​Podem polícias e moradores da Cova da Moura confiar uns nos outros?

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18 jul, 2017 - 16:01

As relações no bairro não têm de ser de conflito. Polícia, comunidade e investigadores sugerem soluções. Uma palavra-chave: proximidade.

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Em 2001, em Cincinatti, nos Estados Unidos, um polícia matou a tiro um afro-americano de 19 anos. A comunidade revoltou-se e as relações com a polícia ficaram cada vez mais tensas. Num esforço para restaurar a confiança, polícia e comunidade foram desafiadas pela Justiça a trabalhar em conjunto na procura de respostas para o conflito. Sucesso: o número de agressões entre polícias e cidadãos baixou.

Cova da Moura, Amadora, Julho de 2017. “Ministério Público acusa agentes da PSP de sequestro, tortura e racismo”, lê-se nos jornais. Nas notícias e reportagens, surgem relatos de um “bairro que se habituou a ter medo da polícia”, onde uma criança tem “pesadelos com os polícias da carrinha azul”. Outros lembram as mortes de agentes da PSP no bairro, em 2005.

A Renascença falou com jovens do bairro, um polícia e um especialista em mediação de conflitos. Todos concordam: só com relações diárias e de proximidade e a criação de “espaços de diálogo” entre autoridades e moradores pode-se quebrar o aparente ciclo de desconfiança mútua.

Proximidade

Criar relações de proximidade entre polícia e a comunidade local implicaria mudar o modelo de intervenção policial, defende o presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP), Paulo Rodrigues. Hoje, os agentes entram no bairro quase exclusivamente para repôr a ordem ou para fazer rusgas.

"Por norma, a polícia entra no bairro quando é chamada, quando vai resolver um problema, quando tem que fazer cumprir um mandado judicial. Maioritariamente vai nestas situações e isto coloca o polícia numa situação muito mais fragilizada e muito mais delicada em termos de intervenção", diz Paulo Rodrigues. “Quando [a polícia] vai ao bairro já é só para resolver problemas e o conflito já está subjacente.”

João Pedro Cruz, vizinho da Cova da Moura que trabalha num projecto com crianças e jovens no bairro (o Movimento de Apostolado de Adolescentes e Crianças – MAAC), tem a mesma visão: “Fechar uma rua ou fechar o bairro inteiro faz com que haja uma apreensão ao ver a própria polícia.”

“Eu trabalho com as crianças e elas têm receio. Uma vez, tínhamos acabado as actividades e as crianças vieram bater à porta porque a polícia tinha cortado a rua e eles estavam com medo de que lhes acontecesse alguma coisa”, conta João Pedro Cruz.

O elemento do MAAC até considera que “a polícia está presente no bairro”, a fazer patrulha, mas sente que não é criada uma relação com a comunidade.

Para João Pedro Cruz, as relações institucionais entre a polícia e algumas entidades locais são muito boas. Quando, por exemplo, a paróquia pede apoio para fazer uma procissão, “os polícias colaboram e são cinco estrelas”. Gostaria, contudo, de ver estas relações serem alargadas a outras instituições, nomeadamente aos infantários: “Ir trabalhando com as crianças seria fundamental. Acho essencial que as crianças possam ter uma visão positiva da polícia e que possam querer ser polícias quando forem mais velhas.”

A questão que fica é: como se pode pôr em prática esta visão num momento em que as relações parecem tão deterioradas?

Aprender com as excepções

Gilson Tavares mora no bairro há 11 anos e diz que cada um – polícia e moradores – deve ficar no seu “canto”, excepto quando a acção das autoridades é necessária.

O jovem de 23 anos consegue identificar casos em que a relação funciona melhor: “Tem aqueles [polícias] que não querem saber e tem aqueles que, se houver alguma confusão, chegam, perguntam, avaliam, vêem o que aconteceu e como é que vão resolver aquilo”. Para Gilson, “é a pergunta, é a preocupação” que faz a diferença.

Paulo Rodrigues, da ASPP, não está de acordo com a ideia de que cada um deve “ficar no seu canto”. Entre outras sugestões, o presidente sindical recorda o policiamento de proximidade que já existiu no bairro: “Havia polícias que por norma só faziam aquele trabalho, ou seja, construíam relações com as pessoas.”

Este tipo de policiamento consistia num contacto permanente, feito por um grupo fixo de agentes, em que havia um envolvimento directo e eram desenvolvidas actividades em conjunto com a comunidade. Os polícias chegavam a ter o papel de identificar situações de várias naturezas (Segurança Social, finanças, entre outros) e encaminhar para os serviços mais adequados.

Também João Pedro Cruz acredita neste modelo, sublinhando que é muito difícil fazer uma integração dos dois grupos “quando não estamos sempre com as mesmas pessoas. Estamos a lidar com pessoas diferentes em dias diferentes”.

Na semana passada, nas comemorações dos 150 anos da Polícia de Segurança Pública, o director nacional da PSP, Luís Farinha, lamentou os “episódios negativos recentes que afectaram a imagem e a confiança na instituição, protagonizados por quem não honra o compromisso de ser polícia”. No entanto, defendeu que é preciso “meios” para que a PSP continue “a prestar um serviço de segurança pública de qualidade”.

Paulo Rodrigues confirma que o policiamento de proximidade na Cova da Moura “foi recuando” por “falta de efectivos e de meios”.

Não há uma receita simples

O presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia não foge à etiqueta de bairro “difícil”.

"É com alguma regularidade que acontecem algumas situações de conflitualidade. Houve polícias que morreram naquele bairro, foram alvejados à morte. Houve muito confronto entre a polícia e alguns indivíduos que praticavam crimes naqueles bairros”, afirma. “Tudo isto cria por parte não só dos moradores desse bairro, sobretudo aqueles que são mais jovens, e da própria polícia, uma tentativa de se resguardarem também.”

O aumento da tensão entre os cidadãos e as entidades policiais não é um exclusivo português. “Está a acontecer no mundo inteiro. É uma questão prioritária”, aponta Jared Ordway, especialista em mediação de conflitos. O investigador e professor na Champlain College, Burlington, Vermont (EUA), lembra os exemplos do Brasil, onde já trabalhou no terreno, e dos Estados Unidos.

Para este académico, que já fez parte da equipa de investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, há duas vias essenciais a ter em conta no caso da Cova da Moura: por um lado, a questão da investigação legal, tal como está a acontecer (“mostra que a democracia está a funcionar”); por outro, as marcas que ficam ao longo do tempo e que não são repostas por decisões do tribunal (“não temos tribunais para as emoções, para recuperar a dignidade comunitária”).

Para Jared Ordway, um conflito deste tipo “não se consegue resolver de um momento para o outro. Trata-se de confiança que está quebrada, de legitimidade que tem de ser reconstruída todos os dias”.

“Já depois do julgamento, [os elementos da comunidade] podem pensar num diálogo sobre como reparar os danos, como recuperar esse contrato social que foi quebrado”, sugere Jared Ordway.

De acordo com o investigador, a conversa deve passar por perceber melhor as motivações dos jovens e da polícia para a forma como actuam; conhecer mais a fundo o papel de cada um, indo além dos estereótipos que passam na comunicação social; e identificar os desafios e pensar em conjunto em possíveis respostas.

Paulo Rodrigues considera que a polícia só deve entrar no diálogo depois de as instituições comunitárias darem o primeiro passo. “Não me parece que deva ser a polícia a tentar desenvolver um projecto porque está condenado à nascença”, explica o presidente sindical.

Jared Ordway discorda. Considera que é “uma preocupação legítima” e que “uma organização não-governamental pode ser muito útil como mediador”, mas o sucesso da actuação depende também da atitude da liderança das instituições, incluindo a polícia.

O professor universitário recorda o exemplo de Cincinatti, em que as chefias da polícia estiveram presentes desde o início. Por decisão da juíza responsável pelo caso, foi iniciado um processo de recolha de opinião de mais de 3.500 pessoas sobre quais deviam ser os objectivos da relação entre a polícia e a comunidade. A partir destes contributos, foi assinado um acordo colaborativo pelas diferentes entidades envolvidas, incluindo as forças policiais e associações locais.

Desde a implementação do plano, desenvolveram-se vários momentos de diálogo, o número de agressões entre polícias e cidadãos baixou e os dois grupos desenvolveram várias actividades em conjunto.

Para além das respostas de reacção aos confrontos, “pensar nesses paradigmas pode ser uma política interna” da PSP, sugere Jared. “Se estamos à espera só de resolver um problema tenho a certeza de que não vai ser um processo fácil”, concorda o presidente da ASPP. Paulo Rodrigues admite, contudo, dificuldades devido à situação actual: “Neste momento, os próprios polícias não sabem como podem agir porque qualquer acção que eles tomem, ainda que dentro dos regulamentos, pode ser mal interpretada.”

Comentários
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  • Respeito
    04 dez, 2017 Lisboa 20:27
    Proximidade, blá blá e mais blá. Tudo se resume a uma coisa. Nos bairros problemáticos. Sim problemáticos porquê. Porque como os demais, os seus moradores cumprem as regras. Se não cumprirem a polícia tem que fazer cumprir a lei. Agora falem em aproximação feita por pessoas a polícias sendo estas problemáticas como aconteceu com um polícia que está impedido de ter relações. Ao ponto que o puseram. É lamentável que falem em aproximações. Sempre gostava de Vet se quem pensa assim anda nas ruas nesses locais problemáticos. Às soluções devem ser encontradas juntamente e principalmente por quem anda nas ruas a fazer o seu serviço e por vezes encontram algo duvidoso. Actuam sendo agredidos. Ainda há pouco mostraram na TV um polícia a ser agredido. ACASO para gente dessa acham que é com beijos que se os leva. Desenganem-se. Claro que ambas as partes não se devem exceder. Às pessoas cumprem as regras. A polícia unicamente as faz cumprir. Claro que todos os policias devem ter controle quando atuam. Alguns ai ai. Tem que haver unicamente respeito de ambas as partes. Somente isto.
  • Manuel Silva
    04 dez, 2017 Pombal 20:20
    É tão estúpida a pergunta, como qualquer resposta.
  • Vasco
    19 jul, 2017 22:40
    O que os polícias quanto a mim deveriam fazer era simplesmente recusarem-se a entrar em tal bairro como resposta; será que por este andar tenhamos que fazer justiça popular? Se o governo e seus apoiantes insistirem em atacar as forças da ordem desta forma embora reconheça que possam ter havido excessos mas esquecem-se do contexto em que tudo acontece, possivelmente correrão o risco de uma revolta popular.
  • basta
    19 jul, 2017 port. 11:37
    Já fiz aqui um comentário, creio que seria o primeiro e não foi publicado. Portanto, pelo NOJO que esta censura me causa, limito-me a dizer o seguinte aos CAVALHEIROS "DEMOCRATAS" DA R.R. , que o que aqui se passa, é que estas minorias que invadiram Portugal, ( nesta questão não me refiro aos CIGANOS por eles serem tão portugueses como eu sou, dado cá terem nascido, EMBORA SEJAM RACISTAS, nunca se quiseram misturar com a nossa raça ), já o mesmo não concordo com os PRETOS, porque estes se aproveitam do vocábulo RACISMO, para melhor mamarem, chularem aquilo que eu e muitos portugueses demos ao nosso pais durante a vida de trabalho, para que eles agora comam e tenham casa à custa dos nossos impostos. O ESTADO não me fez casa nenhuma e ainda me CHULA com imposto duas vezes por ano, o que é um assalto.
  • Bela
    18 jul, 2017 Coimbra 22:51
    O que está a acontecer com os habitantes da Cova da Moura, em parte tem a ver com o modo como esses tratam os outros. E não vale a pena fazerem-se constantemente de vitimas. Quem não quer sofrer as consequências... Li há dias um artigo que dizia que o Papa Francisco colocou na porta do seu gabinete um sinal que diz que é “Proibido lamentar-se”. e afirmou que: “Os transgressores sujeitam-se a síndrome de vitimização, com consequente diminuição do humor e capacidade para resolver problemas”, Será que não estamos perante uma situação dessas?
  • Rui
    18 jul, 2017 Lisboa 22:19
    Não sou racista mas de facto não posso admitir que existam pessoas no nosso país que venham para ele par procurar melhores condições de vida e utilizem o racismo como desculpa para fazerem o que lhes apetece. E depois dizem que as autoridades são violentas. Acredito que haja elementos mais violentos do que outros mas digam-me como devemos evitar ser assaltados, violentados, perseguidos nas nossas ruas. Se eles estão mal voltem para o país deles e façam lá o que fazem aqui e vão ver o que lhes acontece, ou vão para os paises arabes e vão ver o que lhes acontece. Qualquer dia somos nós que temos de fugir deles, quando vamos aos países deles somos maltratados e sei lá mais o que. Tenho amigos de várias religioes, credos e de minorias etnicas e todos eles dizem que temos o refugo da sociedade deles. Também temos cá boas pessoas, simples e pobres, ricas que fazem vida em Portugal e que se comportam como deve ser em sociedade. Como tal continuem a tirar força às autoridades que vão ver onde vão parar. Com isto não estou a dizer que não existe excessos mas não generalizem porque isso é muito ma.
  • Jacaré
    18 jul, 2017 Moita 21:25
    A proximidade já se viu que não resulta, a proximidade foi tanta que os chungas da farda tropeçaram nos outros e aleijaram-nos
  • José Pereira
    18 jul, 2017 Lisboa 21:05
    Senhores Jornalistas, perguntem à família e aos profissionais de táxi, o que acharam do assassino bárbaro às portas do referido bairro, do pobre familiar/colega, para roubarem uns tostões. Como houve roubo, não há racismo. Continua país que vais por bons caminhos...
  • Carlos Silva
    18 jul, 2017 Albufeira 20:43
    Não. Os polícias são tipos mal formados e a maioria são indivíduos agressivos no trato.
  • Simplex
    18 jul, 2017 lx 19:43
    Quero-me rir quando a PSP se recusar a actuar nas desordens constantes nos bairros problemáticos... Ora essa, VÃO LÁ OS JORNALISTAS TRATAR DAS CONFUSÕES... !

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