Entrevista

"As pessoas não falam da guerra colonial". Por que caraças, Ivo M. Ferreira, queres tu falar?

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"As pessoas não falam da guerra colonial". Por que caraças, Ivo M. Ferreira, queres tu falar?

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01 set, 2016 - 19:41 • Catarina Santos

Ele explica, em entrevista à Renascença. Incomodava-o saber que a guerra tinha sido "atirada para o mesmo canto do fascismo". Nem os ex-combatentes, que agora fazem excursões para ver "Cartas da Guerra", falavam dela. "Sinto que este filme tem funcionado para fazer um desfolhar da cebola."

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Viagem à guerra de Lobo Antunes para arrancar fantasmas
Viagem à guerra de Lobo Antunes para arrancar fantasmas

Chega com ar de quem veio a correr e sem o casaco que o fim de tarde fresco já pedia. Os dias têm sido compridos e atarefados para Ivo M. Ferreira. Sentado numa esplanada do Príncipe Real, em Lisboa, interrompe a conversa com a Renascença múltiplas vezes para cumprimentar amigos e actores que circulam por ali e lhe querem dar os parabéns. Não se queixa por um segundo da correria. Tem um ar de concretização. Depois de seis anos na gaveta, "Cartas da Guerra" chega esta quinta-feira às salas de cinema nacionais.

Há muito que o realizador queria tratar o tema da Guerra Colonial, "mas nunca tinha encontrado uma forma". Até que tropeçou nas cartas que o jovem António Lobo Antunes escreveu à mulher durante uma comissão de serviço em Angola, entre 1971 e 1973 (tinham sido organizadas pelas filhas de ambos e publicadas no livro "Deste Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas de Guerra", em 2005).

Um dia ouviu a mulher (Margarida Vila-Nova, que interpreta a mulher de Lobo Antunes no filme) ler o livro para a barriga onde crescia o filho de ambos e a ideia plantou-se. "Em termos históricos, de documento de guerra, em termos biográficos e de uma história de amor fantástica, havia uma série de elementos que me permitiam pensar que daria um bom filme." Escreveu o argumento com Edgar Medina em pouco mais de quatro meses.

O que se desenhou foi uma narrativa feita de retalhos, guiada pela voz da mulher que lê as cartas. As cenas estão cheias de actores quase mudos – "forrados de silêncio por dentro", como diz António (interpretado por Miguel Nunes) numa das primeiras cartas do filme.

"As pessoas não falavam da guerra na guerra. Nem depois"

A pesquisa para o filme passou não só por outros escritos e livros de Lobo Antunes, como "Os Cus de Judas" ou "Memória de Elefante", mas também por conversas com outros antigos combatentes. Ouviu muitas vezes reacções. Como esta: "Mas por que caraças é que tu queres falar nisto?".

"As pessoas não falavam da guerra na guerra. Foi das primeiras coisas que eu percebi. Nem hoje eles falam na guerra. Eles [ex-combatentes] fazem almoços todos os anos e não falam nisso uns com os outros", diz.

Ivo M. Ferreira percebeu que muita coisa que ficou enterrada, "atirada para o mesmo canto do fascismo" para nunca mais se revisitar. Todo um período de "anseios e medos que não eram revelados nem à família nem aos colegas", que criou "um aquartelamento de silêncio muito mais forte do que o que eles tinham enquanto lá estavam".

Por isto tudo, Ivo não podia ter ficado mais surpreendido com as reacções que tem tido. "Sinto que este filme tem funcionado para fazer um desfolhar da cebola que, se calhar, também só podia acontecer agora, quando as pessoas estão naturalmente a desaparecer."

Agora que o filme finalmente chega às salas, trouxe uma surpresa para Ivo M. Ferreira. "Pensei sempre que as mulheres, as filhas, os filhos é que iriam ver o filme. As pessoas que os viram voltar diferentes. Mas de repente sei que há excursões de ex-combatentes, que é uma coisa que eu nunca pensei."

Descolar da história, descolar do peso do homem

Uma noção muito clara guiou todo o processo de construção do projecto: Ivo sabia que tinha de se libertar para poder construir o seu próprio filme. Primeiro, soltando-se das amarras da história, porque não queria fazer "um retrato didáctico da Guerra Colonial".

"Quando estamos a falar da memória, é sempre uma interpretação. Falas com duas pessoas que viveram a mesma situação e eles vão-te contar histórias diferentes. E não é porque te querem omitir coisas ou enganar. Tudo isto é uma construção. O cinema é mais uma construção sobre a memória – neste caso, criando uma outra memória", reflecte. Foi um dos motivos para a escolha do preto e branco ("nós precisamos de um filtro para lidar com este tema").

Depois, tinha de se soltar do peso de um nome. Por um lado, Ivo queria que a base fosse genuína. "Sabia que o meu António tinha que ser bonito, tinha que ter os olhos claros" e que tinha de ter "uma energia qualquer especial", própria de "um intelectual da burguesia lisboeta, um psiquiatra, com particularidades que o poderiam afastar do grupo em que estava inserido". Todos esses elementos contribuíram para a criação da personagem, mas só para depois poder alargar o espectro. "Houve coisas que caíram, outras que ficaram lá, outras que são reinterpretações."

Não vale a pena, portanto, ir para "Cartas da Guerra" à procura de um retrato biográfico de António Lobo Antunes. Aquele homem que inspira o filme estava ainda no seu próprio ponto de partida. "Era um homem que ainda não tinha editado um livro, era o António Lobo Antunes de 28 anos" e não fazia sentido carregar "o peso daquele que é hoje um dos grandes escritores mundiais e um homem muito especial".

O homem que inspira a história ainda não viu a adaptação ao cinema das suas cartas. Dá por si, o realizador, a imaginar esse momento? Ivo M. Ferreira demora-se a olhar para outro lugar e acaba por soltar que "se calhar vai achar um perfeito disparate".

Não quer focar aí a conversa. Claro que se lhe dissessem que António Lobo Antunes estava neste momento a entrar numa sala para ver o filme não evitaria ficar "impaciente, alerta, curioso, expectante…". "Acho que vai acabar por acontecer."

A longa espera

A terceira longa-metragem de Ivo M. Ferreira estava congelada desde 2010, quando o Instituto do Cinema e do Audiovisual viveu o seu "ano zero" e todo o financiamento paralisou. "Foi horrível, porque perdi a energia, a vontade de acreditar, de fazer tudo no cinema, no país."

Ivo já não aproveitou o lanço do filme anterior – "Águas Mil", que em 2009 tinha feito uma carreira interessante, com estreia mundial em Roterdão. Já não pôde, pela primeira vez, experimentar alguma regularidade no trabalho. "É importante não só para sobreviveres, mas também para saberes para onde estás a ir como cineasta."

Isso quebrou-se e o realizador afastou-se. "Acho que fiz a única coisa que tinha para fazer." Foi para Macau com a mulher e os dois filhos e deixou o argumento de "Cartas da Guerra" selado. Entreteve-se a escrever outras coisas (incluindo "Hotel Império", que vai começar a filmar em Macau dentro de dois meses).

Quando voltou a pegar na história e se preparou para ir para Angola filmar, em 2015, tinha "crescido e claro que a relação com o filme era diferente". Partiu com 46 actores e com a certeza do que queria. "Eles queixavam-se muito de mim porque eu não falava muito. Mas dava-lhes coisas para fazer." Fizeram a recruta com os comandos, habituaram-se a segurar uma G3 e, "para saber o que se passava na cabeça deles", Ivo pediu-lhes que escrevessem cartas em nome das respectivas personagens.

E aconteceu uma daquelas coisas que "nunca se pode dizer à frente de um produtor". O facto de haver um orçamento limitado obrigou a que os actores guardassem a farda e a G3 no próprio quarto onde dormiam. Na primeira vez que os viu sair do quarto já fardados, Ivo ficou chocado e pensou "Onde já chegamos". Mas depois olhou melhor e percebeu que aquilo tinha uma influência imprevista no comportamento. Viu efectivamente soldados de farda gasta a servir-se na sala de pequeno-almoço.

Em menos de um ano, "Cartas da Guerra" estava pronto. Era já outro, mudou, cresceu, adaptou-se ao que era possível e sobreviveu a alguns impossíveis. "É isso que é fazer um filme."

Comentários
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  • F.BATISTA
    14 set, 2016 gaia 12:57
    ESTE CINEASTA TORNOU-SE INCONVENIENTE,PRINCIPALMENTE PARA O ESTADO PORTUGUÊS E PARA O GOVERNO.COMO EX-COMBATENTE EM MOÇAMBIQUE AGRADEÇO ,AO CINEASTA IVO TEIXEIRA,RELEMBRAR A HISTÓRIA.É VERGONHOSO QUE OS GOVERNANTES DESTE PAÍS CONTINUEM A COBRAR IMPOSTOS AOS EX-COMBATENTES NAS SUAS REFORMAS.CONTINUAREI A AMAR O MEU PORTUGAL,O QUE NEM TODOS O PODERÃO FAZER,PORQUE AS SUAS CONSCIÊNCIAS DO DEVER CUMPRIDO,ESTARÁ ABALADO PELO ESQUECIMENTO PELOS SEUS HERÓIS.RESPEITOSOS CUMPRIMENTOS.
  • F.BATISTA
    11 set, 2016 gaia 13:55
    FUI COMBATENTE NO ULTRAMAR.COMO QUEREM QUE OS NOSSOS GOVERNANTES FALEM DA GUERRA SE OS COMBATENTES FORAM ESQUECIDOS.ESTÃO á ESPERA DE UM 10 DE JUNHO PARA FAZEREM JUSTIÇA AOS COMBATENTES.?O FM.A. O QUE DIZ ?O PRESIDENTE DA REPÚBLICA VAI DAR UM ABRAÇO A UMA DÚZIA DE COMBATENTES?SERVI PORTUGAL EM MOÇAMBIQUE NUMA ZONA 100% DE RISCO,DERAM-ME UM PEQUENO PR´EMIO DE RISCO EM QUE NORMALMENTE,COBRAM-ME IMPOSTOS DESSE PRÉMIO.CONTINUAREI A SER PORTUGUÊS E A AMAR PORTUGAL,MESMO CONTINUANDO A SER ESQUECIDO PELO ESTADO PORTUGUÊS.RESPEITOSOS CUMPRIMENTOS.OS QUE PARTIRAM PARA A ETERNIDADE DESCANSEM EM PAZ.
  • Luis
    08 set, 2016 Lisboa 21:59
    O filme não retrata a Guerra Colonial. Isso seria totalmente impossivel. Primeiro porque não ouve uma Guerra Colonial. Houve pelo menos três Guerras Coloniais totalmente distintas umas das outras. Guiné, Angola e Moçambique. As três totalmente diferentes entre si em muitas coisas que seria dificil aqui e agora explicar. Por ou outro lado o retrato dessa "Guerra Colonial" levada ao cinema é a guerra que alguns numa determinada zona de guerra viram, viveram e transmitiram. A colonia com mais guerra na "Guerra Colonial" foi a Guiné. Em muitas zonas a Guiné foi um autêntico inferno mas em algumas o tempo passou com dificuldades mas sem saberem o que foi guerra. Quem na Guiné esteve em zonas (poucas) em que não houve guerra que opinião é que hoje pode transmitir sobre o que foi a "Guerra Colonial"? Se pela "Guerra Colonial" passaram um milhão de soldados quase que se poderia dizer que em forma de retratar o que foi a "Guerra Colonial" houveram um milhão de guerras. Cada um viveu a "sua guerra" em função de inumeras circunstâncias. Vejam o filme como ele deve ser visto pois outros virão retratando diferentes temas , com diferentes abordagens e com diferentes leituras.
  • Viriato
    08 set, 2016 Condado Portucalense 21:24
    Não vou ver o filme porque hoje em dia o cinema não é mais nem menos que o braço armado dos regimes e dos lobbies. Aonde é que eu já ouvi isto.?Sei bastante da guerra porque nasci na Africa Portuguesa, portanto sou português desde que nasci, e com mui o orgulho. Falo com propriedade e não vou em livros ou filmes. A guerra estava ganha se não houvesse traições á Pátria. A quem é que interessou que perdêssemos a guerra colonial?...eu respondo sem precisar de pensar muito. Vou numerar o nome dos traidores: 1° Gente próxima do regime (alguns foram militares) 2° Os comunas (PCP dos maoístas aos estalinistas e trotskistas),3° Os xuxalistas em 4° os colonos traidores (que trataram de desarmar as tropas portuguesas para as entregar aos futuros oligarcas das nossas ex provincias ultramarinas)que alguns foram nomeados em África pelo Sr.Dr.Oliveira Salazar e em 5° e em ex-aquo os monos dos americanos de um lado e do outro o monstro que criou o PCP a união soviética. E mais não digo porque senão ficam a saber mais do que eu. Abram os olhos. Viva o Partido Nacional Renovador.
  • Francisco Dores
    08 set, 2016 Porto 13:23
    Quando um filme se baseia na obra de um escritor, que escreveu que o Batalhão de que fez parte sofreu 200 mortos, está tudo dito. Eu não me revejo neste autor, mas, isso sou eu.
  • amorabe
    06 set, 2016 Gondomar 16:08
    Temo que este filme não respeite os ex-combatentes e permita uma imagem de libertinagem dos que, como eu, fomos obrigados a servir a PÁTRIA. As guerras, em geral injustas, acontecem pelo mundo; os patriotas de cada país em geral são os seus escravos; neste contexto julgo ser nosso dever servir a Pátria. Servi em Moçambique durante 28 meses, onde defendemos e preparamos socialmente os nativos para a sua independência. Não fui militar dos quadros do nosso Exército, fiquei com a minha vida atrasada cerca de 4 anos... nos encontros anuais que fazemos recordamos os bons e os maus momentos da guerra. Sejamos patriotas e lutemos por uma bandeira de nós todos.
  • luis
    05 set, 2016 Viseu 22:41
    Boa noite, Haverá com certeza, histórias (reais) muito mais realistas e também (penso eu...) mais esclarecedoras. É só procurarem no "baú" das memórias retratadas e espelhadas pelo País profundo, e não com "escritos" de uma classe privilegiada, que era no fundo os "nossos" médicos em "campanha". Boa noite
  • Vasco
    04 set, 2016 Santarém 12:03
    Desconheço por completo o filme no entanto só espero que não seja para denegrir muito ao desejo de certos partidos que por aí militam e que no passado até estiveram do lado do inimigo, a imagem dos nossos soldados que no Ultramar cumpriram com todo o patriotismo a missão que lhes foi confiada, uns com mais sorte outros com menos mas infelizmente as guerras não são campos de lazer e não há nenhuma independentemente do país ou regime que possa ser agradável para quem tem que ir para lá cumprir a sua missão, no nosso caso melhor seria não terem existido mas nunca há guerras se não houverem pelo menos dois intervenientes e se pelo nosso lado muitos poderão contestar a decisão de Salazar o que poderão outros então dizer da intromissão da União Soviética e outros que entraram entretanto na concorrência em terreno que nada lhes dizia respeito e que afinal tinham entre portas males mais graves? Cumpri a minha missão no norte de Angola entre 72/74.
  • CAMINHANTE
    02 set, 2016 LISBOA 18:00
    Tanta tolice e absoluta ignorância aqui expressa nalguns comentários. Só quero relembrar que os Ex-combatentes, no contexto da História do Tempo, serviram dignamente a Pátria. Só quero alertar que actualmente estamos com conflitos e problemas bem graves, perigos potenciais , e que realmente não há interesse especial e construtivo em trazer este tema para a discussão Nacional. Porque é passado, não tendo já qualquer influência no hoje nem no amanhã ( ja´teve nas consequências, que não foram propriamente cravos em ponta de espingardas).
  • miguel tavares
    02 set, 2016 seixal 17:49
    A razão porque houve a guerra, foi, e será a mesma razão de sempre, dinheiro, e proteger costas aos ricos, os que não querem saber da guerra e muito menos ouvir falar muitos eram os tais que bisâvos, e avôs andavam lá de costa direita com altos cargo militares e outros a roubarem com fartura, e a serem abanados pelos negros e foi essa vidinha que acabou primeiro porque acabou a guerra, e segundo porque os negros começaram lhe a cortar lhes o pescoço. tinham lá palacetes e ficou lá tudo. No presente rebentou novamente a " febre" Angola mas desta vez já estão lá outros " bigodes" e os Portuguesitos não levam de lá nada, tanto que começam a voltar, mas estejam descansados quando os negros começarem a aprender a trabalhar expulsam de vez o Português ficando lá tudo novamente e rebenta outra guerra civil fomentada pelas potências devido ao petróleo, ouros, diamantes que aquilo está carregado disso.

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