1934-2016

Leonard Cohen calou-se. Ficamos com o amor, o ódio, as canções e os poemas

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Leonard Cohen calou-se. Ficamos com o amor, o ódio, as canções e os poemas

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11 nov, 2016 - 13:13 • Pedro Rios

Entrou tarde na música porque era poeta e poeta queria ser e poeta foi até aos últimos dias. Leonard Cohen, o genial dono de uma voz austera e sensual, morreu.

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Leonard Cohen. Poeta, cantor, monge, sedutor
Leonard Cohen. Poeta, cantor, monge, sedutor

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“Hineni, hineni/ I'm ready, my Lord”. Aqui estou eu, estou pronto, meu Senhor. Ele cantou isto em “You Want it Darker”, do novo disco, homónimo, lançado há dias, sinalizando que o fim podia estar próximo. O fim chegou esta semana, 82 anos depois de Cohen nascer.


Quando Bob Dylan venceu o Nobel da Literatura, não faltou quem dissesse que preferiria que o prémio fosse para outro músico-poeta, Leonard Cohen. Ele, com humildade, considerou que dar o prémio a Dylan era como "dar uma medalha ao monte Evereste por ser a montanha mais alta".

“Cohen foi responsável número um pela dignidade poética da música”, disse à Renascença o crítico literário e poeta Pedro Mexia. "Isso ficará sempre, mesmo para aqueles menos sensíveis” à obra de Cohen.

Música e literatura sempre andaram lado a lado no percurso de Cohen, que, ao contrário do habitual, se distinguiu primeiro nas palavras e só depois nas canções.

Do grupo de músicos que despontaram nos anos 60, diz o All Music Guide, só Bob Dylan e talvez Paul Simon (e Joni Mitchell, acrescentamos) conseguiram manter a atenção dos críticos e de novas gerações de música. “Conquista notável para alguém que nem sequer aspirava a uma carreira musical quando estava nos seus trintas”, escreve o All Music Guide.

Ir contra a colmeia

Leonard Norman Cohen nasceu em 1934, um ano antes de Elvis Presley, numa família judia de classe média, em Westmount, subúrbio de Montreal. Só se afirmou na música depois de escrever vários livros – pegou numa guitarra aos 13 para impressionar uma rapariga, tocou country em bares, mas até aos anos 60 não foi mais longe do que isso.

O pai morreu tinha ele nove anos. A mãe encorajou-o a escrever, sobretudo poesia, na sua infância. Tinha Federico García Lorca entre os seus maiores interesses literários. Na universidade, forma-se em Inglês, mas não era aluno de grandes notas. O primeiro livro de poesia, “Let Us Compare Mythologies”, foi editado no ano seguinte, mas foi em 1961, com “The Spice-Box of Earth”, que Cohen se tornou uma figura literária reconhecida.

Escreveu, escreveu muito – poesia, romances. Durante algum tempo, viveu longe das origens, quase exilado – comprou uma casa em Hydra, uma ilha grega. Enquanto vivia naquele sossego grego, Cohen publicou as colecções de poesia “Flowers for Hitler” (1964) e os romances “The Favourite Game” (1963), editado em Portugal em 2010 (“O Jogo Preferido”), e “Beautiful Losers” (1966). Com este último livro, cujas passagens sexuais lhe valeram uma polémica, foi mesmo comparado a James Joyce.

Em 1998, explicaria desta forma a um entrevistador o seu processo de escrita. É “como um urso ir contra uma colmeia ou um recipiente com mel: estou a ir contra isso e a ficar preso e é delicioso e é horrível e estou lá e não é nada bom e é muito estranho e é muito doloroso e, apesar de tudo, há algo de inevitável naquilo”. Em 2011, venceu o Prémio Príncipe das Astúrias de Literatura, um dos vários galardões literários que recebeu.

Farto de ver os seus livros venderem pouco, Cohen visitou Nova Iorque em 1966 para investigar a cena folk-rock da cidade. Foi lá que encontrou a cantora Judy Collins que fez de “Suzanne”, que nasceu como poema de Cohen (as canções foram “extensão natural da sua poesia”, diz o All Music Guide), um sucesso.

Corria o ano de 1966. No ano seguinte, Cohen lançaria “Suzanne” e outras nove canções em “Songs of Leonard Cohen”, o seu álbum de estreia. Tornou-se um disco de culto, vendendo em dois anos 100 mil cópias.


Sem vender milhões, Leonard Cohen afirmou-se no firmamento do rock e da pop – em 1970 esteve no Festival Isle of Wight, em Inglaterra, meca da contracultura daqueles anos, ao lado de gente como Jimi Hendrix, Emerson, Lake & Palmer. Um feito para quem começara a fazer digressões pouco tempo antes.

O poeta virara personagem da cena folk e rock de Nova Iorque. Chegou a viver no Chelsea Hotel, tendo como vizinha Janis Joplin. Em 1969, lançou “Songs from a Room”, mais negro e melancólico do que a estreia. Nele ouvimos "The Story of Isaac”, uma história bíblica vertida em metáfora folk da guerra do Vietname, cantada sobre uma guitarra vulnerável (“When it all comes down to dust/ I will help you if I must/ I will kill you if I can”).

“Songs of Love and Hate” (1971) é um dos seus discos mais aplaudidos. Como o antecessor, beneficiava de uma produção mínima, que sublinhava a beleza crua da voz do poeta virado cantor. Chegado a 1974, novo triunfo artístico: “New Skin for the Old Ceremony”, disco em que começa a vestir as canções com mais roupa, de violas a bandolins, de banjos a percussão.

Com “Death a Ladies’ Man”, de 1977, tenta uma nova mudança de som, com a ajuda do célebre produtor Phil Spector, inventor da técnica “Wall of Sound” (camadas e camadas de instrumentação, a milhas da austeridade do som com que Cohen se apresentou ao mundo). Cohen não gostou e praticamente deserdou o disco.

Com “Various Positions” (1984), experimenta os sintetizadores e os ares sofisticados dos tempos. Consegue dois clássicos: "Dance Me to the End of Love" (aqueles “la la la la” do início, aquelas cordas de valsa ébria, poderiam muito bem ser património imaterial da humanidade) e “Hallelujah" (música divina: “Now I've heard there was a secret chord/ That David played, and it pleased the Lord/ But you don't really care for music, do you?/ It goes like this/ The fourth, the fifth/ The minor fall, the major lift/ The baffled king composing Hallelujah”), uma das canções com mais versões de sempre.

Por esta altura, a voz de Cohen surgia rugosa, monótona como sempre, gloriosamente envelhecida, sensual como poucas.

A música abrandou o fluxo literário. Em 1978, editou o primeiro livro de poesia em muitos anos. E só em 1984 lançaria um novo, “Book of Mercy”, que venceu o Canadian Authors Association Literary Award for Poetry.

Em 1995, Cohen interrompe a carreira musical para se tornar um monge budista no Mt. Baldy Zen Center, nas imediações de Los Angeles. Não era um abandono do judaísmo – Cohen via no budismo uma forma de lidar com episódios depressivos, recorrentes na sua vida.

Só voltou à música em 2001, com “Ten New Songs”.

Em 2005, Cohen descobre que Kelley Lynch, a sua agente, lhe roubara mais de cinco milhões de dólares do seu plano de reforma. Para recuperar o dinheiro, Cohen empreendeu uma digressão mundial com mais de 387 concertos, entre 2008 e 2013. Antes do álbum de despedida, lançado em Outubro, fez dois discos, “Old Ideas” (2012) e “Popular Problems” (2014).

Dez músicas para recordar Leonard Cohen
Dez canções para recordar Cohen

Depois do final da digressão, em 2013, Cohen praticamente desapareceu. Em Outubro de 2016, lançou “You Want It Darker”, produzido pelo filho, Adam. Os problemas de costas não deixaram Cohen sair de casa, por isso Adam colocou um microfone na sala da casa do cantor e gravou-o directamente para o computador.

“Hineni, hineni/ I'm ready, my Lord”. Aqui estou eu, estou pronto, meu Senhor, cantou Cohen. Dias depois, deixou-nos.

Comentários
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  • aletras
    12 nov, 2016 lx 09:20
    Nunca é tarde para nascer. Grande L.Cohen , RIP DEP
  • Joao
    11 nov, 2016 Porto 19:28
    O titulo diz que entrou tarde na música. Tarde. Será tarde para nascer?

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