​La Lys: história e memória
04-04-2018 - 06:37

A 9 de abril de 1918, o exército português averbou a mais catastrófica e traumática derrota militar do século XX.

Como se noticiam e racionalizam, junto da retaguarda civil e da opinião pública, as perdas humanas sofridas numa guerra? A pergunta e o desafio são tão atuais hoje, num mundo de morticínios televisionados à hora do jantar, como o eram há cem anos, no Portugal periférico, pobre e analfabeto que o governo afonsista da I República lançou na aventura da participação na I Guerra Mundial.

A 9 de abril de 1918, o exército português averbou a mais catastrófica e traumática derrota militar do século XX, na tristemente célebre batalha de La Lys, o equivalente contemporâneo do desastre de Alcácer-Quibir. Flanqueada pelos britânicos, mas exposta à ofensiva desesperada dos alemães, a 2.ª Divisão do Corpo Expedicionário Português (o CEP), com uns 700 oficiais e uns 20.000 sargentos e praças, guardava uma linha de 12 km junto do rio La Lys, na Flandres. Para o alto-comando germânico, chegara a hora do tudo ou nada – fechada a frente oriental da Guerra, com a retirada russa do conflito, e antes que os contingentes norte-americanos se juntassem, na frente ocidental, às forças aliadas. Nesse infausto 9 de abril de 1918, o CEP perdeu c. 7.200 efetivos, entre mortos, feridos, prisioneiros e desaparecidos sob a tempestade de metralha alemã – quase metade do total de baixas (c. 14.500 efetivos) de toda a campanha portuguesa na Flandres em 1917-18.

Num país em clima apocalíptico, por entre a terrível crise económica e social da Guerra, os ecos messiânicos e redentoristas de Fátima e uma Europa em ruínas, a chacina de La Lys significou a desautorização trágica e sangrenta da política belicista dos republicanos de Afonso Costa. O “milagre de Tancos”, tão propagandeado pelos “guerristas” em 1916, não conseguiu evitar o desastre de 1918, ocorrido já no consulado de Sidónio Pais, quando este procurava repensar o dispositivo português enviado para a Flandres.

Eis como a “Ilustração Portuguesa”, a famosa revista semanal do muito influente (e campeão de vendas) jornal “O Século” noticiou a catástrofe aos seus leitores, no n.º de 22 de abril de 1918: “Há revezes mais gloriosos que vitórias. Um reduzido número de bravos, inflamados do amor de uma santa causa, arcando com a arremetida brutal de ondas temerosas de soldados refeitos de forças e munidos das mais aperfeiçoadas e também das mais perfeitas armas de guerra, ondas que se sucedem automaticamente, à medida que a metralha as vai pulverizando, num estupendo sacrifício de vidas, até que uma abra brecha, como fatalmente acaba por abrir – defende-se, oferece uma resistência louca, deixa-se matar, hasteando sempre alto a bandeira querida da pátria enquanto se lhe não esvai o último alento. Salvar uma honra é ainda uma grande, senão a maior das vitórias! Foi o que fizeram os portugueses […] Provaram brilhantemente que nunca trepidamos em acudir aonde nos chama o dever, que somos capazes de duros sacrifícios, quando eles se nos impõem em nome da liberdade e da civilização […] Todo o país partilha, sem dúvida, de tanta dor e de tanta angústia; e quando estas não tenham já a adormentá-las uma esperança sequer, o espírito deve erguer-se do seu abatimento à consoladora reflexão da grandeza de ânimo, da nobre altivez de raça, do acendrado patriotismo com que, desde o humilde soldado ao mais graduado oficial, todos se submeteram a tão cruento e memorável holocausto, cobrindo-se de glória e ao seu país”.

A retórica era grandiloquente, o consolo era o do dever cumprido e a moral era a do martírio. Para a opinião pública, todavia, o patriotismo não recuperava vidas. Não só por causa da I Guerra, mas muito devido a esse belicismo político imprudente, culminado em La Lys, há cem anos, a I República foi a história de um fracasso. O regime que veio depois também não deixou saudades.