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Reportagem

​“O Papa dos excluídos” visto por um sem-abrigo, um alcoólico e um toxicodependente que vivem em Fátima

11 mai, 2017 - 08:11 • João Carlos Malta , Teresa Abecasis (imagem)

Francisco faz dos que vivem nas margens da sociedade um dos temas fortes do seu papado. Sérgio, José e João estão em recuperação na Comunidade Vida e Paz. Querem uma nova vida, daquelas que se dizem ser “normais”, e falam da importância das palavras do Papa.

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O Papa dos excluídos Sérgio, José e João
O Papa dos excluídos Sérgio, José e João

João começou a consumir drogas aos 14 anos. Já tem 33. Pelo meio, uma montanha-russa de recuperações e recaídas. Sabe o que é estar na rua e precisar dos outros. Passou o último ano em tratamento na Comunidade Vida e Paz de Fátima e não hesita em dizer que os discursos do Papa Francisco sobre os excluídos são muito importantes para os que vivem nas franjas da sociedade.

“Este Papa é uma pessoa muito próxima dos sem-abrigo e dos carentes. Olha muito em prol das necessidades do povo, o que é de louvar”, frisa o jovem natural de Faro.

João Fialho considera que por natureza os portugueses já são “muito solidários”. Mas isso aumentou desde que Francisco pôs no topo das suas preocupações os que não estão integrados socialmente

“Estive muito tempo sem-abrigo e via como as pessoas me acolhiam e abordavam na rua, até comida me ofereciam sem eu pedir. Isso tem a ver com mensagem do Papa, que tem pedido aos católicos que o façam”, reforça.

Mas nem todos os utentes da comunidade Vida e Paz, nos arredores de Fátima, têm a mesma opinião. José Carmo, já com mais de três décadas de dependências entre álcool e drogas, reconhece a importância das palavras, mas quer mais acções.

“A teoria não está má, o Papa Francisco é um ser humano que se dependesse dele não havia sem-abrigo. Mas a prática é mais complicada. Faltam dar muitos passos, dizer é muito bonito, mas e fazer? Sei que ele sozinho não pode. Por ele talvez fosse diferente, mas depois deve haver alguém que lhe corta as vasas”, imagina José.

O impacto das palavras e dos gestos

Francisco tem, nos últimos anos, feito do tema dos excluídos um assunto central para a Igreja Católica. Em Dezembro de 2016, alertou: “É grave que nos habituemos a este descarte”.

“É preciso preocupar-se quando se anestesia a consciência, já não fazendo caso do irmão que sofre ao nosso lado nem dos problemas sérios do mundo, que se reduzem a um refrão já ouvido nos sumários dos telejornais”, disse. E pediu perdão por todas as vezes que os cristãos, diante de uma pessoa pobre ou de uma situação de pobreza, olharam para o outro lado.

Mas nem só de palavras tem sido feito este combate do Papa. Também tem gestos concretos, como a abertura de uma lavandaria para os que vivem na rua junto ao Vaticano, a abertura dos dormitórios 24 horas por dia em épocas de muito frio em Roma ou a lavagem de pés a reclusos.

Sérgio, toxicodependente de 40 anos, o quinto de seis irmãos (só um disse não às drogas), acabou na rua e reconhece a importância do discurso do Papa. Mas há sempre um “mas”.

“Até que as palavras tenham efeito ainda vai demorar a mudar para os mais cépticos”, diz. “Os católicos talvez interiorizem mais rápido, mas os outros não tanto.”

Reconhece que a “visibilidade” do tema é maior, mas faz uma comparação com as aparições de Fátima que, até serem aceites, “ainda demorou o seu tempo”.

A líder da instituição que acolhe estes três homens em Fátima, Renata Alves, diz que para quem trabalha com esta população a mensagem de Francisco ajuda a conseguir que diariamente as pessoas de grande fragilidade “tenham esperança e sejam amados”.

Para Renata Alves, as palavras do Papa ajudam a quebrar “muitos preconceitos” e permitem “que muitas das pessoas possam ajudar os que estão nesta situação de vulnerabilidade”.

A directora da Vida e Paz de Fátima, há 17 anos no terreno, diz que é uma mais-valia fazer este trabalho nesta cidade. “Penso que faz toda a diferença porque muitas vezes estamos em situações difíceis até na gestão financeira. E costumamos dizer que é por obra do Espírito Santo e por estarmos em Fátima que são resolvidas. Temos sempre uma resposta de um benfeitor ou de uma empresa que nos retira do momento mais aflitivo”, reconhece.

Esta instituição, além de querer recuperar o corpo, a mente e tratar da integração social do indivíduo, também quer dar-lhe apoio espiritual. “Temos muito apoio de voluntários até para a catequese”, diz Renata Alves.

A responsável alerta, contudo, que o trabalho que os técnicos da Vida e Paz, instituição com capacidade para 70 pessoas, é cada vez mais difícil. O perfil da população que pede ajuda está diferente. As doenças mentais associadas às dependências ou à condição de sem-abrigo estão a crescer.

“São pessoas que já procuraram respostas em variadíssimas instituições e não conseguem. Têm bastante recaídas”, explica Renata Alves, que diz que os problemas do foro psiquiátrico dificultam em grande medida o tratamento mas também a reintegração do utente.


TRÊS HISTÓRIAS DE EXCLUSÃO

Sérgio, o quinto toxicodependente de seis irmãos

Ele tem 40 anos e depois de contar tantas vezes a sua história de vida diz que é igual à de muitos outros. Sérgio não sabe lidar com os sentimentos: não sabe como encaixar uma rejeição ou uma frustração.

Não esteve agarrado à heroína e à cocaína quase 13 anos por falta de aviso. A família mostrou-lhe o que é ser toxicodependente. Como se começa, como se acaba e a degradação pelo meio. É o quinto de seis irmãos que se deixou enredar na teia das drogas.

Para ele, o caminho para o abismo até começou tarde, aos 27 anos. Estava na Madeira sozinho. Ficou desempregado, sem dinheiro e com as contas a cair. Muito tempo livre, muita solidão e tudo desabou.

Ainda se levantou com uma recuperação em que esteve seis meses “limpo”. Mas voltou a sucumbir. Porquê? “É uma pergunta sem resposta”. “[Mas] Se disser que não gosto da droga sou mentiroso”. Acrescenta: “Aquilo cria sensações de bem estar-físico e emocional, mas é o fundo do poço.”

O poço foi “um ano e meio a viver na rua” e o fundo é “todos os dias chegar à casa abandonada onde estava e pensar: o que é que vou fazer amanhã? No que é que me tornei? Como é que os outros me vêem? E como é que eu me vejo a mim mesmo? Sou um farrapo humano e um parasita da sociedade.”

Está a tentar outra vez recuperar há seis meses. Tem planos e quer dar um sentido à vida. “Já encontrei algumas respostas mas não todas.” Por agora tenta recuperar os laços destruídos com a família por actos “difíceis de perdoar”.

Os objectivos são quatro e resumem-se noutras tantas palavras: trabalho, casa, carro e mulher. Onde vai buscar forças para o conseguir? “Ao passado. Ao que passei”.

“Olho para as pessoas ditas normais e invejo-as.”

José só queria saber beber um copinho como os outros

O álcool não é como as outras drogas e José sabe-o bem. Ele começou cedo. A mãe diz-lhe que desde os 14 que já bebia e fumava com os amigos. Tem 52 anos e um passado em que a bebida foi rainha, mas em que heroína e cocaína lhe fizeram a corte.

“O álcool está sempre à mão, com um euro compro um litro de vinho. E em Portugal é cultural, aqui quem não beber uma pinguinha nem é homem”, explica.

José até fez o mais difícil que foi deixar os vícios durante cinco anos. Foi monitor numa instituição de recuperação em Santarém. Arranjou uma casa, tinha um carro, uma mulher. Tinha quase tudo, garante, e mesmo assim voltou a cair. “Não sei se foi por sentir que havia ali um porto de abrigo e que tudo era um dado adquirido.”

“A doença começou a atraiçoar-me e a manipular-me, de tal maneira que dou comigo a beber um café e um Licor Beirão num bar de alterne. Depois, recaído por um, recaído por dois ou três”, justifica.

Já não tinha paciência para a mulher. As discussões e agressões verbais pontuaram cada encontro. Começou numa vida de descontrolo, em discotecas e noitadas. Numa delas, já bem bebido desfez o carro. “É um milagre estar vivo”, reconhece.

Desfaz a relação e desce a fundo ao inferno do álcool. A ementa era esta: “Vinho, um litro ou dois litros, às vezes até ia ao garrafão”, mas depois ainda havia “a cerveja, a bagaceira, o licor beirão”. Tudo misturado.

“Acordava e tinha o estômago tão inchado que não sentia fome”, reconhece.

José diz que já tem tempo suficiente de adição para não fazer futurologia. “Hoje em dia já não digo que não toco no álcool porque, quando fiz isso, caiu-me em cima”, lembra.

Às vezes, põe-se a imaginar. “Vem aí o Verão e vou a uma esplanada. Vejo senhoras a beber uma imperial com uns caracóis acompanhadas dos namorados. Vou ter de mandar vir uma Coca-cola. Isso mexe comigo. Parece que me estão a espetar uma faca. Mas sei que se tocar no primeiro copo, não há caracóis que resistam.”

Sente força no tratamento que está a fazer, mas reconhece que vive um dia de cada vez. Quer ter forças para o futuro, mas sabe que há um pilar fundamental: o trabalho. “Isso até é o que me assusta mais. Já sou velho para trabalhar e novo para a reforma.”

João drogava-se porque estava mal e drogava-se porque estava eufórico

Aos 14 anos, os primeiros charros. Pouco depois vieram as “trips” e as pastilhas. Três anos depois, um amigo apresentou-o à cocaína. Gostou e quis mais, até agora que fez 33 anos.

João era adolescente, mas já trabalhava em Faro numa estação de serviço. Começou a lavar carros e depois mudou para as trocas de óleo e pneus. Pelo meio, passou a atacar a caixa-registadora. Não olhava a meios para conseguir dinheiro para o vício.

Perdeu o emprego e passou a roubar em casa. A família expulsou-o de casa e foi parar à rua. Foi viver para a Grande Lisboa.

Tem andado entre tentativas de recuperação e recaídas, umas a seguir às outras. Mas houve um período marcante de cinco anos “limpo”. Provou que era capaz. Teve um emprego florescente de venda de móveis em segunda mão, tinha uma casa, uma companheira. Era feliz.

Mas tinha também um sócio no negócio que montou. E com ele problemas. “Pensava que não ia voltar a usar e que o meu problema com as drogas estava completamente resolvido. Enganei-me a mim próprio. E, graças a este programa, tenho a consciência que é um problema que vou ter para o resto da minha vida”, diz João, com uma voz arrastada e em que cada palavra sai com som a sofrimento.

Voltou à rua, agora na Amadora, aos roubos e à vida de mendigo. “Não queria saber de nada nem de ninguém. Mas quem anda na rua a obter dinheiro como eu corre bastantes riscos. Ou ia preso, ou aparecia morto.”

Não aconteceu uma coisa nem outra. Na Cova da Moura, onde ia comprar droga, apareceu-lhe António Parente da Comunidade Vida e Paz. Diz que António salvou-o. Trouxe-o para Fátima, onde está há um ano.

Aprendeu muito sobre si próprio. “Esta é uma doença de sentimentos que se manifesta através dos nossos sentimentos. Às vezes, ia usar porque estava eufórico e outras porque estava mal.”

A terapia é saber controlar esses ímpetos. Está na fase final do tratamento. Irá para Odivelas, para um apartamento, onde será acompanhado por uma técnica da instituição. Quer arranjar um emprego e seguir em frente. Já foi muita coisa, desde vendedor a empregado de mesa. Ainda sofre com o presente, mas já consegue olhar para o futuro.

“Sinto-me com força. Sei que não é fácil. Quero reconstituir família, ter um trabalho, uma casa e começar por aí. E quero voltar a fazer desporto. Adoro fazer desporto”, remata.

Comentários
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  • Leonor cunha
    12 mai, 2017 Lisboa 00:59
    Se a sociedade soubesse o ótimo trabalho que os técnicos da comunidade fazem,olhariam para esta Instituição de modo diferente.os voluntários tem mais visibilidade mas são os técnicos que fazem todo o trabalho de encaminhamento,apoio ,diálogo,recuperação e tantas vezes ninguém os entende. Bem haja comunidade vida e paz, seus dirigentes e funci onarios
  • Lurdes
    11 mai, 2017 Maceira 12:07
    Com todo o respeito, ninguém obriga ninguém a mergulhar no álcool e outros assemelhados e nem sequer aceitam conselhos quando ainda têm tempo para parar.

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