Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

“Lutero não tinha consciência da variedade que ia surgir no protestantismo”

10 nov, 2017 - 16:15 • Filipe d'Avillez

O historiador Timóteo Cavaco, um dos participantes do congresso que decorre em Lisboa, sobre os 500 anos da reforma protestante iniciada por Lutero, fala da inevitabilidade da fragmentação do protestantismo.

A+ / A-

Dezenas de especialistas estão reunidos, desde quinta-feira e até sábado, em Lisboa, num congresso dedicado aos 500 anos da Reforma Protestante, que se assinalou no passado dia 31 de Outubro. Organizado em conjunto pela Universidade Lusófona e a Sociedade Portuguesa de História do Protestantismo, o congresso os conferencistas convidados abordam diversas facetas da reforma e do protestantismo em geral.

Timóteo Cavaco, membro da Igreja Baptista e investigador na Universidade Nova de Lisboa, falou esta sexta-feira sobre a variedade existente no protestantismo e, em declarações à Renascença, admite que Lutero não poderia ter noção do processo a que estava a dar início quando se revoltou contra Roma, dando origem a um fenómeno que se foi fragmentando até aos dias de hoje.

O tema da sua intervenção foi “Protestantismo e os protestantismos”. Não há só um protestantismo…

Não. Foi também isso que tentei evidenciar na minha comunicação. É evidente que, pelo que conhecemos do protestantismo, mesmo contemporaneamente, há uma grande diversidade. Aquilo que tentei demonstrar é que essa diversidade é, de certa forma, seminal.

Logo na primeira geração, já encontramos uma diversidade de opiniões, algumas "nuances", embora sempre em torno dos princípios fundamentais do protestantismo, particularmente apelando à tríade famosa da “sola gratia, sola fide, sola scriptura”.

Há, sem dúvida, um conjunto de elementos que são comuns, mas, desde muito cedo, começa-se a ver também interpretações diferentes e leituras diferentes. Elas sobressaem de forma muito particular quando, em 1529, Martinho Lutero tem um debate com Zwingli – que podemos considerar o iniciador da tradição reformada, numa linha diferente da reforma germânica protagonizada por Lutero – precisamente em torno da presença de Cristo na Eucaristia. Lutero defendia a presença real, Zwingli defendia uma presença simbólica.

Estamos a falar de 12 anos depois da publicação das 95 teses de Lutero e há já diferenças, até chegarmos a tudo aquilo que o mundo protestante hoje representa.

Restringindo-nos a Portugal, existe boa relação entre as diferentes confissões protestantes?

Já agora, recuperando um pouco a questão histórica em Portugal, como se sabe, o Protestantismo chega a Portugal com presença organizada - naturalmente há ecos do protestantismo logo no século XVI -, mas como presença social organizada chega apenas no século XIX e, particularmente, na segunda metade. É curioso perceber que esse protestantismo que chega a Portugal é também já ele plural.

De uma forma geral, existem contactos, existe respeito mútuo e é a partir daí que se cria o diálogo. Os recentes actos comemorativos dos 500 anos da Reforma Protestante mostram precisamente que há essa possibilidade de trabalhar em conjunto.

Prefiro olhar muitas vezes para as expressões informais do que para as relações institucionais. Naturalmente que as duas vertentes são importantes, mas nota-se que há, naturalmente, terrenos e territórios comuns em que se pode cooperar.

A reforma iniciada por Lutero foi o pontapé de saída, por assim dizer, do protestantismo. Ele poderia imaginar, na altura, a "caixa de Pandora" que estava a abrir, no sentido da fragmentação de diferentes confissões cristãs que há hoje em dia?

Penso que Lutero não teria consciência daquilo que viria a surgir, em termos de uma alternativa à Igreja e à expressão eclesial dominante no cristianismo ocidental.

Ao não se assumir como uma alternativa - quer em termos pessoais quer em termos institucionais, a essa Igreja dominante que ele em grande medida criticava pela sua atitude de poder e de supremacia - parece-me a mim inevitável que esta fragmentação ocorresse.

Isto resulta da própria postura e do próprio pensamento de Lutero. Se ele tivesse tido outro tipo de comportamento e se as suas ideias em relação ao que é a autoridade tivessem sido diferentes, talvez o que hoje tivéssemos fosse uma Igreja protestante unida em torno desse conjunto de afirmações. Mas, ao relevar a escritura como fonte de autoridade, e, particularmente, a possibilidade e a capacidade de cada crente poder interpretar a escritura, Lutero abre espaço a essa diversidade.

No seu caso, como baptista, como vê a figura de Lutero e o acontecimento da Reforma?

As igrejas baptistas não derivam directamente da reforma iniciada por Lutero. No entanto, penso que nenhuma denominação, nenhuma expressão que se considere herdeira da reforma pode desprezar o contributo de Lutero.

Mas, obviamente, que os baptistas não pertencem à esfera de teologia luterana. Também não são herdeiros directos da chamada "expressão reformada", o movimento que, de alguma forma, encontra a sua origem em Zwingli, primeiro, em Zurique, e, depois, em Calvino, em Genebra. Os baptistas talvez tenham como parente mais próximo algumas das expressões que surgiram dentro do contexto que é a chamada reforma radical, que também vem do século XVI e são também elas contemporâneas de Lutero. Ao contrário de outras expressões que também derivam da reforma radical, fazem uma síntese que diria satisfatória das diferentes questões em jogo no início da época moderna, no século XVI. Basta falar da questão da presença real de Cristo na Eucaristia, sobre a qual os baptistas têm um conceito muito zwingliano, a ideia de uma presença simbólica.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+