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Entrevista

"O Governo de Maduro terá de se autodestruir de alguma forma"

17 mai, 2018 - 17:02 • Elsa Araújo Rodrigues

Este domingo há presidenciais na Venezuela. À Renascença, Michael Coppedge, especialista em política venezuelana, defende que não se antecipam mudanças para breve e que só os militares têm "poder forte o suficiente para mudar o Governo".

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Nos anos 1970, a Venezuela era um dos países mais ricos do mundo e "já foi um dos países mais democráticos e estáveis da América Latina". Mas nos últimos 40 anos, o país afastou-se da democracia e "a economia colapsou".

É este o sumário que Michael Coppedge faz da atualidade. Em entrevista à Renascença, o especialista em política venezuelana defende que a solução para o país terá de vir "de dentro para fora".

Professor de ciência política na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, Coppedge diz que o facto de Maduro se manter no poder e de o Governo ainda não ter caído "é que é surpreendente".

Em Lisboa a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos para falar sobre as variantes da democracia, explica porque é que os esforços internacionais para tentar encontrar uma solução democrática para a Venezuela não têm dados frutos.


O que espera das próximas eleições?

Nicolás Maduro vai ganhar, porque a maioria da oposição decidiu não participar no ato eleitoral. Há alguns candidatos a concorrer, mas não são os principais líderes da oposição. Neste momento, as autoridades eleitorais estão muito enviesadas a favor de Maduro e seria muito difícil para a oposição fazer um bom trabalho, fosse quem fosse essa oposição.

A Venezuela vai regressar à democracia a tempo inteiro?

Tal não será possível enquanto Maduro for Presidente e enquanto o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) governar o país. Desde 2016 que não estão interessados em permitir eleições onde exista competição justa. Prenderam muitos políticos da oposição e há centenas de presos políticos a entrar e a sair da prisão, como se estivessem num circuito.

Há também muita censura e autocensura nos meios de comunicação e recorreram à intimidação de apoiantes da oposição, que agora não tem condições reais para se candidatar a estas eleições, tudo isto graças aos esforços do Governo para a suprimir.

A comunidade internacional devia estar mais empenhada em criar entraves ao Governo de Maduro, através de mais sanções económicas por exemplo?

É bom que existam sanções e seria bom se fossem aplicadas mais sanções aos líderes do Governo, como confiscarem-se os ativos financeiros que essas pessoas detêm fora da Venezuela. Também seria uma boa ideia decretar sanções contra quem vier a participar na criação da nova criptomoeda que a Venezuela quer lançar. Ainda assim, não sou a favor de sanções que prejudiquem os venezuelanos porque a população já está a sofrer o suficiente, o que aparentemente não tem tido impacto no comportamento do Governo.

Nos anos 1970, a Venezuela era um país democrático e era apontada como uma economia-modelo, que sabia transformar os lucros do petróleo em riqueza. O que é que aconteceu?

Porque é que a democracia na Venezuela falhou? Não tiraram o melhor partido do petróleo. A Venezuela já foi um dos países mais democráticos e estáveis da América Latina, mas a partir de 1978 a economia começou a cair a pique. O ano em que o país teve o PIB mais alto de sempre foi em 1977 e depois entrou num período de declínio, com alguns altos e baixos. Atualmente, o PIB já caiu 41% em relação a esse pico de 1977 e agora está nos níveis de 1946.

A Venezuela atravessa agora uma crise económica sem precedentes.

Sim, vive uma catástrofe económica terrível, mesmo com os milhões de dólares que tem recebido da venda do petróleo.

Acha que a maioria das pessoas compreende isso?

É um paradoxo tremendo. Como é que um país que tinha tanta riqueza entrou num tal declínio económico? Em parte, é porque o preço do petróleo caiu – e esse é um dos grande fatores estruturais. Mas também tem a ver com o facto de no tempo de Chávez – e agora com Maduro – o país se ter tornado cada vez mais dependente da exportação petrolífera.

A Venezuela sempre foi dependente dessas exportações, mas a dada altura foram feitos esforços no sentido de diversificar a economia. E entre os anos 1960 e o princípio dos 1990, esses esforços até tiveram algum sucesso.

Mas esse sucesso não vingou.

Com Chávez, o país ficou ainda mais dependente do petróleo e extraiu cada vez mais benefícios da exploração petrolífera, mas gastou esse dinheiro. Em vez de continuar a investir na indústria do petróleo, usou os lucros para alterar as regulações da economia de forma a que as regras favorecessem ainda mais a indústria do petróleo e discriminassem os setores agrícola e industrial, que poderiam ter gerado empregos não ligados ao petróleo e, talvez, ter lançado bases que permitissem a exportação de outros tipos de bens e serviços.

Foi esse investimento desmesurado na indústria do petróleo que precipitou o colapso da economia?

Sim, muitos negócios acabaram por fechar portas. Alguns empresários perceberam que já não era lucrativo tentar produzir e/ou vender no mercado venezuelano. E, das vezes em que puderam fazê-lo, o Governo interveio e confiscou bens como os alimentos, por exemplo, para os distribuir pela população através do Estado. Ter uma empresa privada na Venezuela tornou-se muito pouco lucrativo, não em todos mas em muitos setores. E basicamente, a economia colapsou.

Considera portanto que a forma como o Governo tem gerido os recursos petrolíferos não tem sido a mais eficaz.

O Governo gastou muito mais dinheiro que aquele que tinha seguindo o “padrão tradicional”, o que também aconteceu mesmo em regimes democráticos. Quando o preço do petróleo estava alto, o Governo gastava esse dinheiro, chegando mesmo a endividar-se. Tinha a expectativa de poder pagar a dívida facilmente, porque esperava que o preço do petróleo continuasse alto.

Quando o preço do petróleo baixou, continuavam a ter dívida mas já não tinham dinheiro para a pagar e tiveram que cortar noutros serviços públicos, o que deixou muitas pessoas descontentes. Este tem sido um problema recorrente.

Ao qual acresce o problema da corrupção.

A Venezuela sempre teve bastante corrupção, mesmo quando era um país mais democrático. Talvez fosse um país menos corrupto no início dos anos 1960, mas a corrupção tornou-se um verdadeiro problema a partir dos anos 1970 e 1980. E desde então a corrupção só aumentou, sobretudo do ano 2000 em diante. Grande parte dos lucros do petróleo tem sido usada para pagar aos apoiantes do chavismo, para tornar uma parte da "boli burguesía" muito rica. E outra parte do dinheiro do petróleo tem sido canalizado para pagar as "missiones", para ajudar a fornecer comida, habitação, trabalho e cuidados de saúde a alguns venezuelanos mais pobres.

Essa dimensão social é a razão por detrás do sucesso inicial do Governo de Hugo Chávez?

Também. Mas, na verdade, o dinheiro do petróleo não foi usado para criar um programa institucional que beneficiasse uma grande franja da população ou que fosse mais transversal. Muitas benesses que foram atribuídas a apoiantes do Governo foram negadas aos não apoiantes. Instaurou-se um regime de clientelismo e não uma política universal de benefícios sociais.

Então como se explica a popularidade de Chávez?

Chávez trouxe, de facto, algumas melhorias à vida de uma larga porção da população venezuelana. Há pessoas que foram excluídas dos benefícios do crescimento económico que o país colheu durante a democracia. Chávez tentou trazer melhorias à vida de algumas dessas pessoas e conseguiu.

Mas, por outro lado, houve outras pessoas que sofreram um tremendo declínio das suas condições de vida com esse mesmo Governo. As opiniões sobre Chávez são muito, muito polarizadas: há pessoas que ainda gostam dele e pessoas que o odeiam. Depende muito das mudanças sofridas ao nível do estatuto económico durante o Governo dele. Chávez teve muita sorte: o preço do petróleo subiu muito durante a sua presidência e, por outro lado, Maduro tem sido um Presidente com pouca sorte - uns meses depois da morte de Chávez, em 2013, o preço do petróleo caiu a pique.

Como vê o processo de transição de Chávez para Maduro?

Nicolás Maduro foi escolhido a dedo por Chávez, era seu vice-presidente. Foi uma transferência constitucional de poder. Pouco depois houve uma eleição presidencial que Maduro ganhou e a maioria dos analistas e das pessoas concordam que foi uma eleição bastante justa. Não diria que foi um processo antidemocrático, mas acredito que na última eleição presidencial houve alguma manipulação de resultados.

A continuação de Maduro no poder não é completamente democrática, especialmente se olharmos para tudo o que se passou durante a campanha e não apenas no dia das eleições. Refiro-me ao ambiente institucional e político em que a eleição teve lugar: havia presos políticos, muitas instituições da oposição foram reprimidas e houve utilização ilegal de recursos do Estado para favorecer os candidatos do Governo. Não foram eleições justas.

A violência na Venezuela também se deve ao crime organizado, parte dele financiado com dinheiro do petróleo como avançam alguns observadores internacionais?

Há algum apoio financeiro, limitado, vindo do petróleo, a alguns grupos que se envolvem em atividades criminosas. Mas o principal apoio do Governo a essas mesmas atividades criminosas tem a ver com a impunidade. Ou seja, grupos que são ou foram aliados do Governo e que levam a cabo sequestros, extorsões ou outros tipos de crime simplesmente não são punidos.

Há falta de vontade do Estado para prender e condenar os responsáveis. Essa é a principal forma de apoio que têm: saberem que se vão safar, que não serão responsabilizados. Muitos desses grupos foram inicialmente apoiados pelo Governo, alguns são dissidentes dos "círculos bolivarianos" [organizações de trabalhadores criadas por Chávez para difundir os ideais da Revolução Bolivariana], que eram financiados pelo Governo. O Governo pagava salários a muitas das pessoas que formaram e lideraram estes círculos. E sim, alguns destes círculos envolveram-se em atividades criminosas.

A impunidade de que fala abrange esses círculos bolivarianos?

As coisas acabaram por se desorganizar. Agora, grupos que se autodenominam "coletivos" – alguns também dissidências dos círculos, formados num momento em que já não havia fundos do Governo para os financiar – tornaram-se autossustentáveis graças ao crime. E sim, continuam a existir por causa da impunidade.

Existe terreno para que a oposição democrática ao regime se possa desenvolver na Venezuela?

Bem, primeiro é importante reconhecer que a oposição ganhou as eleições para a assembleia legislativa de 2015. Ganharam uma maioria de dois terços. Nesse momento, a oposição tinha bastante terreno. Na altura, todas as sondagens diziam que a oposição estava numa posição de vantagem para concorrer às presidenciais. E mantiveram a vantagem até há cerca de um ano, portanto, a oposição até tinha bastante apoio popular.

Então o que aconteceu?

Houve muita repressão e manipulação eleitoral e isso levou muitas pessoas da oposição a deixarem de acreditar no processo eleitoral como caminho para a mudança.

Também costumava haver milhares de pessoas a protestar, milhares de pessoas que saíam à rua todos os dias. Devido à repressão e a um certo desencantamento e desencorajamento, essas manifestações já não estão a acontecer ao mesmo ritmo. A oposição está mesmo desmoralizada e dividida. A emigração também aumentou. Muitas pessoas que estavam na oposição abandonaram a Venezuela. Cerca de dois milhões de pessoas saíram do país nos últimos 20 anos e 1,2 milhões saíram só nos últimos dois anos. Isto também retirou força à oposição.

A oposição está numa situação mais delicada.

Sim, a oposição, em geral, está num nível muito baixo. As pessoas estão muito desencorajadas. A questão é saber se a oposição alguma vez será forte o suficiente para competir e ganhar uma eleição democrática no futuro.

Quando é que a oposição será forte o suficiente?

Bom, "para sempre é muito tempo". Penso que eventualmente vai acontecer, mas vai levar anos.

E entretanto, o que podemos esperar que aconteça ao Governo?

O Governo de Maduro terá de se autodestruir de alguma forma. O que é surpreendente é que ainda não tenha acontecido. Provavelmente terá de haver alguma cisão dentro do próprio Governo.

Não sei que tipo de divisão será essa, talvez entre a fação pró-cubana e a fação mais nacionalista ou entre a fação pró-militar e a fação mais constitucional. Não tenho a certeza, mas vai chegar um momento em que se podem dividir, afastar e decidir que já não querem governar em conjunto. Ou decidir que querem resolver as diferenças através de uma eleição democrática, o que pode abrir um espaço em que a oposição poderá voltar a competir.

O fim do Governo de Maduro, ou a sua substituição, deverá acontecer "de dentro para fora" ou com a colaboração de organismos internacionais como a ONU?

Os últimos anos têm mostrado que os esforços internacionais para intervir na Venezuela não ajudam. Muitas organizações internacionais têm feito diligências, por exemplo, a Organização dos Estados Americanos ou o Vaticano, no sentido de se envolverem na mediação de algum tipo de acordo ou de pressionarem o Governo da Venezuela para que liberte os presos políticos ou, por outro, para que autorize eleições justas. Mas esses esforços não têm tido efeitos positivos.

E, no que diz respeito aos Estados Unidos, qualquer pressão é um "tiro pela culatra". Quanto mais pressão vier dos EUA, mais os venezuelanos vão acreditar nas afirmações de Maduro quando diz que os EUA se estão a preparar para invadir militarmente a Venezuela. Ou que "el imperio del norte" está a tentar controlar o que acontece no país, algo que não acho que seja verdade.

Diria que Maduro quer comprar uma guerra com os EUA, como forma de sobreviver politicamente?

Nicolás Maduro tenta lançar o isco aos EUA através das críticas que vai fazendo. Face a isso, a melhor coisa que Donald Trump e o secretário de Estado podem fazer é ignorar e não se deixarem envolver numa guerra de palavras com a Venezuela, porque isso apenas fortalece o Governo venezuelano. A solução tem de vir de dentro da Venezuela porque os atores internacionais já tentaram intervir mas a verdade é que não conseguiram influenciar os processos internos.

A Venezuela atravessa uma crise sem precedentes. Podemos esperar que se resolva num futuro próximo?

A única certeza que temos é que “o futuro vai chegar”, não o podemos travar. Mas o futuro próximo será muito negro para a Venezuela.

O que está a dizer é que a situação na Venezuela ainda vai piorar antes de melhorar...

O país vai continuar numa situação delicada, próxima do colapso do Estado e em crise humanitária. Não sei quanto tempo mais irá durar, talvez alguns anos. Não pode é continuar como está. Penso que irá acontecer algum tipo de intervenção, dentro da própria Venezuela, para que a situação mude. Isso pode ser ainda mais sombrio, como um golpe militar que leve a um Governo ainda mais autoritário e opressivo. Por outro lado, pode dar-se o caso de os militares tentarem supervisionar o retorno à democracia. É impossível prever.

As forças militares na Venezuela são fortes o suficiente para isso?

Neste momento, o poder militar é o único poder na Venezuela forte o suficiente para mudar o Governo. Ainda assim, não acho que isso venha a acontecer e não defendo que seja uma coisa boa. Quando os militares intervêm, nunca se sabe o que pode acontecer. A situação pode piorar, o que seria terrível.

Comentários
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  • antirouge
    18 mai, 2018 Setúbal 22:05
    E viva o xuxialismo!
  • VICTOR MARQUES
    18 mai, 2018 Matosinhos 16:06
    É dos livros! Tudo o que está maduro, mais tarde ou mais cedo, apodrece!...

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