Escravos das décimas
21-06-2016 - 17:39

Se olharmos as regras aceites, com a dupla adesão à União e ao euro, como mera imposição exterior, “a nossa economia continuará a afundar”.

Não é o facto de termos o défice de mais ou menos uma décima que vai assegurar que a economia portuguesa está no “caminho certo” como, ontem, nos garantia simpaticamente o senhor Tusk . Antes estivesse. Talvez a grande prioridade também não seja uma nova e maior liberalização do mercado de trabalho como nos aconselhou, pela milésima vez, o senhor Subir Lall. Mas uma coisa é certa: se insistirmos em limitarmo-nos a ouvir as vozes do exterior e as suas imposições continuaremos a “caminhar para o buraco”.

O aviso interno veio sexta-feira de Teodora Cardoso que, no Porto, numa conferência sobre a “Europa que queremos”, colocou o dedo na ferida. Fosse ela estrangeira e mereceria manchete. Mas não é. Com o bom senso e independência que caracterizam a grande senhora do Conselho de Finanças Públicas, o aviso foi, no entanto, muito claro. Por isso, merece, ser repetido: se continuarmos a limitar-nos a olhar as regras aceites, com a dupla adesão à União e ao euro, como mera imposição exterior, como algo a contornar ou cumprir pelos mínimos, “a nossa economia continuará a afundar”.

O que nos falta então? Falta-nos considerá-las como “nossas” e interiorizar a respectiva bondade. Isso não impede que continuemos a lutar por melhorar as próprias regras, a que é sempre possível imputar uma série enorme de defeitos. Mas, sejam elas quais forem, o mais importante, segundo Teodora Cardoso, é passar a vê-las de forma diferente. Como instrumento de aferição de uma estratégia assumida como desígnio nacional.

Sem isso – alerta a presidente do CFP – continuaremos neste jogo de aparências: “O défice de hoje estará abaixo dos 3% (para evitar sanções) e três meses depois voltará aos 3,1, aos 3,2 ou aos 3,3”. Sem que “uma décima a mais ou a menos”, represente nada de essencialmente diferente. Reflectindo apenas o recurso, mais ou menos recorrente, a artifícios financeiros, fruto da habitual criatividade orçamental.

Entretanto, os eurocratas e os técnicos do FMI, transformados em cúmplices deste jogo de aparências, continuarão a exigir mais do mesmo. É clássica a obsessão com a liberalização do mercado de trabalho. Como se um país onde o desemprego dispara, em menos de um ano, para quase 18%, surpreendendo tudo e todos e onde a precarização atinge valores assustadores não desmentisse, na prática, a teoria da sua mítica “rigidez”. Claro que ainda haverá muito a fazer para evitar a dualidade existente num mercado que se divide entre o velho emprego “altamente protegido” e o novo emprego totalmente desregulado.

Também no mercado laboral uma reforma digna desse nome e potenciadora da confiança só poderá fazer-se de forma consistente com o precioso aval dos parceiros sociais em clima de consenso e sem guerrilha. Quebrando a lógica do fazer agora para mostrar “serviço” para desfazer a seguir logo que o foco externo se desvie do país. As finanças públicas são outro bom exemplo, mas haverá muito mais.

No caso português o balanço de 30 anos de permanência na União e quinze de adesão ao Euro – apesar do saldo positivo – são no mínimo desoladores. Não por falta ou escassez de ajuda externa, mas por evidente falta de estratégia interna na gestão dessa ajuda.

Em vésperas de adesão, Portugal vivia ainda o rescaldo de um segundo resgate do FMI e a resposta aos choques externos provocados pela subida em flecha do preço do petróleo era feita com recurso ao instrumento habitual (a desvalorização do escudo). O remédio aparentemente indolor permitia recuperar artificialmente a competitividade perdida, mas tinha no reverso da medalha o disparo da inflação e a consequente perda do poder de compra dos trabalhadores.

Em 1985, além do recurso recorrente ao aumento de impostos a inflação era ainda de 30% e os funcionários públicos foram aumentados em 22% sofrendo uma perda de poder de compra de 8%. O sistema bancário recuperava das nacionalizações e dava os primeiros passos na liberalização.

Trinta anos depois onde estamos? De novo esmagados pelo peso dos impostos e a braços com o rescaldo de um novo resgate (apesar dos juros historicamente baixos e dos preços do petróleo em mínimos) e para cúmulo de novo a braços com um sistema financeiro tão ou mais débil que o pós nacionalizações. “Vale-nos o euro para evitar a sanção dos mercados”, como bem recordou Teodora Cardoso. Mas no fundo, no fundo, as fragilidades estruturais mantém-se à espera que reparemos nelas e decidamos finalmente, por nossa conta e risco, alterá-las.