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Fidel. O revolucionário que no início não era marxista

26 nov, 2016 - 11:51 • Filomena Barros

O antigo-ministro dos negócios estrangeiros Martins da Cruz recorda em entrevista à Renascença a figura de Fidel Castro. Lembra-se de um líder determinado, com humor, mas ideologicamente inamovível. Fala do relacionamento de Fidel Castro com Portugal, e de uma caixa de charutos Cohiba que guarda com apreço.

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Como deve o mundo recordar Fidel?

Fidel Castro foi, seguramente, uma figura histórica. Não só para América Latina, como também para o mundo. Fidel, com as suas contradições, encarnou a revolução cubana e esta revolução marcou profundamente as alterações na América Latina e também a história mundial. Fidel encarnou a revolução cubana com as suas esperanças, mas também com as suas desilusões. É uma figura que marcará positiva e negativamente a história da última metade do século XX e princípio do Século XXI.

Mas Fidel produz sentimentos contraditórios: é odiado por uns e amado por outros...

Sim. Nós não podemos esquecer que a revolução cubana, de um ponto de vista interno, foi muito dura. Houve milhares e milhares de mortos. Houve repressão. Como aliás acontecia nos regimes marxistas e, claro, os exilados cubanos, sobretudo em Miami, manifestaram-se contra o que para eles significava o símbolo da opressão e que os obrigou a deixar ilha e a deixar Cuba.

Agora também temos que ver a parte positiva de Fidel Castro e uma delas está relacionada com Portugal. Por exemplo, não nos podemos esquecer que foi graças à decisão de Fidel Castro de enviar tropas para Angola - chegaram estar em Angola durante a guerra civil quase 150 mil cubanos -, que foi possível ao governo legítimo de Angola resistir à invasão do apartheid da África do Sul e aos grupos internos angolanos apoiados pelo apartheid. Portanto, esse esforço de Fidel Castro em relação ao país irmão que é Angola também tem um significado para Portugal.

Com a morte de Fidel Castro, o desanuviamento iniciado pelo presidente norte-americano, Barack Obama pode aprofundar-se?

O desanuviamento foi possível com Barack Obama porque aconteceu uma evolução no próprio regime cubano. Desde que Raúl Castro assumiu o poder tem dado sinais muito positivos. Por exemplo, não nos podemos esquecer que a paz que agora se está a celebrar na Colômbia foi possível graças à intermediação de Cuba, da Noruega e da Santa Sé. Mas Cuba teve um papel muito importante. Aliás foi no território cubano que se desenrolaram a maior parte das conversações de paz. Portanto, a aproximação com os Estados Unidos também é possível porque Raúl Castro alterou ligeiramente a linha do seu irmão.

Vamos ver agora, a partir de 20 de Janeiro, se a nova administração norte-americana prossegue nessa via que é aliás uma via com esperança para toda aquela região do mundo; já não estamos em altura de boicotar e de fechar as fronteiras de um país. Num mundo globalizado em que todos temos cada vez mais os mesmos problemas e enfrentamos as mesmas preocupações, penso que a nova administração americana deve manter este desanuviamento em relação a Cuba e deve até procurar convencer o Congresso, que tem maioria republicana, a abolir um certo tipo de leis que ainda impedem investimentos, comércio e mesmo turismo em relação a Cuba.

Contactou várias vezes com Fidel Castro. Como era Fidel num contacto mais pessoal?

Eu conheci Fidel Castro - estive com ele em cinco ou seis cimeiras ibero-americanas. E Fidel Castro tinha um certo espírito de humor. Falei com ele várias vezes - lembro-me que uma vez que até me ofereceu uma caixa de charutos Cohiba. Eu não fumo, mas guardo-a com apreço. E não me esquece também de uma vez Fidel Castro começar o seu discurso dizendo que tinha feito uma viagem de sete a oito horas para chegar ao encontro num avião soviético e rematou dizendo: “os senhores não sabem o que é viajar num avião soviético” e riu-se e rimo-nos todos. Ou seja, Fidel Castro também tinha uma certo humor até em relação àqueles que eram os seus guias ideológicos e o país que mais o apoiou que foi a União Soviética.

Eram também famosos os discursos de longas horas de Fidel Castro...

Sim, mas nestas cimeiras internacionais, Fidel Castro era bastante moderado. Nunca falava mais de dez a 12 minutos. Falava bem. Todos nós já sabíamos o que é que ele ia dizer, porque ele nunca mudou o seu discurso. Era um discurso violentamente anti-americano, mas dirigia-se obviamente a países da América latina.

Fidel Castro foi sempre fiel a si próprio, ou seja, primeiro tornou-se revolucionário no princípio da revolução e depois tornou-se marxista, coisa que não era no começo, quando iniciou a luta contra a ditadura de Fulgêncio Batista, e acabou com a ditadura em Cuba. Depois, Fidel foi fiel até ao fim aos mesmos princípios, ou seja, não teve e não permitiu que houvesse em Cuba uma Perestroika, que houvesse uma evolução. Não. Foi só depois com a sua saída de cena, que o irmão, Raul Castro, deu alguns passos que tiveram a aproximação significativa e com esperança aos Estados Unidos.

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