Primeiro dia
27-11-2015 - 18:11

É tempo de sarar as feridas e não de as salgar. António Costa “dixit”, e bem, embora ainda não tenha sido no discurso de tomada de posse que o apaziguamento foi conseguido.

Em rigor o primeiro-ministro respondeu a Cavaco Silva de forma tão desabrida e sobranceira, quanto os deselegantes remoques presidenciais. Com uma agravante: não é verdade que o Governo responda (só) perante a assembleia da Republica. O presidente tem razão: num regime semi-presidencialista, o Governo está sujeito a dupla fiscalização. As próximas oito semanas não serão excepção, e não convirá subestimar as ameaças presidenciais.

Mas ontem foi ontem. Para hoje António Costa já prometeu a “máxima lealdade institucional”, e acrescentou que à crispação sucederá a serenidade, o diálogo, o toque a “reunião”, o cumprimento escrupuloso da pauta do interesse nacional a que todos sem excepção estão convocados. E prometeu mais: uma acção governamental pautada pela “moderação” em consonância com o seu programa “moderado”. Deu firme garantia de que não assistiremos a uma deriva do Partido Socialista a reboque da esquerda radical.

Palavra dada é palavra honrada. Mesmo se até aqui nem sempre assim foi, agora, que de futuro o seja. A começar no cumprimento dos compromissos aceites no quadro do Tratado Orçamental, ou no respeito pelos acordos internacionais no âmbito da defesa e da segurança (e novas exigências surgirão a curto prazo neste mundo em mudança!).

Tudo sem esquecer a prometida salvaguarda de uma classe média essencial à retoma dinâmica de uma vida económica saudável, em nome da qual Passos Coelho foi eleito, mas que a politica recente quase literalmente destruiu. Será Costa capaz de combater eficazmente a desigualdade, sem nivelar por baixo, e ao mesmo tempo pôr-se ao basismo da luta de classes do velho PCP, cavalgado pela inveja social do novo “bloquismo”?

A moderação do PS passará também pela melhor regulação, sem derivas estatizantes. Não há “ricos” suficientes para pagar a crise e o investimento nacional e estrangeiro é tão essencial à nossa economia como o “pão para a boca”. A fuga de capitais existe por mais que nos custe e essa luta por uma tributação justa e eficaz dos grandes lucros só pode ganhar-se em concertação inteligente com os parceiros europeus e nunca na versão de D. Quixote da nossa extrema-esquerda.

Dito isto é tempo de mostrar que a alternativa não era apenas possível mas saudavelmente desejável. Dando campo ao confronto de projectos de sociedade diferentes. Afinal estamos todos convocados para o trabalho.

Este é o primeiro dia de um novo ciclo que embora se apresente envolto numa cortina de incertezas, todos sem excepção deveríamos esforçar-nos para que fosse do máximo sucesso. Porque o sucesso da “geringonça” (a imagem perfeita que Vasco Pulido Valente utilizou para caracterizar o frágil mecanismo de apoio governamental…) é o sucesso de Portugal, dos vencedores e dos vencidos. Ou no caso concreto dos vencedores-vencidos.

O perdedor por “muitinho” já deu provas de uma perícia politica que muitos tinham subestimado. Mas não é o pecado original que impede a Redenção, é a insistência no erro e o desperdício de talentos. Talento que agora terão de ser postos a render no difícil trajecto de negociação, que se adivinha permanente à esquerda e ao centro para que o equilíbrio frágil com o qual se construiu a actual solução de governo não se quebre ao primeiro movimento.

Hoje é tempo de virar a página e olhar o futuro. É tempo de esperar que corra bem. O melhor possível. O bem de Costa será o bem do país. Este país que é nosso e que não se pode dar ao luxo de desperdiçar o magro caminha já feito. Magro demais talvez, mas que custou a todos sangue suor e lágrimas e que se não fosse ter-se batido tão fundo teria sido pelo menos parcialmente desnecessário. Nem tudo foi mau na governação socialista anterior sobretudo nos tempos iniciais de reformismo. Mas é uma verdade factual que os anos finais da governação Sócrates foram maus demais para serem esquecidos ou repetidos.

A Presença de Mário Centeno e a apresentação de um modelo de crescimento alternativo que está a anos-luz da política de obras públicas, parcerias público privadas a eito e endividamento sem norte, é um a primeira garantia de mudança. Mesmo a presença na economia de Manuel Caldeira Cabral, com o seu prestigio académico próprio (embora tenha sido consultor de Manuel Pinho e Teixeira dos Santos), não suscita preocupação.

É verdade que há um forte núcleo socrático, mas esta é gente que maioritariamente já vem dos Governos de Guterres com provas dadas de liberdade de pensamento próprio. Vieira da Silva foi o homem que fez, com a concertação social, a grande reforma da Segurança Social a que a esquerda radical se opunha ferozmente e a direita conjunturalmente combatia. Já a presença do secretário de Estado Prata Roque (advogado de Sócrates na acção contra a Cofina) faz temer o pior em matéria de liberdade de informação. Não é indiferente a sua presença no Governo enquanto “sinalética politica”. Com o risco de ser injusta, talvez fosse presença a dispensar.

Mas há muita gente com currículo a merecer, pelo menos, senão o estado de graça, o benefício da dúvida. Manuel Heitor tem provas dadas na ciência. Francisca Van Dunen tem uma vida inteira de trabalho com um currículo de independência imaculado. Não desmerece a esperança de pacificação do sector.

Brandão Rodrigues tem apesar da juventude um currículo invulgar e invejável enquanto cientista. Será que sem sectarismos conseguirá avançar na reforma da educação que continua a impor-se? A ideia inicial de estabilidade do corpo docente e redefinição de ciclos vai mesmo avançar? O filho de professores primários será capaz de abrir a porta a um sistema diferente à semelhança do que acontece em muitos países europeus estendendo por seis anos o primeiro ciclo, com recurso ao professor único, como o programa inicial do PS deixava antever? E nesse caso como ficaria a relação de forças com o braço sindical de apoio ao Governo? A prometida estabilidade do corpo docente nas escolas, que Crato tanto queria e não conseguiu, é afinal possível?

No programa do PS há muitas propostas boas, novas, arrojadas e reformistas. Muita coisa a fazer em conjunto longe e contra os interesses do “centrão”, mas em aliança firme com um enorme centro político não radical. Este é o dia de acreditar que pelo menos as melhores ainda serão possíveis, mobilizando os homens de boa-vontade de um extremo ao outro do hemiciclo (vencedores/vencidos e vice-versa) incluídos. Deus queira.