Richard Stallman não tem Facebook nem telemóvel. Em nome da democracia
21-12-2016 - 06:00
 • Elsa Araújo Rodrigues

Um dos maiores programadores de todos os tempos, Richard Stallman é activista do software livre, contra os programas de código fechado "tipicamente desnonestos" e com "funções maliciosas que são desenhadas para maltratar o utilizador".

Imagine viver sem conta no Facebook ou no Instagram. Agora imagine que também não tem telemóvel, não utiliza programas de computador tão comuns como o Word ou o Excel. Para a maioria das pessoas, as coisas acabaram de ficar um pouco mais difíceis.

Este é o estilo de vida de Richard Stallman, um norte-americano de 63 anos reconhecido como um dos maiores programadores de todos os tempos. Há quem lhe chame o evangelizador do software livre, pela forma como manifesta as suas opiniões: chegou a caracterizar os dois sistemas operativos mais utilizados no mundo – Windows e OS X - como malware.

A Renascença falou com Richard Stallman entre duas palestas em Lisboa, uma no ISCTE e outra na Web Summit. Esteve em Portugal a promover uma fundação em prol de programas de computador “verdadeiramente livres” e pediu à audiência que não coloque fotografias dele no Facebook, porque é “má ideia”. Define-se como um “resistente à vigilância”, porque a vigilância constante está a pôr a democracia em risco.

Há mais de 30 anos iniciou o projecto de criar um sistema operativo complemente livre, sem qualquer tipo de custo para o utilizador. É programador informático e defensor do software livre. Que causa é esta a que se dedica de forma tão ferrenha?

O software livre respeita a liberdade dos utilizadores. É software que não maltrata os utilizadores, do ponto de vista ético. Um programa oferece sempre duas possibilidades: ou os utilizadores controlam o programa ou o programa controla os utilizadores. Não há nenhuma outra possibilidade. Quando um programa é livre, significa que os utilizadores têm o controlo total sobre o programa. Em geral, são programas que fazem aquilo que os utilizadores querem que eles façam e respeitam a liberdade dos utilizadores.

Concretamente, o que significa esta liberdade?

Significa que o programa concede ao utilizador quatro liberdades essenciais: a liberdade de correr o programa da forma que entender e com objectivo que quiser. A liberdade de poder estudar o código-fonte do programa, ou seja, os planos que o programador utilizou para o criar e poder alterá-lo. Assim, cada utilizador pode definir livremente o que cada uma das suas cópias do programa pode fazer. Claro que a maioria dos utilizadores comuns não são programadores, por isso é preciso que o programa dê a liberdade aos utilizadores de trabalharem juntos para alterar o programa. Um programa realmente livre também permite fazer cópias quer dos originais, quer dos programas alterados. Só assim é que se pode trabalhar em conjunto nos programas.

A maioria dos programas que conhecemos e usamos todos os dias não permite cópias legais.

Exacto, não são realmente livres. Quando um programa não fornece estas liberdades, o utilizador não o controla, o programa controla o utilizador, e o proprietário controla o programa. O proprietário é normalmente uma empresa e essa entidade é que controla o programa, que, por sua, vez controla os utilizadores. Os programas que não são livres dão às empresas um poder injusto sobre os utilizadores. O software que não é livre é uma injustiça e, por isso, livrei-me dele na minha vida. E aconselho a todos que o façam.

Para um utilizador comum de computadores é viável utilizar apenas software livre devido aos maiores conhecimentos informáticos que é preciso ter?

Isso não é verdade. O software livre não é difícil de usar. Os utilizadores não precisam de ser programadores para o usar, mas é preciso que quem queira alterá-lo o possa fazer. O software livre não é mais difícil de utilizar que o software proprietário, mas como é controlado pelos utilizadores, os utilizadores podem ter a certeza que é honesto. O software proprietário é tipicamente desonesto, tem funções maliciosas que são desenhadas para maltratar o utilizador. Podem espiar e impedir o utilizador de fazer coisas. Coisas que, se calhar, o programa até tem capacidade para fazer, mas que a empresa não quer que ele faça. E muitos destes programas têm uma porta das traseiras (“backdoor”). Isto significa que a empresa pode decidir enviar um comando ao programa e ele executa uma acção que pode prejudicar o utilizador.

Este tipo de prática é frequente? Pode dar um exemplo?

Já vimos isto acontecer várias vezes. Por exemplo, a Amazon colocou uma porta das traseiras no seu leitor de livros electrónicos que lhe permitia apagar os livros dos leitores de forma remota. Sabemos disto porque, em 2009, muitas pessoas viram a Amazon a apagar remotamente milhares de cópias de um livro em particular. Foi um acto “orwelliano”. E sabe que livro foi? Foi o “1984”, de George Orwell. Foi de uma ironia tal que muitas pessoas se mostraram contra a própria Amazon. A onda de contestação que se gerou levou a que a empresa fizesse uma promessa enganosa. Parecia uma promessa honesta, que dizia que não voltariam a fazê-lo, a menos que a isso fossem obrigados pelo Estado.

Claro que para todos os que conhecem e leram o “1984”, a promessa não foi lá muito reconfortante. O livro é sobre um Estado que mandava queimar os livros de que não gostava. E nem sequer foi uma promessa verdadeira. A Amazon apenas disse algo que soava a uma promessa. Uns anos depois, começou a apagar livros dos leitores (e-readers), de forma arbitrária e por iniciativa própria, sem qualquer tipo de ordem ou indicação do Estado. É este tipo de coisas que devemos esperar de software que não é livre. Os produtos com software proprietário são amplamente utilizados, mas também são conhecidos por serem malware [programas de computador hostis e/ou intrusivos]. Existem dezenas de exemplos e quem quiser conhecer outros casos, pode consultar o sítio da Fundação para o Software Livre, onde estão listados dezenas de programas de malware vendidos por empresas muito conhecidas.

O Facebook é citado com frequência nas suas palestras. Começa sempre por pedir a quem lhe tira fotografias que não as partilhe no Facebook ou Instragram. Por que faz esse pedido?

Porque colocar fotos no Facebook é uma má ideia. O Facebook recolhe dados sobre os seus utilizadores e não só, e depois vende esses dados de várias formas e utiliza-os para manipular as pessoas. O Facebook consegue reconhecer as pessoas nas fotografias, mesmo nas fotografias onde apenas se vê a parte detrás da cabeça. Se pusermos uma fotografia no Facebook, de um evento, como uma palestra por exemplo, se nessa fotografia aparecerem cabeças de várias pessoas, o Facebook sabe quem são, mesmo que quem publicou a imagem não conheça essas pessoas. O resultado é que todos estes dados, toda a informação que as pessoas publicam, ajuda a que seja possível vigiar de perto quase toda e qualquer pessoa. Isso é muito perigoso. Qualquer entidade que tenha tal poder de vigilância, tem o mesmo poder sobre as pessoas que vigia. E não é só o Facebook. Oponho-me a todos os sistemas que permitem vigiar as pessoas. Como os sistemas de videovigilância nas ruas, através de câmaras ligadas a computadores com programas de reconhecimento facial ou sistemas que controlam o trânsito através de câmaras que permitem reconhecer as matrículas dos carros. Todas estas formas de vigilância criam um sistema de tirania.

Um sistema de tirania em que sentido?

O perigo é que se torna fácil identificar todos os dissidentes, especialmente os “whistleblowers” [pessoas que denunciam crimes ou actividades ilegais]. Um “whistleblower” é uma fonte de informação para os jornalistas. E quando os jornalistas investigam casos de transgressão ou más práticas dos Estados, precisam de falar com pessoas a quem possam garantir o anonimato. Mas se o Estado vigiar de perto toda e qualquer pessoa... Por exemplo, basta ter um telemóvel que envia sinais de forma contínua e a operadora de telecomunicações pode saber onde está a todo o momento. E é claro que o Estado pode ter acesso a essa informação muito facilmente. O argumento que o Estado utiliza é o de que assim é possível detectar e vigiar terroristas. Mas nada o impede de vigiar também as fontes dos jornalistas, por exemplo. Podemos chegar a um momento em que se ninguém se vai atrever a dar informações aos jornalistas.

Em Portugal, foi colocada em prática uma forma de combate à evasão fiscal que tem sido muito criticada, precisamente pelo grau de vigilância que o Estado introduziu na vida quotidiana. De cada vez que compramos qualquer coisa é-nos perguntado se queremos factura com número de contribuinte. O que acha deste tipo de medida?

Eu nunca o faria. Porque é que o Estado tem de ter acesso a esse tipo de informação? Na minha opinião, as pessoas nunca deviam dar o número de contribuinte. Ou então deviam inventar um. Sou um resistente à vigilância, faço tudo o que posso para evitar que o Estado me vigie. E faço-o porque acho que é um dever de cada um de nós. Eu não tenho muitos segredos, nem estou particularmente preocupado com a possibilidade do Estado me vigiar. Se eu fosse o único a ser vigiado, estaria muito mais aliviado e menos preocupado. Eu não sou uma daquelas fontes dos jornalistas que precisa de ser protegida. Pessoalmente, não preciso de ser protegido. Mas existem pessoas que precisam. E se a vigilância se tornar uma coisa normal e comum nas sociedades, essas pessoas vão estar em perigo. O que quer dizer que a democracia estará em perigo. Gostaria de ter a certeza que eu seria a única pessoa que o Estado vigiava.

Costuma dizer que o nível de vigilância que existe actualmente é o "sonho de Estaline". O que quer dizer com esta expressão?

Chamo aos telemóveis, especificamente, o sonho de Estaline. Porque, se tiver um telemóvel, o Estado sabe sempre onde está. O telemóvel tem uma “backdoor” que pode ser utilizada como uma "porta das traseiras universal", o que quer dizer que pode ser utilizada para alterar de forma remota o software do telemóvel. E isto pode ser feito de muitas formas, uma das mais comuns é feita com o objectivo de tornar o telemóvel um aparelho de escuta permanente. Um aparelho de escuta que está sempre ligado e que ouve todas as conversas, não só as chamadas, mas as conversas que acontecem na sala onde está o telemóvel e as transmite a alguém. Talvez a uma polícia de vigilância.

Estaline teria adorado poder fazer isto na União Soviética. Se na altura, alguém lhe tivesse dito: sou um engenheiro brilhante, posso construir um aparelho muito barato, pequeno e que qualquer pessoa poderá ter. Um aparelho que saberá sempre onde a pessoa está e que pode ser utilizado para escutar não só o dono do aparelho, mas todas as conversas que tiver com outras pessoas. Estaline teria dito: “Sim, quero esse aparelho! Quero que o construas já e depois mato-te”. Era assim que ele agia. O ponto é: Estaline não conseguia fazer isto. Teria sido um sonho para ele, se alguma vez se tivesse atrevido a sonhar com algo assim. Algo tão distante da realidade do seu tempo.

Menos privacidade é o preço a pagar para termos mais comunicação e ligação entre as pessoas através dos telemóveis, depois dos smartphones e agora através das redes sociais?

Acho que a questão deve ser colocada ao contrário: estamos dispostos a abdicar da nossa privacidade como o preço a pagar para podermos utilizar todas essas coisas tão convenientes? Bom, a minha resposta a isso é simples. Para mim, o Facebook não é nada mais do que uma forma de abdicar da privacidade. Eu nunca fui utilizado pelo Facebook. As pessoas não usam o Facebook, o Facebook usa as pessoas. Estou contente, porque o Facebook não me usa. Recebe algumas informações sobre mim através de outras pessoas, mas não recebe nenhuma informação através de mim sobre outras pessoas. Orgulho-me muito disso. Tanto quanto sei, o Facebook é utilizado para ler anúncios aborrecidos acerca da vida de outras pessoas, ver vídeos de gatinhos dos quais que outras pessoas gostaram e tentar parecer mais fixe do que os demais, apresentando uma falsa imagem de si próprio. Sinto-me feliz por não andar a fazer nenhuma destas coisas.

Não tem telemóvel?

Não tenho. Mas reconheço que os telemóveis podem ser convenientes para algumas coisas reais. Mas o preço a pagar por eles, no fim da linha, pode significar o fim da democracia. É um preço demasiado elevado a pagar.

No rescaldo da vitória de Donald Trump, muito se tem escrito acerca do papel das redes sociais nas eleições norte-americanas e da influência que podem ter tido neste processo democrático.

Primeiro, todas as redes sociais são diferentes entre si e de formas muito importantes. Por isso é que eu digo: não publiquem fotografias minhas no Facebook e não digo: não publiquem fotografias minhas nas redes sociais. Porque são muito diferentes umas das outras. Não quero tratá-las todas da mesma forma. Mas sim, já ouvi dizer que o Facebook, e talvez outras redes sociais também, ajudaram a eleger Trump. E fizeram-no permitindo às pessoas que evitassem o contacto com ideias de outras pessoas, com as quais não concordam. E esta ideia pode ser perigosa para sociedade, de uma forma mais genérica. Porque torna mais provável que eu e uma pessoa de direita nem sequer falemos um com o outro. É algo que pode vir a acontecer de forma permanente, não relacionada com as divergências políticas que possamos ter actualmente. Muita gente pensa que a falta de exposição a opiniões contrárias põe em causa a necessidade e capacidade futura das sociedades deliberarem, reflectirem. Parece-me claro que é um problema maior que a eleição de Trump. O debate político transformou-se numa gritaria de troca de epítetos e acusações. Uma realidade que vai tornar mais difícil a discussão sobre futuros desacordos políticos, não apenas sobre o desacordo que temos agora.

Que comentário lhe merece a eleição de Donald Trump e o desacordo que muitos têm manifestado?

É ainda pior do que seria eleger Hillary Clinton. Claro que não votei em nenhum deles. Votei em Jill Stein. Era a única candidata no boletim de voto com algumas ideias que posso subscrever. Há dois anos que sabia que não poderia votar em Clinton. Ela não é progressista. É, basicamente, uma defensora de Wall Street. Quanto a Trump, ele não defende nada em específico, excepto o seu próprio engrandecimento. Não sabemos o que é que Trump vai defender realmente daqui para a frente. Durante a campanha ele proferia um insulto qualquer e a seguir vinha dizer: “Não, não foi isso que quis dizer”. Para logo a seguir insultar outra pessoa. Ele tornou o facto de se contradizer tão normal, que nunca tomou partido por nada, nunca defendeu nada em particular.

Voltando a si e àquilo que defende. O Richard é defensor acérrimo do software livre e vai falar na WebSummit, para muitos criadores e investidores em aplicações e programas proprietários.

Sim, aplicações proprietárias e não-livres, que eu nunca usaria. E é sobre isso que vou falar. Não é contraditório. A maior parte das pessoas para quem vou falar tem pontos de vista diferentes dos meus, mas não é contraditório explicar o meu ponto de vista. Espero que algumas pessoas ouçam, pelo menos, algumas das coisas que vou dizer. E vou recomendar, como sempre, que consultem o site gnu.org para saber ficar a saber mais sobre o que é o software livre e o que significa realmente ter liberdade.