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Entrevista a Ruba Salih

Cortar fundos da ONU para palestinianos é uma forma de “negar o direito ao regresso”

06 jul, 2018 - 07:30 • Catarina Santos

O direito a regressar aos territórios palestinianos está cada vez mais “marginalizado na agenda diplomática”, mas “desistir é retirar sentido a 70 anos de exílio”. Entrevista com a investigadora palestiniana Ruba Salih, que vê a Europa a lidar de forma “patética” com os refugiados e a explorar o “medo visceral das pessoas que sofrem”.

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Para as Nações Unidas, são definidos como “pessoas cuja residência era a Palestina no período entre 1 de Junho de 1946 e 15 de Maio de 1948, e que perderam a casa e os meios de subsistência em resultado do conflito de 1948”, com Israel. Quando a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) foi criada, em 1950, assistia 750 mil pessoas. Hoje há cinco milhões de palestinianos que dependem da sua ajuda.

Vivem há 70 anos numa “emergência permanente” mas, para as novas gerações de refugiados palestinianos no exílio, a noção de justiça vai além da ideia de regresso – tem a ver com liberdade, com “o direito a ter direitos”, diz a investigadora Ruba Salih, em entrevista à Renascença.

Ruba Salih é ela própria descendente de refugiados palestinianos, que deixaram o país depois da criação do Estado de Israel, em 1948. Cresceu em Itália na década de 1970. “Tornei-me um ser humano completo quando recebi um passaporte”, contava numa Ted Talk em Londres, em 2016. “Com isso tive acesso ao direito de me mover, de ficar, de ser diferente sem ter medo, de decidir o meu futuro, de participar no funeral da minha avó ou ver o meu tio no leito de morte, quando nenhum dos meus familiares, que não tinham o passaporte certo, o podiam fazer”.

Hoje uma antropóloga social “apaixonada pelos menos privilegiados”, nas palavras da própria, Ruba Salih é membro da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres (SOAS) e estudou a cultura política dos refugiados palestinianos e o seu imaginário de direitos, na Palestina, Líbano e Jordânia. Passou por Lisboa por estes dias, para participar na “Migration Conference”, que reuniu centenas de peritos na área da migração no Instituto Superior de Economia e Gestão.


Disse na sua apresentação que os refugiados palestinianos vivem em "permanente provisoriedade". O que quer isto dizer?

As teorias para entender o fenómeno da migração derivam muitas vezes de uma maneira europeia de conceber os direitos e o acesso aos mesmos. E também de uma maneira europeia de percecionar o tempo e o espaço, em que os apátridas ou os refugiados são vistos como pessoas que vivem uma emergência, que durará pouco tempo nas suas vidas, e que se encaminham para algum tipo de cidadania, reinstalação ou repatriamento.

É um entendimento muito válido, mas também muito limitado, porque não capta a realidade da maioria dos refugiados que vivem em sítios diferentes do mundo, particularmente no Sul global e na área onde eu fiz grande parte da minha investigação – o Médio Oriente, sobretudo entre refugiados palestinianos.

A noção de emergência... é de um tipo de emergência permanente. Temos quatro gerações, por vezes, de experiências de exílio e na condição de refugiado. O que significa que temos de reconsiderar as nossas categorias, para compreender o que significa viver num estado permanentemente provisório.

Também concluiu nas suas investigações que há uma consciência política nesses lugares, que as pessoas não estão simplesmente paradas à espera, têm de seguir com as suas vidas e com as suas ideias políticas.

Sim, a segunda parte da minha apresentação foi refletir sobre o que acontece nestes lugares de permanente provisoriedade, em que a vida está suspensa durante toda a sua duração, bem como a dos filhos e dos netos. O espaço que foi concebido enquanto espaço e tempo de emergência torna-se o espaço de toda a vida.

Na maioria das vezes, concebemos os refugiados como alguém que precisa de ajuda humanitária, num sentido de vitimização. Mas quando toda a tua vida é vivida de forma temporária, tens de atingir algum tipo de estatuto político, cultural e social.

Tentei mostrar que os refugiados palestinianos, por exemplo, são um caso muito particular. Por serem dos refugiados mais prolongados no mundo, transformaram os campos – que eram um espaço de marginalidade, de espera, de assistência humanitária – num espaço de resistência política, de solidariedade política e da sua própria identidade. Em vez de se verem a si mesmos enquanto "não pessoas", enquanto pessoas que estão à espera de se tornar pessoas assim que tenham direitos ou assim que possam regressar, estão a começar a desenvolver as suas ideias políticas, as suas visões, as suas memórias em torno desta noção de que são refugiados e que lutam por um projeto de justiça política e social que vai até além do regresso.

Aquilo a que chama “o direito a ter direitos”.

Sim. Engloba ambos, o direito de regresso e o direito a ter direitos.

70 anos depois do êxodo palestiniano forçado de 1948, o direito de regresso está longe de ser alcançado. Nos locais onde desenvolveu a sua pesquisa, as pessoas começam a aceitar a inevitabilidade de nunca regressarem, mesmo que não o admitam de viva voz?

Há dois discursos diferentes. Ninguém admitiria ou aceitaria essa inevitabilidade, como lhe chama, porque o direito de regresso é o que dá significado à existência deles, em termos da sua história, do seu passado, do seu presente e do seu futuro. Contudo, e esse é o paradoxo, para se conseguir possivelmente atingir esse direito no futuro, têm de desenvolver uma subjetividade política no presente. Têm de lidar com a situação temporária, que se estende no tempo e no espaço.

O que argumento é que o direito a regressar não é algo que os mantenha suspensos, é algo que lhes dá ação política para o aqui e agora. Para a maioria das correntes de estudo e das perceções, os refugiados palestinianos têm de ser mantidos num estado de carência, de marginalidade e é essa marginalidade que lhes dá o direito de regressar. Mas em muitos campos de refugiados a vida desenvolveu-se para lá deste estado de marginalidade. O campo é um espaço de vida política, de atividade política, de atividade cultural, de mobilização, de solidariedade, de afeto. O direito a regressar é a temática de todas estas atividades, é o que os une. Mas não é um projeto futuro, é algo que acontece na vida de todos os dias.

A maioria das pessoas vive neste estado paradoxal, em que sabe que o direito de regresso foi marginalizado, na agenda política e nas mesas diplomáticas, mas está a lutar para restaurar esse direito e ver a lei internacional reconhecida por todas as partes. E há algo que não os deixa desistir, porque concebem isto como um direito humano, como um direito individual. Têm estado suspensos nisto todos estes anos. Desistir sem ter recebido justiça, em termos de reconhecimento do que sofreram e do que lhes é permitido receber, significa retirar sentido a todos estes anos de exílio.

A geração mais nova também tem esta mentalidade ou algo está a mudar?

As diferentes gerações pensam no regresso de forma diferente, têm imaginários diferentes. A primeira geração pensa em regressar às suas aldeias de origem, à vida passada que foram forçados a interromper. O seu imaginário gira em torno disso, que normalmente reproduzem nos campos ou no exílio.

Depois há uma geração intermédia, que foi parte mais ativa no momento de resistência, desde a década de 1960, do nascimento da Organização para a Libertação da Palestina no exílio. Esta geração não se concebe apenas como refugiada com direito de regresso, mas como parte de um mais amplo movimento de resistência pela libertação.

A terceira e a quarta geração pensam no regresso como um projeto de justiça, que não tem necessariamente de acontecer nas aldeias de origem – que já não existem, na verdade, a maioria foi destruída – mas em termos de poder ir e vir, de serem livres. O que os meus colegas definiram como o direito ao mar, por exemplo, ou o direito a moverem-se livremente para irem onde quiserem, no território mais vasto que historicamente era da Palestina. É um imaginário diferente e um tipo de projeto diferente, de direitos humanos, de coexistência, para alguns, a que sentem que deveriam ter direito.

Para alguns, isto também se enquadra na solução de um Estado em vez de dois. Isto só é possível num contexto em que se perspetive um Estado para todos, onde todos têm direitos iguais.

Disse há pouco que o problema está marginalizado na agenda diplomática, mas a situação atual vai mais longe. Há dias, a UNRWA disse que está a ficar sem fundos, desde que os Estados Unidos cortaram o financiamento, em 80%, de ajuda a estas comunidades [de 360 milhões de dólares em 2017 para 60 milhões em 2018]. Que impacto pode ter esta atitude?

É uma situação dramática, porque os palestinianos que estão registados como refugiados na UNRWA, que lhes dá assistência humanitária desde a década de 1950, têm direito a educação e saúde e viram estes serviços cortados. O que significa que, muitas vezes, não podem ser tratados ou mandar as crianças para a escola – a menos que possam pagar escolas privadas, o que é muito difícil para eles.

Os cortes no UNRWA têm implicações simbólicas, políticas e materiais muito sérias. Significa que centenas de milhares de pessoas não vão ter acesso a serviços básicos, mas, politicamente, também significa fazer avançar a ideia de que estas pessoas se deveriam assimilar e esquecer o direito de regressar.

De cada vez que se toca na UNRWA, envia-se uma mensagem de que não estamos interessados neste grupo de refugiados, nesta comunidade e nos seus direitos. A UNRWA faz esse papel de assegurar que a possibilidade de reconhecimento e implementação do direito de regresso se mantém aberta. No momento em que se destruir a UNRWA, cortando os seus fundos e deslegitimando a sua intervenção, está-se a enviar essa mensagem de que os refugiados palestinianos deveriam ser simplesmente reinstalados onde estão, sem se reconhecer o seu direito humano a regressar e à compensação.


Numa Ted Talk, em 2016, lembrou o pequeno Aylan Kurdi, deitado numa praia turca em 2015, para argumentar que só reagimos quando vemos este tipo de imagens. Neste momento criou-se uma nova crise em torno dos barcos humanitários de resgate, no Mediterrâneo. Como vê a forma como a Europa está a lidar com este fenómeno?

Como disse nessa Ted Talk, esta forma muito fragmentada, limitada – não só insuficiente, mas diria até patética – de a Europa lidar com o tema dos refugiados, sobretudo desde a crise de refugiados síria, responde mais a uma crise da Europa do que à emergência de pessoas que precisam de ser resgatadas e de ter uma possibilidade de vida.

É um reflexo da crise da Europa enquanto entidade política, enquanto projeto político, e dos seus valores essenciais. Estamos a falar de um dos continentes mais ricos do globo. Isto comparado com o facto de 80% dos deslocados serem acolhidos pelo Sul global, por países em desenvolvimento, faz-nos questionar o que está em jogo. Há um direito ao asilo. Se a Europa não consegue sequer subscrever os seus próprios valores essenciais, o que se passa aqui?

Perante o crescimento de uma crise económica na Europa, a culpa foi atribuída ao "outro". Eram os migrantes económicos no passado e hoje são mesmo os refugiados. Há um crescente discurso racista, de direita e populista que põe a culpa de todos os problemas das pessoas na crise de refugiados e no tema dos migrantes.

É uma reação que descarta os factos?

Na maioria das conferências a que vou, os demógrafos demonstram que, na maioria dos países europeus, se não houver um processo de imigração vão surgir problemas enormes em termos de sustentabilidade, porque as taxas de fertilidade são muito baixas. O discurso racional que é avançado por académicos e até por alguns políticos choca com uma resposta irracional, porque estamos a assistir à mobilização do medo, um medo visceral das pessoas que estão a sofrer na Europa.

Quando as emoções e o medo são as únicas formas de enfrentar um problema, vemos estes processos de desumanização, em que só estamos interessados nas pessoas que captam a nossa imaginação, os nossos sentimentos, os nossos interesses. Não estamos interessados, de todo, no que acontece para além disso, naquilo que não vemos.

Como vê a hipótese de criar lugares de desembarque fora da União Europeia para selecionar, entre as pessoas que são resgatadas, as que podem vir para a Europa?

É uma solução horrível, que tenta entregar os procedimentos de candidatura a países terceiros. A lei de asilo diz claramente que toda a gente tem direito a pedir asilo no primeiro país a que chega. Esta é uma solução que trai este princípio. Não é nova, estes centros de detenção na Líbia são aquilo a que chamamos, na academia, a desterritorialização das fronteiras europeias. Chega-se às fronteiras europeias antes de realmente se chegar à Europa. Isto significa deixar que estes países, onde o respeito pelos direitos humanos não é garantido, façam o que quiserem. É dar a ideia de que a Europa respeita os direitos humanos, de que não estamos a mudar o nosso sistema, só estamos a deixar que o problema se resolva noutro sítio.

Acho que isto é muito hipócrita e muito perigoso. Significa abrir caminhos para todas as formas de exploração, de criminalização, de violência, como vimos acontecer na Líbia e na Turquia. Significa considerar as pessoas não como humanos com direito à vida, mas como massas que podem ser descartadas, em nome da preservação da vida de outros ou de se manter sob controlo os medos em relação ao "outro". Na minha opinião, esta abordagem é muito problemática e perigosa.

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  • liqquito
    10 jul, 2018 lisboa 08:25
    A faixa de Gaza acabará por ser anexada por Israel.A Ucranea pela Russia quase em simultâneo.Alguns dos países satélites da antiga URSS voltarão a ter relaçoes viradas para a Russia perante a decadência da Europa Ocidental q está num beco sem saída com a sua politica anti-TRUMP.Ou por ventura os EUA irao devolver os EUA aos INDIOS ?As relações/acordos entre TRUMP;PUTIN;XI irao determinar a politica internacional a EU e seus invalores não conta para nada pois não existem naos EUUU ,Russia,China.

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