"Vejo tudo menos os dirigentes dos clubes a promover o fair play"
17-05-2018 - 15:38
 • Sérgio Costa

À Renascença, o antropólogo Daniel Seabra defende que "o importante não é criar" uma autoridade nacional contra a violência no desporto.

Daniel Seabra é antropólogo e um estudioso das claques de futebol e do fenómeno da violência no desporto. Em entrevista à Renascença, lembra que nem só pessoas das camadas mais desfavorecidas da sociedade se envolvem em incidentes como aqueles que, esta semana, tiveram lugar na Academia do Sporting em Alcochete e sublinha que "muitas vezes o futebol apenas reproduz e exacerba um conjunto de situações presentes no quotidiano das pessoas".

Como se pode explicar que adeptos ataquem jogadores da sua própria equipa?

Primeiro gostaria de lhe dizer que o que aconteceu não é novidade, ou seja, já ocorreram situações similares. Ainda há pouco tempo aconteceu com o Vitória de Guimarães, há alguns anos com o treinador do Futebol Clube do Porto Co Adriaanse, holandês, e também terá ocorrido noutros clubes. Em termos de natureza do fenómeno, não há propriamente uma novidade. O que impressiona é sobretudo o grau de violência, bastante grave, e ainda por cima, desta vez, tivemos acesso a imagens. Neste caso concreto há, a meu ver, dois pontos essenciais.

Em primeiro lugar, é óbvio que temos declarações que foram publicadas pelo presidente do Sporting Clube de Portugal no Facebook, após o jogo em Madrid. Considerando também as declarações à revista do jornal "Expresso", é patente e explícito que existe um conflito entre a direção, nomeadamente entre o presidente, e os jogadores. O problema é que esse conflito é colocado no espaço público. Deixou de ser interno e passou a ser externo.

As claques de futebol funcionam muitas vezes numa lógica muito dicotómica, que é muito inerente ao próprio jogo de futebol, ou seja, de um lado estão os bons, os intocáveis, e do outro estão os maus, os viabilizáveis. Nesta lógica binária, as claques muitas vezes pensam com base nestas representações muito simplificadas da realidade. Como se de um lado estivesse a virtude e do outro estivesse o odioso. E é precisamente em função destas representações e destas imagens são fáceis, digamos que simplificadas e redutoras, que as claques atuam. E depois elas têm também inerente uma lógica de ação, para serem valorizados os membros das claques precisam de atuar, ou seja, não existe uma lógica discursiva, mas uma lógica de ação. Os membros da claque ganham prestígio no grupo pela forma como trabalham a favor do mesmo e como participam nas atividades.

As claques são permeáveis à violência, isso é apenas o espelho de dificuldades sociais, a tradução de uma frustração social?

É verdade, mas essa perspetiva tem de ser encarada com algumas limitações. Geralmente as pessoas associam e procuram, do ponto de vista sociológico, justificar a violência com determinada condição social, muitas vezes associada à questão de desemprego, à questão das classes menos favorecidas, mas esta lógica não é assim tão linear. Alguns dos que levam a cabo este tipo de atos ou que praticam violência contra adeptos adversários nos estádios não são necessariamente pessoas enquadradas neste perfil social de classe desfavorecida. Para além disso, por vezes - e é importante sublinhar isto - participam nestas atividades pessoas que têm até um perfil social valorizado, que desempenham profissões socialmente respeitáveis, e não é por isso que deixam de participar. Muitas vezes participam até numa lógica mais premeditada e mais racional.

Como é que se explica que pessoas com estatuto social possam entrar num esquema de violência?

Temos várias possibilidades a considerar. Há vários perfis. Posso dizer-lhe que alguns dos que praticam estes atos têm um perfil de delinquência e de criminalidade associado ao seu quotidiano mas outros não. Pergunta-me porque é que, afinal, as pessoas como advogados, bancários, farmacêuticos, ou seja, com algum tipo de profissão socialmente valorizada, acabam por praticar estes atos. Precisamente pela fortíssima lógica de identificação que têm com os clubes e depois por algo que a nós nos parece absolutamente irracional mas que é preciso sublinhar: é que alguns destes membros das claques não têm qualquer inibição em reconhecer que lhes dá prazer participar nestes atos. Eu sei que o que estou a dizer é absolutamente surpreendente e parece, dentro da nossa racionalidade, algo absolutamente inaceitável, e do ponto de vista social e de cidadania, obviamente que esta é uma posição absolutamente reprovável, mas é a verdade.

Como se trava, como é que se previne este tipo de fenómenos que, como diz, até nem são tão irracionais quanto possam parecer?

Não são tão irracionais porque se enquadram nessa tal lógica binária de defesa do clube e se essa defesa for instrumentalizada e aplicada num campo de confronto direto é, para alguns, aceitável. Retira-se prazer dela.

Como se combate esse fenómeno?

Há várias medidas. Primeiro, é preciso sublinhar que, do ponto de vista da prevenção situacional, a situação tem vindo a melhorar muito. Falo de todas as medidas que a polícia toma para fazer a segurança dos estádios de futebol e para tentar evitar estas situações. Dentro dos estádios a situação vai estando mais ou menos controlada, o problema é que estas pessoas - sobretudo com uma certa deriva para um estilo casual - passaram a publicar este tipo de acidentes sobretudo nas áreas circundantes. E é aí que, muitas vezes, se levam a cabo as piores agressões, muitas das vezes longe dos olhares da comunicação social e até da polícia. Veja-se o que se passou recentemente no último fim de semana com adeptos do Futebol Clube Porto em Guimarães. Esse tipo de incidentes são recorrentes.

É preciso haver uma maior atenção das autoridades nas atividades “extra jogo de futebol”?

Ela existe. A polícia está perfeitamente informada relativamente a quem pratica estes atos. Há, contudo, ainda um problema muito sério que resulta disto. O número de identificações e o número de detenções levadas a cabo por forças de segurança não está a ter a necessária correspondência no plano das sanções e nas sentenças que são proferidas por senhores juízes. Ao número de detenções e ao número de identificações não estão a corresponder as consequentes penas.

Devia haver uma ação mais musculada e mais punitiva por parte das autoridades?

Percebe-se porque é que isto acontece. Por vezes, os senhores juízes não estão presentes no local e lidam com situações relativamente às quais é preciso fazer prova. Para além disso, alguns destes elementos vão recebendo todo um conjunto de atenuantes que, muitas vezes, leva a que um número de elementos de entrada nos estádios seja muito baixo quando verificamos a factualidade, ou seja, o número de ocorrências é bastante superior às previsões de entrada no estádio.

Esta dimensão punitiva é apenas uma dimensão no sentido de travar o problema. Também é preciso trabalhar no ponto de vista estrutural. Quando olhamos para a lei que neste momento está em vigor, só olhamos para os artigos 14 e 15 - que são aqueles que se reportam aos grupos organizados de adeptos geralmente conhecidos por claques . Ninguém olha muito para o artigo 8 nem para o artigo 9, que solicitam aos clubes um conjunto de medidas de promoção do "fair play" e de valorização no desporto de embaixadas de desporto que não são fiscalizadas nos mesmos termos. Vejo tudo menos os dirigentes dos clubes a promoverem o "fair play".

Fala-se agora de uma autoridade nacional contra a violência no desporto. Criar um organismo deste género será suficiente?

A criação do organismo, por si só, não é suficiente. Aliás, eu não encontro propriamente uma grande novidade nisso, porque existia um CNVD, em 1998 a lei previa o “Conselho Nacional para a Violência no Desporto”, depois existia o conselho de Ética… O importante não é criar uma autoridade. O importante é percebermos quais são as suas competências e que medidas concretas essa autoridade vai implementar.

Dou um exemplo. A polícia tem dados mas não é precisa propriamente ir aos dados da polícia, basta assistirmos aos jogos do futebol de formação. Se as pessoas tivessem conhecimento da forma como os pais se comportam nos jogos de formação, como insultam os meninos das equipas adversárias... Por vezes, os conflitos e a violência ocorrem em jogos disputados em escalões juvenis iniciados. Se calhar seria bom perceber que esta autoridade terá de investir também no sistema de educação do país no sentido de promover uma cultura desportiva, de fomentar um bom ensino na prática desportiva nas escolas, de todo um conjunto de valores em torno do "fair play" e da cultura desportiva, porque olhamos para estes casos mais chocantes mas a violência está muitas vezes presente também no quotidiano. Muitas vezes o futebol apenas reproduz e exacerba um conjunto de situações presentes no quotidiano das pessoas.