07 abr, 2017 - 20:00 • José Bastos
Durante anos – campanha incluída – Donald Trump rejeitou atacar o líder sírio, mas o bombardeamento de caças de Assad contra a população civil em Khan Sheikhun, província de Idlib, e imagens de crianças derrubadas por gases tóxicos levaram à mudança de atitude da Casa Branca. “Cruzou muitas linhas vermelhas”, disse o Presidente.
“Trump está a acordar para uma realidade que altera substancialmente muito do que disse no passado”, sustenta Tiago Moreira de Sá, especialista em política norte-americana e professor da Universidade Nova de Lisboa.
Quanto às consequências do ataque da última madrugada, “depende da reacção da Rússia e outros actores regionais”, diz. “Trump terá de definir uma estratégia de conjunto para todo o Médio Oriente.”
Que leitura merece a reacção da Rússia a partir do facto de o Kremlin ter sido antecipadamente informado do ataque?
Seria de esperar que este tipo de intervenção tivesse tido um conjunto de contactos prévios, em cima da hora, com a Rússia e também com alguns aliados dos Estados Unidos. Agora, o ataque não deixa de ser um acordar de Trump para os limites da relação com a Rússia.
A Rússia é, no mínimo, conivente – ou mais que isso – no ataque com armas químicas à população civil por parte do regime de Assad e Trump tem de equacionar se quer estar nesta má companhia.
O secretário de Estado Rex Tillerson acusa a Rússia com um de dois argumentos: é cúmplice de Assad ou é incompetente porque não garante os acordos de paz. Não é excessivo?
Não. Creio que Tillerson coloca a questão nos seus devidos termos. É um acordar da administração Trump para a impossibilidade de uma reaproximação com a Rússia. Obama e Hillary não compraram a tensão com a Rússia porque lhes apeteceu. Antes pelo contrário. A Rússia resolveu invadir a Ucrânia e ocupar a Crimeia e, na prática, uma parte da Ucrânia, na região de Dombass, na bacia do Donets. Agora foi mais longe participando numa operação com algo que é absolutamente inaceitável, o uso de armas químicas.
A intervenção de Trump é não só necessária como, diria mesmo, inevitável, mesmo que possamos discutir se a forma foi errada, mas a decisão, em si mesmo, é certa. É preciso que a ordem internacional tenha um conjunto de regras, regras do jogo, e só os Estados Unidos estão em condições de aplicar essas regras. E não é aceitável que um regime decida usar armas químicas em qualquer circunstância. Ponto. Era muito importante que a única grande potência existente – os Estados Unidos da América – dissesse que essa é uma linha vermelha da ordem internacional que não pode ser ultrapassada.
Mas, na leitura da reacção russa, poderá haver algum entendimento tácito de Putin com Trump para deixar cair Assad em troca de cedências na Ucrânia?
Essa possibilidade tem estado várias vezes em discussão: a da substituição de Assad, mesmo mantendo o regime liderado pela minoria alauíta, mas não me parece fácil. Em primeiro lugar, porque não é fácil substituir Assad. Em segundo, porque a Rússia tem demasiados interesses na região, em particular a base que lhe dá acesso às águas quentes do Mediterrâneo para arriscar uma mudança de liderança onde tenha menor capacidade de influência. E ainda porque a Rússia não é actor único. Desde logo, há um actor muito importante no terreno, o Irão seja directamente, seja via Hezbollah. Já para não falar da vontade da própria elite síria. Assim, a hipótese não deve ser descartada como possível fórmula de entendimento entre os Estados Unidos e a Rússia, mas uma coisa é clara: os Estados Unidos não podem aceitar nenhuma solução que passe pela manutenção no poder de quem usou armas químicas: Bashar al-Assad.
Trump faz da imprevisibilidade uma arma política, mas sempre recusou atacar Assad. São as imagens de Idlib, com mulheres e crianças, que fazem mudar o Presidente dos Estados Unidos?
Acho que sim. Trump está a acordar para uma realidade que altera substancialmente muito do que disse no passado. Trump deve ter percebido que há determinado tipo de companhias que nós não devemos ter. Assad e esta Rússia são companhias que um Presidente norte-americano não pode ter.
E que peso simbólico confere a Trump ter anunciado o ataque minutos depois do fim do jantar oficial com o Presidente chinês? A China esteve ao lado da Rússia na defesa a Damasco no Conselho de Segurança...
Esse é um ponto interessante que não deve ter caído bem aos chineses... e que – embora seja um lado especulativo – pode ter sido uma demonstração de força que vai muito para além da Síria e é uma espécie de mensagem de Trump para a Rússia, para a China, a de que vai querer relacionar-se com estes velhos actores numa base da força.
Sempre que um Presidente norte-americano usa a força no exterior há grelhas de leitura domésticas. Neste caso, o ataque à Síria surge horas depois de apelidos como Flynn, Bannon e Nunes terem estado no “olho do furacão” em Washington...
Há sempre uma ligação entre a dimensão externa e a interna. Uma das leituras pode ser feita nesse sentido. As coisas não estão a correr bem a Trump no plano doméstico e, às vezes, quando assim é, nada melhor que agitar a frente externa para desviar as atenções. É válido para Trump como para outros. Mas há outra dimensão importante: antes das imagens de Idlib e, mais uma vez, a utilização de armas químicas por parte de Assad, ao Governo norte-americano era muito difícil ter o apoio da opinião pública e da elite política para mais uma operação de força no Médio Oriente.
Mas há, então, uma tentativa de Trump de ser tornar "mais Presidente" na frente externa e "mostrar quem manda" na frente externa?
Sim. Este foi o segundo grande teste internacional de Trump – o primeiro, a Coreia do Norte – à capacidade de liderança e decisão do Presidente norte-americano. Foi assim entendido por Trump. Talvez seja essa uma das razões a justificar que a decisão tenha sido a que foi e tenha sido tomada rapidamente. Trump percebeu a dimensão do teste sírio. Ele, que tanto tinha criticado Obama por ter traçado linhas vermelhas e não actuar, tinha agora de fazer alguma coisa. Mas é mais que só isso: uma grande potência não pode ser uma espécie de rufia que ameaça, mas depois nada faz. A partir do momento em que uma grande potência estabelece linhas vermelhas tem de ser consequente e agir. Obama tinha traçado as linhas vermelhas e não agiu. Desta vez, Trump traçou várias linhas vermelhas e para mim era claro que algo deste género ia acontecer.
Mas para ser verdadeiramente consequente Trump tem de esclarecer uma de duas coisas: explicar a contradição entre o argumento humanitário e a sua proibição de entrada a refugiados ou derrubar Assad. Bombas na pista onde aviões levantam voo não é o mesmo que atingir a elite em Damasco...
Trump tem de fazer duas coisas. A primeira é definir uma estratégia de conjunto para o Médio Oriente. Não basta a Síria. A segunda é definir a estratégia de Washington para a Síria que não tem sido nada clara. Saber se esta foi uma acção isolada, uma espécie de “murro no olho” que fica por aqui ou é mais que isso e há uma estratégia para derrubar Assad e levar a uma mudança da classe dirigente na Síria. Nada é claro. Trump precisa de uma estratégia que não pode passar pelo Assad. A incógnita é se o que foi feito desta vez vai ter consequência. Trump não esclareceu. Há uma série de contradições na maneira de Trump agir. O que o Presidente vai fazer depende também, em segundo lugar das reacções. Saber como Rússia e Síria vão reagir e de que maneira.
Mas podemos ter uma grave crise, com consequências por exemplo no preço do petróleo e, no limite, no crescimento económico em Portugal?
No preço do petróleo não creio porque a questão da produção de petróleo é agora muito diferente de há anos. Há muito maior diversificação das fontes de fornecimento, por exemplo, Estados Unidos e Canadá são hoje praticamente auto-suficientes. Pode acontecer uma de duas coisas. Na perspectiva mais optimista, pode haver uma redefinição das regras do jogo na ordem regional do Médio Oriente. Na pior perspectiva, podemos estar em vias de transformar uma guerra civil num conflito mais generalizado no Médio Oriente. Esse é o grande receio. Até agora tem sido possível conter a guerra civil na Síria. O receio é que o conflito se possa transformar numa guerra muito complicada entre potências regionais. Não estou a dizer que vá acontecer, mas não é impossível.
E quanto ao atentado de Estocolmo, de novo um ataque indiscriminado numa baixa de uma grande cidade europeia...
Olho para Estocolmo como para os casos anteriores: estou um pouco em desacordo com o que tem sido dito nestas alturas. O discurso do "nós temos que nos habituar a um novo modo de vida que é este". Se isso quer dizer que muitos destes atentados não podem ser evitados – e muitos são – e que, durante um tempo, vão repetir-se e temos de saber viver com essa realidade, então concordo. Se isso significa estarmos inactivos e não reagirmos, então não concordo. A verdade é que quer a França, quer a Inglaterra, quer agora a Suécia foram atacados, ao que tudo indica, atacados no seu próprio território pelo Estado Islâmico e o Estado Islâmico tem um território. Tem uma capital da cidade síria de Raqqa. O Daesh tem, portanto, território na Síria e no Iraque. E o que as potências - minimamente dignas desse nome – fazem quando são atacadas é retaliar em força.
Quando os Estados Unidos foram atacados no 11 de Setembro retaliaram em força no Afeganistão. É verdade que estão lá há tempo a mais, mas, na altura, fizeram bem. A França e a Inglaterra, que são potências relevantes, pouco fizeram depois de atacadas. Acho que se "habituar" significa pouco fazer então, desse ponto de vista, não poderei estar mais em desacordo.