A vida numa placa de gelo. Um cientista português na Antárctida
12-04-2017 - 13:15
 • Rosário Silva

Especialista em electrónica, Ricardo Almeida esteve 61 semanas a trabalhar na base Halley VI, na Antárctida, ao serviço da British Antarctic Survey e conta a sua experiência em entrevista à Renascença.

Ricardo Almeida, especialista em electrónica de 35 anos, natural de Reguengos de Monsaraz, esteve 61 semanas a trabalhar na base Halley VI, na Antárctida, ao serviço da British Antarctic Survey.

Em entrevista à Renascença, o cientista relata a sua experiência vivida num continente que denomina de “algodão da Terra”. Dormir numa tenda de pano com uma temperatura de 37 graus negativos, ter contacto com pinguins-imperador, ver a lua cheia às três da tarde ou conversar com o astronauta britânico Tim Peake, na Estação Espacial Internacional, são algumas das memórias de um desafio profissional todo ele inolvidável.

O que faz, profissionalmente, e como surge este desafio na sua vida?

Sou engenheiro de electrónica e telecomunicações, apesar de ter começado a minha carreira como professor de Física e Química. Porém, quando tive conhecimento desta oportunidade, estava a trabalhar em Lisboa, numa empresa, como consultor de software.

Um dia, encontrei um artigo que dava conta que o British Antarctic Survey (BAS) [centro líder em ciências e operações polares e desde há 60 anos, responsável pela maior parte da investigação científica do Reino Unido na Antárctida] estava à procura de engenheiros para uma temporada na base Halley VI, na Antárctida, o que incluía o Inverno de 2016. Eram 18 meses de contrato, 15 dos quais no outro lado do mundo. Na altura, estava mesmo a precisar de dar um novo rumo à minha vida e torná-la mais interessante. Além do mais, a proposta estava feita de forma apelativa: “If you are a bit bored with your job…”. Foi mesmo o que precisava de ouvir. Depois, foi só seguir a ligação e percorrer as diferentes etapas.

Foi contratado para fazer, exactamente, o quê?

Acabei a fazer de tudo um pouco, mas tenho de dividir o meu trabalho em duas partes: o que fiz no Verão e aquele que desempenhei no Inverno.

No Verão, por exemplo, na nossa estação, estavam cerca de sete dezenas de pessoas e, neste período, o meu trabalho foi muito focado para a parte científica. Tinha vários projectos a meu cargo, concretamente, dois radares de média frequência, um que permite obter informações que podem ser utilizadas para construir mapas meteorológicos e outro, semelhante, mas para mapas de meteorologia espacial numa zona mais alta da atmosfera. Fazia também observação de imagens de infra-vermelhos do céu e outro trabalho, talvez o mais importante, a manutenção e tratamento de várias estações de GPS que estão espalhadas por toda a zona envolvente onde estávamos localizados. A estação Halley VI, convém dizer, fica sobre uma placa de gelo, um glaciar que está a escorrer sobre o oceano e foi onde vivi durante 15 meses. Eu fazia a supervisão de receptores GPS de alta precisão que analisam, precisamente, as placas de gelo, como fluem, a sua velocidade e direcção, retirando daí informação muito valiosa.

E no Inverno?

Quando chega o Inverno, as pessoas não essenciais são retiradas da base e voltam para Norte, num navio. Estou a falar de oito meses em que ficam só treze pessoas isoladas naquela base. Assim que começa o Inverno, o oceano em torno da Antárctida congela o que torna uma eventual evacuação num processo muito complicado. Só pode ser feita de avião e é necessário que haja condições muito específicas para que o avião consiga entrar na zona. Estamos a falar de uma zona onde as tempestades e o tempo são muito imprevisíveis e a um nível de ferocidade a que não estamos habituados aqui, em Portugal. Nesses 8 meses ficamos isolados e em termos de trabalho temos de fazer um pouco de tudo. Continuei com o meu trabalho em torno dos projectos científicos, mas como somos muito menos, há que assegurar tarefas como cozinhar, limpar, fazer vigília, ou seja, tudo o que for necessário para a nossa sobrevivência nesse período.

Como é viver nesse isolamento? Certamente, há cuidados redobrados…

Não é difícil e nós tínhamos a noção de que os humanos mais próximos estavam a 800 quilómetros, numa outra base, alemã, e tendo em conta isso, tínhamos de ter cuidado connosco. Preenchíamos registos e cumpríamos regras para nossa segurança e da nossa equipa. É que se nos acontecesse alguma coisa, não podíamos chamar a emergência médica, a polícia ou os bombeiros. Quanto ao isolamento, nesse aspecto o BAS foi muito cuidadoso. As equipas de Inverno são escolhidas com minucia. Há uma grande atenção à parte psicológica, sendo-nos feita uma certa avaliação antes de iniciarmos a temporada. Eu não posso dizer que fui para lá sem saber o que ia encontrar e, por isso, não me surpreendi. Fui avisado quanto ao isolamento e ao frio.

A que temperaturas esteve sujeito?

Olhe, o mínimo de temperaturas que apanhamos, e foi um dos Invernos mais quentes dos últimos anos, foi 49 graus negativos. No ano anterior, os colegas sujeitaram-se a temperaturas de menos 56 graus. Depois, depende muito das áreas. Por exemplo, estávamos a monitorizar uma zona a 20 quilómetros e, aí, atingiu-se os 52 graus negativos. E no Verão conseguimos uma temperatura tropical para o local, um grau. Nós somos preparados para uma temperatura de menos 20 graus, é para essa temperatura que nos vestimos. Ora se tivermos um grau positivo já é uma temperatura tropical.

Nesse tempo, vários meses isolado, para além da rotina, que fez de singular?

Várias coisas. Por exemplo, tive um telefonema com um astronauta na Estação Espacial Internacional. Foi uma conversa banal no conteúdo, mas foi uma experiência fantástica com o astronauta britânico Tim Peake, que esteve, na altura, naquele laboratório espacial. Conseguimos organizar as coisas e ele ligou-nos. Foi extraordinário se pensarmos na distância daquela chamada telefónica, que atravessou, literalmente, o Planeta e o espaço várias vezes.

Outra experiência, essa nem por isso muito agradável, foi passar uma noite numa tenda de pano com 37 graus negativos. Acredite que não é nada confortável. Depois, voei pela Antártida inteira, uma vez que um dos projectos era monitorizar algumas estações e, como não era possível usar mota, tivemos de utilizar um avião como táxi. Simplesmente inesquecível, que não faria noutras circunstâncias.

Teve outras experiências que a maioria de nós jamais terá...

Sim, sem dúvida. Interagi com pinguins-imperador, assisti a auroras, andei de barco no meio de icebergs... É difícil isolar um só acontecimento. Vou ter saudades de ver alguma coisa nova que nunca tinha visto antes. Creio que na Antártida isso acontece quase todos os dias. Coisas tão simples como estar no meio do Inverno, numa rotina já estabelecida, e sair de casa, depois do almoço, e deparar-me com uma lua cheia, às três da tarde. Caminhei à luz da lua cheia, àquela hora, o que nunca pensei ser possível.

Enquanto lá esteve, de que sentiu mais falta?

Quando fui para a Antártida, tive de planear a minha vida para um ano. Tinha perfeita noção de que não iria ter acesso a roupa, por exemplo, ou outros bens que aqui estão à nossa mão. Talvez tenha sido isso que mais tenha estranhado, precisar de algo e não ter, termos de nos desenrascar com aquilo havia. Foi um desafio, mas com aspectos positivos. Era mais complicado precisar de reparar alguma estação e não ter peças ao nosso alcance para esse efeito. Mas tudo se contorna.

Em que é que o seu trabalho, ou de quem faz algo semelhante, pode influenciar o meu dia-a-dia?

Por exemplo, as observações meteorológicas que fazíamos lá, de três em três horas. Todos os dados ali recolhidos são usados para as previsões meteorológicas, mas permitem estabelecer modelos sobre o que se passa no Atlântico e até do que se vai passar em Portugal. A informação cientifica que captamos naquela zona não é apenas para estudar o que se passa na Antárctida. Esse é o nosso foco principal, claro, mas pode, facilmente, extrapolar-se para incluir o resto do mundo.

Está a falar do clima, das comunicações, por exemplo?

Sim, posso dizer que sim. Um dos radares com que trabalhava era um radar de meteorologia espacial. Permite identificar bolsas de gases ionizados em alta atmosfera, ou seja, bolsas de gases que absorveram muita energia do sol. Essas bolsas têm muita influência em satélites, dos quais, embora o cidadão comum não se aperceba, precisamos muito, seja GPS, sejam satélites de telecomunicações, de meteorologia ou outros.

Esses satélites são objectos que orbitam muito acima da atmosfera terrestre. Às vezes, uma explosão solar é suficiente para danificar um satélite. Pode ser um de GPS e, de repente, a rede deixa de funcionar tão bem. Pode ser um satélite de telecomunicações e as pessoas ficam sem comunicações. Ali, usamos esses radares para tentar prever como e quando esses efeitos vão acontecer ou, pelo meno,s tentar identificar as zonas mais perigosas para que quem coloca os satélites em órbita consiga evitá-los e garantir que o serviço do satélite é contínuo.

Sentiu que tinha o mundo nas suas mãos?

Às vezes, sim. A Antárctida funciona como, digamos, o “algodão da Terra”, no sentido em que qualquer problema que aconteça na Terra é mais fácil ser detectado na Antárctida. É uma zona do planeta tão isolada que, por exemplo, a nível da atmosfera, nós conseguimos detectar ali certos compostos que é impossível fazer no mundo civilizado, porque estamos tão rodeados de poluição, de gases. Não conseguimos isolar aquele componente, mas na Antárctida isso é muito mais fácil, porque não há nada. Uma das estruturas que nós tínhamos em Halley era o “Clean Air Sector”, o sector de ar limpo, um perímetro de alguns quilómetros onde nem sequer podíamos entrar com uma mota de neve. O ar ali era o mais puro da Terra, literalmente. É, por isso, uma zona privilegiada para fazer esse tipo de investigação.

Esta sua temporada na Antárctida aumentou a sua consciência ambiental?

Sempre me considerei uma pessoa desperta para as questões do ambiente e nunca coloquei em questão a existência das alterações climáticas. Eu sou cientista. Com todas as viagens que fiz, em vários meios de transporte, fica-se com uma noção de quanto é estranho o nosso planeta e da visão pequenina que temos dele. Ali, fica-se com a sensação de se estar num outro planeta. Não há rochas, não há árvores, não há animais, não há nada. Isto coloca-nos num estado mental diferente e faz-nos pensar.

Os efeitos do aquecimento global estão a ser detectados, não como as pessoas pensam, não porque o gelo está a derreter, acontece em certas zonas, é certo, mas o que verifica ali, é uma alteração dos padrões que eram comuns até há uns anos atrás. As coisas estão a mudar. Há uma distribuição diferente, anormal, do gelo, que, acompanhada pelo que está a acontecer no Ártico, um pouco na mesma linha, dá-nos a noção de que algo de errado está a passar-se no nosso planeta. É visível. Não é uma questão de fé, estamos a falar de dados científicos que nos permitem dizer que, pelo menos, algo de estranho está a acontecer. Conseguimos ver isso na Antárctida.

Agora que regressou a Portugal, o que vai fazer com esta sua experiência?

Por agora, estou disponível para partilhar os meus conhecimentos com quem tenha interesse.

Colocar esta experiência à disposição dos mais novos, em prol da investigação em Portugal.m É isso?

Sim, claro. Eu acredito que há muita qualidade na investigação científica portuguesa, mas Portugal não consegue os investigadores nessa área porque ele próprio não tem infraestruturas. Eu fui à Antárctida à boleia de um programa polar não português. Tive de usar o programa polar britânico que mantém quatro bases na Antárctida. Em Portugal, temos pessoas, temos investigadores, muito potencial, mas faltam recursos que permitam desenvolver este ou outro género de programas. Eu quero continuar a trabalhar na investigação científica. Entrei num caminho sem retorno, o da ciência. Sempre quis fazer isto e este desafio ajudou a consolidar as minhas certezas.