques, 47 anos.

“A acondroplasia é um tipo de nanismo onde a principal caraterística é ter os ossos longos mais curtos. No ano passado ainda lhe comprei roupa de 14 anos, mas agora tenho que encontrar alternativas. O mesmo acontece com as partes de cima, e não há à venda, sem adaptações. Vamos ao mais barato, mas depois ainda gastamos mais dez ou vinte euros em arranjos”, relata, acrescentando que o filho, “neste momento veste 38 de homem em calças, e quase metade a um terço da perna tem que ser cortado”.

Em 2016, Miguel, com 1 metro e 28 centímetros de altura, conquistou o 3º lugar no Campeonato Europeu do Comité Paralímpico Internacional (IPC) e três meses depois, viria a ser o atleta português mais jovem de sempre a chegar aos Jogos Paralímpicos.

O Comité Paralímpico ofereceu-lhe roupa para representar Portugal no Rio de Janeiro. Mas nada estava adaptado à sua estatura. “Toda a roupa teve que ser alterada, o blazer, as calças, essas coisas trazem custos, e uma roupa que era supostamente de graça, ficou cara, e na altura questionámos se não havia roupa adaptada, se são paralímpicos, devia existir” defende Isabel.

Contactado o Comité Paralímpico de Portugal, o mesmo não quis prestar declarações, afirmando, através do seu gabinete de comunicação, que a questão da roupa não é uma questão desportiva e acrescentando que à altura dos acontecimentos, seria outra a administração responsável.

Isabel insiste: “mandam fazer as roupas, mas deviam no meu parecer ter isso em conta, conforme o Miguel, temos também aqui em Mangualde, o João que tem trissomia, e também tem estatura baixa, e quando são estes eventos oficiais, não há roupa adaptada, aliás no ano passado quando foi para Londres, ofereceram-lhe umas sapatilhas de senhora, obviamente que nunca as calçou”, recorda.

Miguel não gosta de ir às compras

Em Portugal, Miguel, a concluir o ensino secundário, é o único lançador de peso com baixa-estatura. Dos equipamentos desportivos ao calçado, calça 37, tudo é complicado de adquirir.

Miguel não gosta de ir às compras. “Normalmente vemos os artigos que há e vamos aos provadores, experimentamos, vemos o que é preciso cortar e alterar com alfinetes”, diz, interrompido pela mãe Isabel. “Ele gosta pouco de vestir e despir roupa”. Mas Miguel clarifica, “penso que é importante estar na moda, é uma forma de nos sentirmos bem connosco e de nos identificarmos com os outros, era importante ter roupa para mim para sentir-me bem comigo mesmo”.

Os alfinetes no bolso, ou pedidos na hora, às lojistas, acompanham a mãe de Miguel, numa ida às compras, que é sempre orientada para a secção infantil. “Perguntamos se tem camisolas para ele, e encaminham-me para a secção infantil. Essencialmente a roupa tem que lhe servir na anca, o resto já sei que tenho que cortar. Tenho a certeza que se algumas marcas fizessem tamanhos mais pequenos, iriam ter sucesso e outras lhe seguiriam. Há lojas que já estão especializadas em roupa muito grande, se calhar seria bom fazer roupa mais pequena”, considera Isabel, enquanto o filho, Miguel assume que para ele, “a integração é o inserido sentir-se bem na sociedade sem ser diferenciado pela roupa”.

A importância da roupa para um adolescente é sentida pela mãe de Miguel Monteiro. Isabel considera que Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer na inclusão. “A pessoa para se integrar tem que ser um todo, esta questão da moda, as pessoas querem integrar, mas só um bocadinho, acho que Portugal ainda tem muito que aprender em termos de integração, não é só dar trabalho, mas pensar em todo o bem-estar psicológico da pessoa”, arroga.

“Um adulto ter que se vestir numa loja de crianças, não dignifica a pessoa”

A pessoa tem que se sentir bem e a roupa que vestimos, que, nos faz sentir ou não confortáveis, não é um assunto supérfluo ou fútil, alerta Inês Alves, a presidente da direção da ANDO Portugal, a Associação Nacional de Displasias Ósseas, criada em 2015.

“Confesso que nunca vi um homem, com displasia óssea, com calçado clássico, porque não há mesmo, são encomendas caras e complicadas. A roupa é mais fácil de adaptar. Aquilo que nós vestimos encarna a nossa personalidade e ao contrário de outras doenças, as displasias têm que acarretar o estigma social. Uma pessoa adulta ter que se ir vestir numa loja de crianças e faltar-lhe a componente de sobriedade que algumas pessoas precisam nos seus trabalhos, pode ser complexo. Não dignifica a pessoa”, refere.

Inês Alves recorda um projeto que a ANDO Portugal chegou a acompanhar junto de uma designer alemã, Sema Gedik, que tentou recolher dados biométricos e criar um conjunto de roupa pessoas com nanismo. Não resultou.

“Na altura em que foi criada a nossa associação, a designer alemã criou um conjunto de roupa para pessoas com acondroplasia, que é uma das displasias mais frequentes, recolheu dados biométricos de tamanhos e proporções, só que depois não teve viabilidade, tornar o número de encomendas viável para por uma empresa a fazer”, relembra.

“Estado devia, numa primeira fase, apoiar as empresas”

Houve em Portugal quem também tentasse, na área do calçado, criar uma marca para homens e mulheres adultos que calçam pequeno. Ricardo Bastos, 43 anos, licenciado em informática a trabalhar como consultor imobiliário, tem nanismo, e de altura 1 metro e 5 centímetros.

Vive em Tondela e chegou a trabalhar numa empresa de calçado, e foi nessa altura, há três anos, que decidiu tentar criar um projeto inovador, que ficou pelo caminho.

“Tentei implementar modelos de calçado de adulto para pessoas com baixa estatura, mas, o problema são mesmo os fornecedores. São precisas peles, moldes, e para fazer um par ou dois, ou fornecedores viam isso como um custo, não iam mandar fazer um molde de umas solas que custam 300 euros para depois fazer duas ou três solas”, desabafa.

Ricardo defende, por isso, mais apoios, não às pessoas com nanismo, mas às empresas. “Não direi apoiar as pessoas com subsídios porque isso não é o problema. A solução é dar incentivos às empresas de calçado para avançarem com isso. Se esses apoios existirem por parte do Estado, numa primeira fase, nos primeiros custos, o retorno acabará por vir”, afirma.

Aos 43 anos de idade, Ricardo, quando vai às compras continua a ser encaminhado para a secção infantil. “A roupa é sempre na secção infantil que compro, tamanho 9, 10 anos em camisas e depois tenho que ir à costureira com as calças. Embora sejamos de baixa estatura, somos adultos e gostamos de vestir o mesmo que as pessoas de estatura normal vestem e calçam. Fico limitado nas minhas escolhas. Não vou andar com camisas com bonecos”, refere, contando ainda que “nesses tamanhos, toda a roupa tem padrão infantil”.

Até para a própria autoestima da pessoa seria importante, defende Miguel, “porque a pessoa acaba por se sentir menos integrada na sociedade, ter roupa para o nosso tamanho era uma forma de nos sentirmos mais iguais às outras pessoas e mais capazes”.

O preconceito existe e na página de Facebook de Ricardo nada indica que esteja ligado à área da animação ou artes circenses. No entanto, as propostas inconvenientes são uma realidade com a qual teve que aprender a lidar. “Eu pessoalmente não aceitaria, há animações construtivas e as depreciativas, uns acham-nos engraçados outros ainda têm preconceitos, pensam que não executamos as mesmas tarefas”, esclarece.

“Vestir roupa de criança contribui para aumento da discriminação”

Neuza Silva, psicóloga clínica e investigadora de pós-doutoramento na Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra, integra um projeto que está a ser implementado em Portugal, em conjunto com o Hospital S. João do Porto e cujo objetivo foi desenvolver um questionário para avaliar a qualidade de vida de crianças e adolescentes com baixa estatura.

Neuza não tem dúvidas em afirmar que o vestuário e a moda contribuem para a integração das pessoas com baixa estatura. “Uma das coisas que tem sido referido em estudos internacionais, é que um dos fatores que contribui para o isolamento social, é o facto de os outros olharem para as pessoas com baixa estatura como sendo mais novos, ou seja a questão da infantilização. O facto de um adolescente vestir roupa de criança, vai contribuir para o aumento desta infantilização por parte dos pares e ao mesmo tempo, aumenta a probabilidade de discriminação e de bullying, pela questão da diferença, por não poderem vestir aquela roupa de marca ou calçado”, sublinha a investigadora.

Portugal é um país inclusivo? “Esta é uma questão muito importante para a adaptação destas pessoas. Não podemos dizer que somos todos inclusivos, estas pessoas que são diferentes da norma, ainda enfrentam muitas dificuldades no seu dia-a-dia”, realça a psicóloga clínica, confirmando ainda que a baixa estatura não é uma característica física apenas de pessoas com nanismo.

“Consideramos baixa estatura com uma definição estatística que equivale a menos dois desvios padrão em relação à media para a idade, sexo e nacionalidade e existem muitos diagnósticos que podem ter a baixa estatura como consequência: o défice de hormona de crescimento, a baixa estatura idiopática, o síndrome de Turner, o síndrome de Silver-Russell, malformações congénitas, maus-tratos ou malnutrição”, desvenda.

Professora compra calçado na secção infantil das lojas

Sentada frente ao computador, a responder a e-mails dos 150 alunos das aulas de estatística e genética, Carolina Lemos, 39 anos, é professora da Universidade do Porto, tem acondroplasia, 1 metro e 17 centímetros de altura.

É também investigadora no ICBAS – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Acabou o doutoramento em 2004, no âmbito da estatística aplicada à genética e doenças neurodegenerativas.

Habituada a ir a congressos, o maior problema é o calçado, calça 31, que só encontra na secção infantil das lojas. “É tudo muito cor-de-rosa, tudo brilhante e com a Barbie, não é fácil usar esse calçado, e as crianças têm um pé mais fininho. E as adaptações na roupa acarretam mais custos. Já me aconteceu comprar vestidos, que ficaram mais caros os arranjos do que os vestidos em si”.

O momento raro em que Carolina encontra um vestido quase à medida, é vivido com euforia. “Tive sorte, em setembro, encontrei um vestido que foi só fazer bainha, mas é engraçado que para mim foi um momento de alegria, que se calhar para a outra pessoa seria algo banal”, comenta.

E quando Carolina encontra o par de sapatos perfeito, compra a pensar num futuro longínquo. “Chego a comprar logo dois pares das mesmas botas, se estão ótimas, tento garantir que não tenha de passar pelo mesmo”. O mesmo aconteceu com os collants, quando descobriu que alguém lhe podia fazer umas à medida das suas pernas.

“Acho que sou abençoada, quando andei na faculdade, o marido de uma amiga trabalhava numa empresa de meias e ele fez-me meias à medida, e eu comprei-lhe uma resma de meias, para poder ter meias até ser velhinha”, adianta Carolina Lemos.

Uma professora universitária, um informático e um atleta paralímpico, sonham com o dia em que vão poder entrar numa loja e escolher roupa sem alfinetes, arranjos ou dobras. Não sabem se algum dia vão ser ouvidos.

Mas fica um último apelo às empresas para pensarem em grande para os pequenos tamanhos. “Eu gostava que as novas gerações não tivessem que passar por todas estas adaptações” apela Carolina.

Já Ricardo diz que, “o não é sempre garantido e não nos deve desmoralizar, o sim há de chegar”.

E o atleta Miguel pretende que as empresas “pensem em todos, e não só em fazer tamanhos cada vez maiores, mas também menores, pois será uma forma de integração de todos e não só de alguns”.

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  • Diogo Costa
    28 nov, 2018 Lisboa 10:23
    Boa noticia! Muito importante haver divulgação dos problemas das pessoas com displasias ósseas. O número de pessoas é que está errado. Aliás, nem sequer podem dizer com certeza que há esse número de pessoas com displasias ósseas, visto que não há um registo nacional e, por isso, ninguém sabe ao certo quantas pessoas são. A nossa estimativa vai à volta das 1000 pessoas. E a incidência de nanismo é mesmo assim tão alta? O nanismo por falta de GH tem tratamento com bons resultados, pelo que me admira muito haverem 250.000 pessoas com nanismo no nosso país, embora isso potenciasse muito alguns aspetos da nossa causa, como as acessibilidades.