Dupla derrota para Trump no Alabama dá esperança aos democratas para 2018
13-12-2017 - 23:48
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Foi afastado duas vezes do Tribunal Supremo do Alabama. Proclama fidelidade à Bíblia acima da Constituição. Acha que um islâmico não pode ser congressista. Defende a ilegalização da homossexualidade. Tem dez mulheres a acusá-lo de abusos sexuais, incluindo duas menores. Roy Moore falhou a eleição para o Senado dos Estados Unidos.

Se alguém quiser um dia escrever um manual sobre como a obstinação do radicalismo conduz a uma derrota eleitoral não precisa de se esforçar muito. Basta seguir o guião das eleições desta terça-feira para senador do Alabama.

No mais conservador estado da América, onde os democratas não elegiam um senador desde 1992, os republicanos deixaram-se arrastar para a candidatura de um reaccionário provinciano e acabaram derrotados, arrastando consigo a derrota de Trump. Aliás, uma dupla derrota, que o inquilino da Casa Branca tentou transformar em argúcia analítica, no seu melhor estilo de “chico-esperto”.

Pela escassa margem de 1,5%, cerca de 20 mil votos, o candidato democrata derrotou o republicano, reduzindo a maioria do Partido Republicano no Senado para dois assentos (51-49) e aumentando o grau de incerteza quanto a votações futuras, já que a coesão da maioria não é famosa. O resultado do Alabama agravou as recriminações mútuas entre extremistas e moderados dentro do partido e acentuou os receios de que as eleições legislativas de Novembro do próximo ano — em que vai a votos toda a Câmara de Representantes e cerca de um terço dos lugares do Senado — resultem no controlo do Congresso pelos democratas, que poderiam assim bloquear qualquer iniciativa legislativa de Trump.

Mas vale a pena contar a história desta eleição. Ela decorreu fora do habitual calendário eleitoral porque era necessário substituir no Senado o actual ministro da Justiça, Jeff Sessions, que ali representava o Alabama. Nas primárias republicanas para escolher quem disputaria a corrida contra um democrata ficou logo exposta a actual clivagem dentro do partido.

De um lado, um advogado, Luther Strange, que representava os republicanos tradicionais; do outro, um ultra-conservador, ex-presidente do Tribunal Supremo do Alabama, uma personalidade altamente controversa, Roy Moore. O establishment republicano estava com Strange, mas Steve Bannon, o ex-conselheiro de Trump conotado com a extrema-direita, fez campanha por Moore no âmbito da “guerra” que declarou ao aparelho do partido que quer ver dominado pelos mais extremistas no médio prazo.

Em Washington, terçaram-se armas por Strange e o próprio Trump acabou por lhe declarar o seu apoio. Mas os extremistas venceram as primárias e Trump arrependeu-se de se ter deixado convencer pelos moderados.

Frente a frente na eleição ficaram então um advogado democrata, Doug Jones, um homem respeitado que defendeu em tribunal vitimas do Ku Klux Klan no Alabama, nomeadamente menores, e Roy Moore, também jurista, duas vezes eleito para o Tribunal Supremo do Alabama e duas vezes dele expulso.

Acusações de abusos

O escândalo irrompeu quando, em meados de Novembro, o “Washington Post” publicou um artigo em que quatro mulheres denunciavam que Moore tinha tentado abusar delas sexualmente quando ainda eram adolescentes.

Os dois casos mais chocantes eram o de uma rapariga de 14 anos a quem Moore acariciou lubricamente, e o de uma outra de 16 anos a quem ele tentou forçar a satisfazê-lo sexualmente dentro do carro. Em qualquer dos casos não houve violação, mas Moore tinha na altura mais de 30 anos e as jovens eram menores.

Uma outra adolescente, perante as insistências de Moore para se encontrarem, disse-lhe que tinha 17 anos, obtendo como resposta pronta: “Passo a vida a encontrar-me com raparigas da tua idade”.

Após os primeiros quatro depoimentos ao “Post”, pelo menos mais cinco mulheres vieram a público denunciar comportamentos abusivos de Moore. Todas se identificaram e algumas apareceram mesmo em talk-shows televisivos. Uma delas contou que, quando tinha 28 anos, foi ao escritório de advogado de Moore acompanhada pela mãe para tratar do divórcio. Depois de ouvir vários piropos durante a consulta, quando ia a sair do escritório Moore apalpou-a por trás sem qualquer inibição. Os dois não se conheciam e nunca se tinham visto.

O candidato negou sistematicamente ter tido qualquer comportamento incorrecto e disse que não conhecia nenhuma das denunciantes, atribuindo a sua acção a uma campanha política para o derrotar nas urnas. Uma das mulheres, porém, algumas semanas mais tarde descobriu no seu diário de juventude um bilhete elogioso manuscrito e assinado: Roy Moore. Peritos garantem tratar-se da caligrafia de Moore.

Num estado muito conservador como o Alabama, as acusações dividiram o campo republicano. Enquanto os mais conservadores não atribuíram credibilidade ou desvalorizaram as denúncias, o incómodo entre os moderados e os mais jovens foi evidente.

Entre a classe política houve figuras proeminentes que pediram a desistência de Moore. O líder do partido no Senado, Mitch McConnell, e o prestigiado John McCain, aconselharam-no a renunciar à corrida. O outro senador eleito pelo Alabama, Richard Shelby, também republicano, demarcou-se de Moore e disse que não votaria nele.

O afastamento dos sectores mais moderados começou a reflectir-se nas sondagens, que ora davam a vitória a Moore, ora a Jones, sempre por escassa margem. Nas áreas urbanas, nas de maior poder de compra, e nas de maior concentração negra, o candidato democrata vencia. No Alabama mais rural e de maior concentração branca, vencia Moore.

Num estado que está em transição de uma economia essencialmente rural para uma economia moderna, com atracção de investimento de ponta, aposta em mão-de-obra qualificada e num ensino universitário prestigiado, os sectores mais dinâmicos viam na eleição de Roy Moore o acentuar perante o país de uma imagem reaccionária, fechada, provinciana, ultrapassada. O candidato representava isso mesmo, ao basear a campanha em temas como o aborto, o casamento gay, o temor a Deus, um moralismo que contrariava aquilo que teria sido a sua prática ao longo da vida a crer nas acusações de uma dezena de mulheres.

O apoio presidencial

Entre a classe política republicana, os cálculos eram mais prosaicos. O simples facto de no Alabama um democrata poder vencer já era considerado escandaloso. A apreensão aumentava à medida que aumentavam as probabilidades de a sua maioria no Senado se tornar mais magra (51-49). Nem todos, porém, partilhavam a preocupação. Mitt Romney, candidato republicano contra Obama em 2012, alertou: “Nenhuma maioria justifica que se perca a honra e a integridade”. O estigma sobre Moore alastrava no próprio partido.

E é aqui que Trump decide intervir. A menos de um mês da eleição vem dizer que o Senado não precisa de mais um liberal, fraco na questão das armas, do crime, do terrorismo, da imigração. Interrogado sobre as acusações de abusos sexuais a Moore, Trump desvaloriza-as, dizendo que ele as desmentiu. Eleger Moore a qualquer custo passou a ser o objectivo. Colocou-se claramente ao lado dos extremistas do partido e do seu ex-conselheiro Steve Bannon, que andou pelo Alabama a fazer campanha por Moore.

Trump não chegou a tanto, mas no último fim-de-semana fez um comício em Pensacola, na fronteira da Florida com o Alabama, num gesto de claro apoio a Moore. E gravou uma mensagem a apelar ao voto nele que foi enviada telefonicamente a milhares de eleitores.

A derrota de Moore nas urnas é, portanto, também uma derrota de Trump e da ala mais extremista dos republicanos. É mesmo? Bem, Trump reconheceu a vitória do adversário e até lhe enviou os parabéns na noite eleitoral, mas na quarta-feira de manhã descobriu uma forma de se demarcar da derrota do seu candidato, arvorando-se em observador arguto que adivinhou o desfecho da corrida. Escreveu ele no twitter: “A razão por que originalmente apoiei Luther Strange (o republicano derrotado por Moore nas primárias) é porque disse que Roy Moore não seria capaz de vencer a eleição geral. Tinha razão!”.

No alto conceito que tem de si próprio, Trump tem sempre razão. Mesmo que tenha perdido duas vezes — no apoio a Luther Strange nas primárias e no apoio a Moore na eleição geral. O que mostra mais uma vez a inconstância das suas posições. Nas primárias deixou-se convencer pelos moderados do partido e apoiou Strange, na eleição geral deixou-se convencer pelos extremistas e apoiou Moore, quando seria mais prudente e mais coerente resguardar-se em relação a uma personalidade tão controversa.

Afinidades com Trump

Deve dizer-se, contudo, em abono da verdade, que há várias afinidades entre Trump e Roy Moore. A ambos custa reconhecer derrotas. Na noite eleitoral, já toda a gente tinha atribuído a vitória a Doug Jones e ele já tinha feito o discurso de consagração, quando Moore veio dizer que ia pedir uma recontagem dos votos porque as regras do Alabama a isso o impeliam. Insinuou fraude eleitoral ou manipulação de resultados e disse que Deus estava a vigiar o processo.

Acontece que as regras dizem que a recontagem é obrigatória se os candidatos distarem 0,5% um do outro e Jones teve mais 1,5% do que Moore. Remetido o caso para o responsável pelo processo eleitoral, ficou-se a saber que os números apontavam, de facto, para uma diferença superior à que estipulam as regras e que uma recontagem, para ser feita, tem de ser paga por quem a solicita. Em suma, Moore lançou uma cortina de fumo para evitar reconhecer a derrota perante os seus apoiantes e o país. Uma “especialidade” que Trump tem usado abundantemente.

Ambos consideram os media inimigos a abater e têm um profundo desprezo pela verdade. Aliás, o pedido de recontagem dos votos e a suspeição de que houve manipulação remetem para a “realidade alternativa” que ambos gostam de alimentar, sobretudo com o intuito de manter os seus apaniguados em estado de credulidade incondicional.

Outra afinidade respeita ao estilo exuberante e ao narcisismo de ambos. Moore foi às urnas, na terça-feira, montado no seu cavalo e com o habitual chapéu de cowboy.

O desrespeito pelo sexo feminino também parece ser outro factor a uni-los. Ambos têm cerca de uma dezena de mulheres a acusá-los de abusos ou tentativas de abusos sexuais. No caso de Moore é ainda mais grave porque envolvem casos com menores.

Ambos exprimiram ainda, várias vezes, opiniões racistas e xenófobas, sobretudo em relação a muçulmanos. Num artigo publicado quando o primeiro deputado de fé islâmica foi eleito para o Congresso federal, Moore escreveu que o islamismo era incompatível com a Constituição americana e que as pessoas que o professavam não deviam ser autorizadas a servir no Congresso.

Homossexualidade é bestialidade

Mas as suas convicções mais radicais são sobre a homossexualidade. Numa entrevista dada em 2005 ao canal C.SPAN, defendeu a ilegalização da homossexualidade. E dez anos mais tarde repetiu esta convicção noutra entrevista.”Ainda pensa que a homossexualidade devia ser ilegal?”, perguntaram-lhe. “Penso que a homossexualidade devia ser ilegal”, respondeu sem hesitações.

Eis o diálogo na entrevista ao C.SPAN:

— Por que razão deveria o Estado proibir o que pessoas adultas consentem fazer na privacidade das suas casas?

— Lá porque é feito dentro de portas, pode à mesma ser proibido pelas leis do Estado. Sabe que a bestialidade, uma relação entre um homem e uma besta, está proibida em todos os estados?

— Perguntei-lhe sobre fazer sexo com uma vaca?

— Não, não perguntou.

— Ou com um cavalo ou um cão?

— É a mesma coisa.

— Não, não é. Mas quer dizer que a homossexualidade é a mesma coisa que a bestialidade?

— É o preceito moral sobre o qual este país foi fundado.

Nunca se inibiu de fazer considerações sobre a homossexualidade como algo “aberrante, imoral, detestável, um crime contra a natureza e uma violação das leis da natureza e de Deus”. E compareceu várias vezes num programa de rádio de um pastor evangélico do Colorado que advoga a pena de morte para os homossexuais.

Moore foi suspenso sem remuneração do Tribunal Supremo do Alabama, a que presidia, em Setembro de 2016 por rejeitar a lei federal que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Sete meses após o Supremo Tribunal dos Estados Unidos ter legalizado o casamento gay, Moore deu instruções aos juízes do Alabama para não aplicar a lei, escrevendo numa directiva que a proibição do casamento gay não se aplicava no estado.

Num comentário à lei, afirmou que era “ainda pior” do que uma outra que no século XIX tinha aberto caminho à segregação racial. “Acho que é pior porque afecta todo o nosso sistema de moralidade e de valores familiares”, disse à CNN.

Moore era então a máxima autoridade judicial do Alabama e a sua directiva contrariava a deliberação do Supremo Tribunal federal que legalizava o casamento gay e se aplicava a todo o país, naturalmente. O “desdém” demonstrado pela aplicação de uma lei federal “vinculativa” esteve na base da sua punição. Mesmo antes da legalização do casamento gay, escreveu cartas a todos os 50 estados da União, propondo a convocação de uma convenção constitucional para evitar que tal acontecesse.

Por isso, foi suspenso de funções até ao fim do mandato, que terminaria em 2019. O facto de entretanto ter ultrapassado os 70 anos, afastou-o definitivamente do cargo.

Mas esta foi a segunda vez que Moore desafiou ordens federais e perdeu o seu lugar como presidente do Tribunal Supremo do Alabama. Em 2003, tornou-se famoso a nível nacional por se recusar a retirar um monumento evocativo dos Dez Mandamentos que mandou colocar no tribunal. O monumento simbolizava a sua determinação em obedecer à Bíblia e aos valores religiosos acima da Constituição americana.

A mistura entre Estado e religião valeu-lhe um processo disciplinar e o afastamento do cargo, mas fez dele um herói dos cristãos evangélicos e outros sectores conservadores. Sectores que o recolocaram no posto de presidente do Tribunal Supremo do Alabama quando se recandidatou ao cargo em 2012. Nos EUA, há inúmeros cargos judiciais resultantes de sufrágio popular e directo.

É este o homem que queria representar o Alabama no Senado dos EUA. Os eleitores, porém, evitaram que isso acontecesse, dando ao país e ao mundo uma nova imagem do estado mais conservador da América.