15 set, 2016 - 07:00 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Nas controversas declarações que fez na semana passada, Hillary Clinton dividiu os apoiantes de Trump em duas metades: os que aderiram ao candidato porque se revêem nas suas afirmações racistas, sexistas, xenófobas, islamófobas – a que chamou o “cesto dos deploráveis”; e os que se sentem excluídos da economia, acham que o governo os abandonou e lutam com dificuldades financeiras no dia-a-dia, o que explicaria a sua revolta contra o sistema político – o outro “cesto”.
Posteriormente, Hillary corrigiu o tiro e pediu desculpa por ter dito que metade pertencia ao primeiro cesto, dando a entender que a esmagadora maioria dos apoiantes de Trump tinham sobretudo motivações económicas.
Mas será mesmo assim? Será o potencial eleitorado de Trump constituído maioritariamente por pessoas que vivem com dificuldades, vítimas do desemprego, excluídas da economia? Haverá certamente muitos casos desses, mas os estudos provam que não é essa a realidade.
O rendimento médio familiar daqueles que votaram em Trump nas primárias é superior ao da média do país e dos eleitores dos outros candidatos. Enquanto o rendimento médio dos agregados familiares americanos se situou nos 56,5 mil dólares no ano passado, o dos votantes em Trump é de 72 mil e o dos votantes em Hillary Clinton e Bernie Sanders de 61 mil.
Desde o início da campanha que Donald Trump tem feito um retrato catastrófico da economia americana, chegando a dizer em alguns comícios que o desemprego andava pelos 25%, quando está nos 4,9%, a aproximar-se do número que os economistas consideram representar virtualmente o pleno emprego – os 4%.
No início da recessão, em 2008, o país perdia cerca de 800 mil empregos por mês. Quando o presidente Obama tomou posse, em 2009, e adoptou um vasto programa de estímulo económico para evitar que a recessão degenerasse em depressão a situação foi-se invertendo lentamente e nos últimos anos foram criados entre 200 e 300 mil empregos por mês. Desde então que todos os meses cresce o número de pessoas empregadas. Só em 2015 surgiram 3 milhões de postos de trabalho. Em Nova Iorque, por exemplo, é cada vez mais frequente verem-se lojas a anunciar disponibilidade para contratar.
Mais emprego, menos pobreza
Mas nem só o emprego tem melhorado. Todos os dados apontam para o fim da estagnação económica. O Census Bureau, equivalente ao Instituto Nacional de Estatística, divulgou esta semana o seu relatório anual referente a 2015 que vem confirmar isso mesmo.
Os rendimentos das famílias aumentaram 5,2% de 2014 para 2015, uma subida sem precedentes desde que se registam estatísticas. Situam-se agora nos 56,5 mil dólares, ainda 1,6% abaixo do que em 2007, antes da crise, e 2,4% abaixo do pico da prosperidade na década de 1990.
A pobreza diminuiu 8%, há menos 3,5 milhões de pessoas nessa condição, um decréscimo que não se registava desde 1968. Mesmo assim ainda há 43 milhões de americanos considerados pobres. A taxa de pobreza baixou mais entre negros e hispânicos, apesar de os seus rendimentos terem subido menos do que os das famílias brancas.
Há agora menos de 10% de pessoas sem seguro de saúde. Mais exactamente 9,1%, porque os que não estavam cobertos baixaram 1,3%. Esta melhoria resulta do novo sistema de saúde, o Obamacare, e é a melhor situação de sempre no país.
Os salários pagos à hora subiram 2% e foram os agregados mais pobres que viram subir mais os seus rendimentos – 7,9%. As diferenças salariais entre homens e mulheres atingiram o nível mais baixo de sempre.
Uma análise mais sectorial mostra que no mundo rural os rendimentos médios não subiram, mantendo-se nos 44,7 mil dólares, substancialmente abaixo dos 56,5 da média nacional. O Sul é a região do país que mais cresceu, enquanto o Midwest perdeu população e a economia estagnou.
Excluindo portanto situações sectoriais (sociais ou regionais), a economia americana está decididamente no bom caminho e recuperou da Grande Recessão de 2008 com um ritmo e uma pujança muito superiores à Europa, que ainda hoje se debate com taxas de desemprego que em muitos casos atingem os dois dígitos, como em Portugal, com taxas de crescimento anémicas e com dívidas públicas e privadas asfixiantes.
Se esta é uma realidade fácil de entender para um europeu, especialmente um europeu do sul, talvez já não seja tão fácil entender a disparidade entre a realidade económica americana e aquilo que Trump dela diz. É evidente que quem concorre pela oposição tem sempre de traçar um quadro desfavorável da situação, sob pena de não conseguir justificar a sua própria aposta.
O cesto dos deploráveis
Mas que aderência à realidade têm afirmações de Trump segundo as quais o desemprego atinge em alguns casos 25%? Ou que se estão a perder milhões de postos de trabalho? Ou que os acordos de comércio internacional liquidaram milhões de empregos? Ou que a América está em declínio acelerado? Ou que as políticas económicas de Obama são um desastre total para o país? Ou que o Obamacare é outro desastre que tem de ser liquidado?
É verdade que uma boa parte dos apoios de Trump vêm do mundo rural e aí os rendimentos das pessoas não têm subido. É verdade também que muitos outros apoios vêm de zonas deprimidas economicamente onde as indústrias tradicionais entraram em declínio e a mão-de-obra pouco qualificada que delas dependia ficou sem trabalho e sem perspectivas.
Mas os 14 milhões de votos que teve nas primárias e os que as sondagens lhe creditam para Novembro ultrapassam significativamente aqueles dois sectores sociais. Trump colhe também apoios entre muitos eleitores que não têm quaisquer dificuldades económicas e, segundo o estudo já citado, têm até rendimentos superiores à média do país. Não são portanto americanos que se sentem excluídos da economia ou que sentem que o governo os deixou para trás nesse aspecto.
São sobretudo americanos brancos, conservadores, revoltados com a classe política, com o "establishment", com Washington, com a ascensão das minorias, com o aumento da imigração, com tudo que seja diferente deles e que vêem como ameaçador para o seu mundo tradicional. Um mundo que sentem a desmoronar-se a ritmo acelerado.
A sua adesão a Trump tem muito mais de ideológico do que de económico. É bastante mais uma questão de mentalidade, de formação, do que de conforto financeiro. E as mentalidades que recusam a diferença são sempre as mais propensas aos discursos deploráveis. É nelas que radica a rejeição do outro, do diferente – o racismo, o sexismo, a xenofobia e por aí fora.
Por isso, talvez a correcção posterior de Hillary Clinton se justifique mas no sentido inverso ao que ela deixou subentendido. Talvez o “cesto dos deploráveis” albergue mais de metade dos apoiantes de Trump.