Nem vai ao Tribunal Constitucional?
21-07-2016 - 17:46

Era bom dar ao TC a oportunidade de se pronunciar sobre a gestação de substituição. E os juízes não teriam que ir muito longe.

O artigo 1.º da Constituição afirma que Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da vida humana.

Entre outras coisas, tal significa que a legislação portuguesa que venha a contrariar a dignidade da vida humana é inconstitucional.

Ao percorrer o diploma da gestação de substituição, conhecida como “barrigas de aluguer”, são evidentes os atropelos à dignidade da vida humana

O que se pode dizer de uma lei que impede uma criança de conhecer os seus pais biológicos – não aqueles que porventura a educaram, mas aqueles de quem recebeu, como agora se diz, o respectivo “material genético”? É razoável admitir (basta pormo-nos nessa posição) a negação do direito a conhecer a identidade dos pais?

Não será essa lei inconstitucional por violar logo o primeiro artigo da Constituição, que proclama a dignidade da vida humana como um dos baluartes da república portuguesa?

Acredito que haja quem de imediato responda: impedir uma criança de conhecer os seus pais não atenta contra a dignidade da vida humana. Mas quem assim responder esquece que a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada por unanimidade nas Nações Unidas, em 1989, prevê precisamente, no seu artigo 7.º, o direito da criança a conhecer os seus pais. E Portugal, em 21 de Setembro de 1990, ratificou essa mesma Convenção, integrando-a na sua ordem jurídica.

Outro exemplo respeita à eventual nulidade, prevista na lei, de um contrato de gestação de substituição, mas com a gravidez a decorrer. Caso as partes se desentendam, o que acontece à criança?

Para adquirir “coisas”, a nulidade ou a anulação são modos necessários à segurança jurídica e à defesa dos interesses das partes – comprador e vendedor. Em certas circunstâncias, pode mesmo devolver-se o objecto (carro, fato ou par de sapatos) à procedência e está o caso arrumado. Só que no caso dos contratos de gestação de substituição não está em causa uma coisa, mas uma pessoa. Neste caso, “vendedor” e “comprador” têm entre mãos o destino de uma vida humana, cujo interesse deve sempre prevalecer sobre os titulares deste negócio jurídico.

Dito de outro modo: as partes negoceiam sobre a vida de um terceiro e fazem previsões de negócio, como se pudessem colocar-se na posição de proprietários e donos de uma vida humana. Mas não podem. Os pais em nenhuma circunstância são proprietários da vida de um filho. Será que devem ser reconhecidos aos titulares de um “contrato de gestão de substituição” direitos reforçados que os outros pais não têm e não devem ter?

Estará, também neste caso, devidamente assegurada a dignidade da pessoa humana, que os nossos constituintes colocaram como primeiro pilar da República?

A lei agora aprovada preocupa-se com a vontade de ter filhos. Dá prevalência ao direito a ter um filho custe o que custar, em detrimento da dignidade da pessoa que se vai gerar. A satisfação ou realização individual (ter o filho) vale mais do que a dignidade dessa criança, que, uma vez adulta, será obrigada a desconhecer boa parte da história em que se baseia a sua própria vida?

No diploma aprovado no Parlamento há muitos outros aspectos altamente sensíveis. A comercialização das barrigas de aluguer – como um verdadeiro negócio, com pagamentos e outras contrapartidas – é um deles. A lei proíbe este tipo de contratos. Mas, apesar de proibir contratos de maternidade de substituição a título oneroso, o nosso legislador limitou-se a prever uma simples multa para quem efectivamente for apanhado a “comercializar”.

Num país que examina (e bem) à lupa constitucional tudo o que diz respeito a direitos sociais e económicos, não deveria dispensar-se igual ou maior cuidado àquilo que respeita à dignidade da vida humana?

Era bom dar ao Tribunal Constitucional a oportunidade de se pronunciar. E os juízes do Constitucional não teriam que ir muito longe. Bastaria que lessem esta lei, ponto por ponto, à luz do primeiro artigo da Constituição portuguesa. Está tudo lá.