Quatro faces de Marvila

Há hortas a renascer em Marvila, mas a do “Ti Gomes” morreu

Quatro faces de Marvila

Há hortas a renascer em Marvila, mas a do “Ti Gomes” morreu

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02 mar, 2016 - 14:25

Ao andar por Marvila cada passo se tropeça no passado agrícola daquele território. O verde das encostas é de perder de vista, em contraste com o cinzento do cimento dos bairros que se impõe no topo dos planaltos. A Câmara de Lisboa está a modernizar as hortas da freguesia. Pelo caminho ficarão alguns dos que dali tiraram durante décadas parte do sustento.

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Durante esta semana, a Renascença olha para Marvila, na zona oriental de Lisboa. Veja também:


Bruuuuuum, truuuummm, tuuuum-tum-tum. O barulho é quase ensurdecedor. Manuel Gomes pára a volta a pé que ali faz quase todas as manhãs, e olha para a o rolo compressor que está a planar o terreno. Ali em baixo no Vale Fundão, já quase na extremidade norte de Marvila, vê as máquinas a arrasar o que antes era a hortinha de onde lhe saíam as batatas, as nabiças, as cebolas, os alhos e as alfaces.

As hortas marcam a paisagem da freguesia, e a autarquia tem nos últimos anos operado uma revolução naqueles talhões de terra, de onde sobretudo os mais velhos tiram um complemento ao reduzido rendimento.

No Corredor Oriental, ou Corredor das Hortas, e que se estende desde o Vale Vistoso (com início nas Olaias) até ao Tejo, são mais de 66 hectares (66 campos de futebol) que estão a mudar.

No Vale Fundão, até ao fim do ano, irão nascer novos locais de cultivo, com mais condições, mais qualidade, autênticas “hortas 2.0”. Todavia, para o octogenário foi a morte de um tempo.

Aos 82 anos, Manuel vive no bairro mesmo por cima do parque urbano que ali se estende por vários hectares. Foi realojado aquando da demolição do Bairro Chinês onde vivia. A barraca ficou para trás, mas outro passado, o da agricultura, que trouxe dos tempos de menino na província, teve campo para voltar a florescer.

“Agarrou” ali uns 150 metros quadrados e começou a tirar da terra o que a “miséria” das pensões, que ele e a mulher recebem, não dá. “Cento e tal contos [cerca de 500 euros] por mês”, atira.

Naquele espaço de cultivo fez tudo na base da carolice, mas o suficiente para pôr as hortaliças à mesa. A rega, por exemplo, era feita com bidões de 20 litros que se enchiam com a chuva do Inverno. A terra era cavada com instrumentos rudimentares.

Contudo, tudo tem um tempo e as oito décadas em cima do esqueleto fizeram com que o corpo ganhasse dores que o campo não aceita. “No ano passado já foi bera para mim”, revela Manuel.

A intervenção da Câmara de Lisboa nos dois hectares, que se prolongam entre a piscina municipal de Marvila e o parque do Vale Fundão, acelerou o abandono daquele local por parte de Manuel.

O idoso vai abdicar do espaço que lhe seria atribuído e dá-lo-á a um vizinho que, apesar de ser “alfacinha”, é “danado para cavar”. Di-lo com a malícia de quem não acreditava que as duas coisas fossem compatíveis. O amigo ficará com o pedaço de terra do “Ti Gomes”, mas ele sempre poderá “tirar” de lá alguma coisa.

Sobre se a intervenção camarária chega em boa altura, Manuel não tem certezas. Porém, teme que a segurança dos campos diminua. Se antes já era fácil haver roubos, agora, antecipa, “vai ser muito pior”. E sai-lhe uma frase enigmática que ouvia aos antigos quando era rapaz novo: “Quem viver, vai ver coisas nunca vistas.”

Contas de somar, subtrair e multiplicar. Ao descer os campos, onde as obras fluem a toda a velocidade, mesmo por baixo do viaduto que dá início à Avenida Marechal António Spínola, o arquitecto paisagístico António Alho lidera os trabalhos. É director da Espaços Verdes, a empresa a quem a autarquia lisboeta concessionou a obra das hortas do Vale Fundão. Tem o diagnóstico na ponta da língua.

“O que tínhamos antes eram hortas desorganizadas com imenso lixo e plástico. Isto estava cheio de roseiras e de silvas à volta. Quem aqui tinha um espaço, punha cadeados nas portões das cercas. Havia até quem dormisse nos terrenos [nos casebres de apoio]”, adianta.

A água para a rega dos campos, acrescenta, “vinha maioritariamente da piscina. Os ‘agricultores’ tapavam o colector para que a água ficasse armazenada. Tudo misturado com uma quantidade de maus nutrientes”.

Ou seja, o biológico não era, na verdade, lá muito “bio”. “As couves, por vezes, não iriam lá muito limpas. Dizemos que o que é natural e não leva adubos é que é bom, mas quando a rega é contaminada estamos também a contaminar os alimentos”, explica.

O primeiro trabalho da equipa que liderou foi a retirada de “milhares de garrafões de cinco litros, demasiado lixo e arames”. “Eram coisas que as pessoas iam colocando para se defenderem dos intrusos que iam roubar os legumes e outras coisas”, ilustra.

António faz algumas contas entre o passado e o futuro. Das 80 pessoas que ali tinham hortas – a maioria mora no Bairro do PRODAC –, ficam 46, resultado da redução da área de cultivo. Todavia, o arquitecto António Alho introduz uma variável para a operação não ser tão pesada nas perdas. “Muitos já eram idosos, e isto parecia que estava trabalhado, mas já não estava. O vereador [José Sá Fernandes] exige que o terreno esteja cultivado”, esclarece.

As próximas parcelas somam-se. Os terrenos, antes baldios, vão passar a custar entre 60 a 80 euros por ano – o valor da renda varia consoante o tamanho do terreno (desde os 80 aos 150 metros quadrados). O responsável de obra volta a amenizar o resultado com qualificativos à adição.

Dentro deste valor, sublinha, está o acesso à “água no local”. “É uma maravilha”, reivindica. “Não paga um décimo do investimento que é feito, mas quem passar aqui na ponte [aponta para cima] vê uma coisa com esmero e preocupação”, sustenta.

Quando o tema da receptividade de quem ali estava salta para a conversa, António multiplica primeiro a melhoria entre o antes e o depois. “Vai ficar cem vezes melhor”. Depois subtrai o “estrume e o lixo”, de que “ninguém gosta”, e soma-lhe “a limpeza”, “os novos caminhos” e as “casinhas de apoio” que serão as novas imagens de marca. Com tudo isto, o resultado final só pode ser, segundo o arquitecto, “uma boa aceitação”.

Quem não confia em si próprio….

Contudo, as contas de António Alho saem furadas logo uns passos à frente. A variável humana faz das suas. José Maria está às voltas na terra. Fá-lo todas as manhãs. Este é o seu entretém. Já lhe arrasaram um dos terrenos que detinha, mas o amor que demonstra por aquele talhão, leva a que se pense que não serão os novos valores das rendas a tirá-lo dali. Nada de mais errado.

“Vou ser sincero, não é por causa dos 60 ou 70 euros. As casas de apoio para as ferramentas são para quatro ou cinco pessoas. Não sei qual é o vizinho que teria, pode ser boa pessoa, mas também pode não ser. Está a entender? É uma lotaria”. E José Maria, de 69 anos, há 40 a plantar no Vale Fundão, não quer jogar esse jogo de sorte e de azar. “Nem em mim confio, quanto mais nos outros”, argumenta entre risos.

Mas não vai lutar pela terra? “Isto sempre compunha lá as coisas em casa, não era preciso ir tanto ao supermercado”, frisa. Porém, tinha a consciência da ilegalidade. “Sabia que um dia isto ia acabar. Nada é nosso, nem o que é meu é meu, quanto mais isto”, resigna-se.

Para outros pode não ser, mas “para nós é muito dinheiro”

Um pouco mais acima, a poucos metros de casa, está Jorge Jesus Paiva. Chega de uma consulta com a mulher. Olha para as duas pequenas línguas de terra que mesmo em frente se estendem. Os trabalhos da autarquia ainda não chegaram ali, todavia, estão cada vez mais perto. O som das máquinas está a aproximar-se.

Ainda não descobriu se os seus talhões também desaparecerão com o projecto da câmara. Contudo, já sabe de uma coisa: os 80 euros anuais são incomportáveis.

“A vida não dá para isso. É muito dinheiro e as nossas reformas são pequeninas [juntos não recebem mais de 500 e poucos euros]. Temos muita medicação para comprar. Ele para o coração, eu para o peito, para o problema no rim e para o fígado”, sintetiza a esposa, Maria Rosa. “Isto não é nosso”, e repete mais uma e outra vez que a terra não lhe pertence. “Ainda é uma ajuda grande para não ter de comprar coisas no supermercado. Sou diabética. Fazia-me jeito este bocadinho, não posso dizer que não”, comenta.

E, de novo, diz que está nas mãos dos outros. Este destino não lhe pertence. “Se não nos deixarem ficar com isto, temos de nos conformar. Não podemos fazer nada, não é nosso. Vamos ter de passar a comprar o que aqui plantávamos”, remata

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  • astsaa
    03 mar, 2016 LX 18:14
    80 euros por ano dá para muitas couves galegas e muitas batatas... Arrisco-me até a dizer que em 100m2 num ano as pessoas não tiram legumes e vegetais no valor de 80€. Mas posso estar enganado. A ideia parece boa mas a execução esbarra com a realidade. E a realidade demonstra que os utentes seriam reformados com um pé na horta outro na cova, com parcos rendimentos e menos instrução e que só estão ali para compor o rendimento familiar (em géneros) e porque é isento de rendas/despesas fixas. é que a essas despesas somam-se o preço de sementeiras, por vezes dos fitofarmaceuticos e fitonutrientes (adubos, fertilizantes, bioestimulantes, acaricidas, insecticidas, etc), sejam de origem bio ou não. No fundo e pela conversa do arquitecto são projectos do "fica bonito" mas valor acrescentado é residual. Parece o projecto da 2ª Circular. "Fica bonito" mas tem muitas lacunas. Antes de lançarem a obra façam um inquérito e verifiquem se com as condições que pretendem implementar (renda anual, casas de ferramentas partilhadas, vedações baixas ou inexistentes, etc) há interessados nas proximidades em ir cavar batatas ou não.
  • Helder Gomes
    02 mar, 2016 Montijo 15:27
    Sugestão de tema para a semana sobre Marvila: http://videos.sapo.pt/OBH9ViuIUGZn25tPul39 http://www.rtp.pt/noticias/pais/escola-afonso-domingues-a-saque_v625610 http://www.publico.pt/local/noticia/escola-onde-ia-passar-a-terceira-ponte-sobre-o-tejo-continua-ao-abandono-1698774

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