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​Entrevista ao padre Tony Neves

Nova Constituição da Cúria exige mudança de "mentalidade, de cultura e de prática"

22 mar, 2022 - 15:21 • Ângela Roque

Limitação de mandatos e possibilidade dos leigos acederem a cargos de topo no Vaticano entre as novidades destacadas pelo padre Tony Neves. À Renascença, o missionário português, que integra o governo geral dos Espiritanos, em Roma, diz que a nova Constituição traduz a preocupação do Papa em combater a doença do “clericalismo” que atingiu a Igreja.

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A constituição Praedicare Evangelium (‘Pregai o Evangelho’), que reforma a Cúria Romana, foi promulgada pelo Papa Francisco no último sábado, 19 de março. A Renascença falou com o padre Tony Neves, Assistente Geral dos Missionários Espiritanos em Roma, com responsabilidades pela área da justiça e paz e diálogo inter-religioso da congregação, sobre as novidades previstas.

A nova Constituição para a Cúria Romana, aprovada pelo Papa, traz mudanças substanciais ao funcionamento da estrutura da Igreja?

Sim, traz, e a primeira mudança tem a ver com a própria focagem. O título 'Pregai o Evangelho' faz uma deslocação clara para a dimensão missionária e pastoral, e menos para uma dimensão funcional e estrutural, e acho que esse é o primeiro sinal.

O segundo sinal, também nesta linha, é dado pelo facto de se marcar prazo, ou seja, as pessoas eleitas para cargos na Cúria romana são eleitas por cinco anos e podem renovar na melhor das hipóteses uma vez, para deixar de uma vez por todas a ideia de que Roma é um bom sítio para fazer uma carreira até à eternidade. Não, Roma é um sítio onde se congregam pessoas que têm uma missão muito concreta, que é a de ajudar a animar e a criar comunhão entre uma Igreja espalhada pelo mundo, que é muito dispersa e precisa de comunhão, acompanhamento e de uma gestão que seja de serviço, não de poder.

Outra mudança, para mim talvez a mais importante, é que as portas do futuro estão abertas a um outro olhar sobre a Igreja enquanto povo de Deus, porque até agora só os cardeais podiam ser responsáveis pelos Dicastérios, e este documento abre as portas a que no futuro qualquer cristão possa exercer esse cargo. É se calhar a novidade mais vincada.

Há ainda outro aspeto que tem a ver com a atualização, ou seja, o mundo muda, a Igreja muda, os serviços mudam, e também as focagens missionárias têm que mudar, por isso a criação de novos Dicastérios e a reestruturação da Cúria no seu todo é outro dado saliente. Por exemplo, criar um Dicastério para o Serviço da Caridade, fazer com que estruturas pequeninas e simples que antigamente tutelavam a Unidade dos Cristãos e o Diálogo se tenham tornado agora dicastérios, são passos que mostram focagens missionárias da Igreja, e que respondem aos tempos que são os nossos, e que são sempre novos.

A Comissão para a Proteção de Menores ser integrada no Dicastério para a Doutrina da Fé é outro sinal positivo, em sua opinião?

Muito positivo. Aliás, a Doutrina da Fé passa a ter duas partes completamente diferentes, e o facto de se ter valorizado muito a dimensão da proteção de menores e de se ter integrado na Doutrina da Fé, é um passo relevante. Que não é tão novo assim, porque já neste momento é a Doutrina da Fé que tutela os casos de tudo o que tem a ver com abusos de menores por parte de clérigos.

Mas a Comissão passa a ter mais poder institucional, é isso?

Exatamente, e essa é a meu ver a grande vantagem e a grande novidade desta Constituição a esse nível, porque é instituído um organismo, e ainda por cima dentro da Doutrina da Fé, que é um Dicastério muito importante. Esse é um passo grande, tem a ver com todo o caminho que a Igreja tem feito sobre essa temática que continua a ser muito quente e atual, e que exige que a Igreja tenha estruturas também muito sólidas e bem preparadas para poder resolver com qualidade e celeridade todos os casos que lhe forem apontados sobre abusos de menores e pessoas vulneráveis. Acho que aí se dá um passo muito importante.

A questão dos leigos, que já referiu, é também importante. A nova Constituição prevê que um leigo possa vir a assumir funções de governo na Cúria, por decisão direta do Papa. É uma decisão coerente com outras já tomadas por Francisco?

Sim, e é o dado mais original do documento, se olharmos para 20 séculos de história da Igreja. Não é nada que choque ninguém, porque vem na linha de todo o caminho que se tem feito, sobretudo desde o Concílio Vaticano II, e agora com o Papa Francisco isso tem sido muito claro.

Creio que as coisas a esse nível começaram-se a desenhar quando em 2016 foi criado o Dicastério de Leigos, Família e Vida. E ainda antes, em 2014, quando naquele famoso discurso de Natal à Cúria o Papa falou do clericalismo. Depois, em 2017, também num discurso à Cúria, o Papa definiu os critérios de orientação desta reforma que estava em curso e que se pode considerar concluída em termos teóricos e estruturais, embora o 1º dia desta reforma vá ser o dia 5 de junho, o dia de Pentecostes, quando entrará em vigor esta Constituição Apostólica.

Podemos esperar neste futuro próximo uma Cúria menos distante e mais atenta?

Sim, e o dado que está presente nesta lei, de que quem é nomeado é nomeado por cinco anos e no máximo chega a 10, é para dizer que ninguém vem para Roma para ficar até à morte. Vir para a Cúria é um serviço, e está muito claro o perfil. A Constituição diz, de uma forma muito clara, que se vai fazer um escrutínio muito rigoroso das pessoas que vierem para trabalhar na Cúria, a idoneidade terá de ser muito avaliada, e tem de se combater a todo o preço esta ideia de que vir para Roma é uma promoção e daqui já não se pode descer, quem vem para Roma vem para a eternidade. Esta não é uma cidade para eternizar pessoas, cada um e cada uma que venha para a Cúria sabe que vem por cinco anos, máximo 10, incluindo bispos e cardeais, sabem que aos 80 anos cessa a sua missão e a partir desse momento não estão mais vinculados à Cúria.

Creio que este princípio tinha de ser estabelecido e gravado numa Constituição, mas sobretudo a prática... aliás, o texto da própria Constituição diz uma coisa que eu acho fundamental: mudar estruturas, fazer leis, não resolve nada, porque o que é decisivo é mudar a prática, a mentalidade.

A palavra conversão é a palavra chave desta Constituição. Se as pessoas que estão aqui e estão a agir de determinada maneira, se não forem mudadas, ou se, ficando, não mudarem a sua postura e o seu olhar missionário sobre a missão que lhes é confiada, também não vai resolver nada. Portanto, há aqui uma conversão de mentalidade, de cultura e de prática que tem que funcionar.

Mas estar bem claro na lei, ajuda?

Ajuda e abre portas. Eu acho que o dia 5 de junho é o primeiro dia do resto da nossa vida como cristãos, como Igreja.

Tenho conversado com os meus confrades cá em casa, a dizer: ‘atenção que esta reforma da Cúria também a podemos aplicar a nós, enquanto Cúria espiritana, os princípios, os desafios e os perigos são os mesmos'. Eu fui eleito por oito anos e já sei que daqui a sete não fico cá em Roma.

Isto é um serviço, vou prestá-lo o melhor que souber e puder, mas é um serviço, não é uma promoção, daqui a sete anos vou para outra linha da frente. E creio que ter desapego e disponibilidade para servir e partir é fundamental, porque senão caímos no carreirismo, e criamos clericalismo, e temos que combater essa doença, arranjar remédios e ter uma Igreja que seja testemunhante.

Aliás, o Papa diz isso na Constituição: o testemunho do Evangelho é a nossa missão, e temos que o testemunhar onde formos chamados a servir, humildemente, desapegados, com um estilo de vida simples e pobre, coisa que às vezes não se vê muito, e esta Constituição insiste muito nestas dimensões.

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