​Eternidade
06-07-2018 - 06:31

Não se chega à eternidade com um escadote, pirâmide ou torre de babel. A eternidade não está no espaço. E também não está no tempo, não é uma variável cronológica.

Como é que se filma ou descreve a eternidade? Nós somos seres espaciais e temporais. Pensamos através de referências nos situam no espaço e no tempo. Sem a latitude espacial e a longitude temporal, sentimo-nos perdidos. Então como é que podemos pensar ou descrever a eternidade, que é por definição aquilo que existe para lá do espaço e do tempo?

Não se chega à eternidade com um escadote, pirâmide ou torre de babel. A eternidade não está no espaço. E também não está no tempo, não é uma variável cronológica. A eternidade não é aquela porção interminável de tempo que existe depois da morte; não é muito tempo, está para lá do tempo. Tendo em conta esta incapacidade conceptual, linguística e até neurológica para descrevermos a eternidade, como é que podemos filmá-la ou descrevê-la? Terrence Malick em “A Árvore da Vida” fica perto dessa proeza moral e estética.

Não sei se Malick é católico, mas o seu trabalho está submerso na visão católica do mundo. Os seus filmes mostram os pontos de intersecção entre a eternidade e a história humana. Para conseguir esta dimensão poética e quase profética, Malick arrisca na forma como abandona a narrativa convencional. É um risco e, sim, acaba por cometer erros. A crítica que Christopher Plummer lhe deixou tem o seu sentido: “Malick escreve até ao ponto em que aquilo soa terrivelmente pretensioso e depois edita e corta todos as cenas dos actores, o filme fica envolvido em planos poéticos, que são maravilhosos, é verdade. Mas são pinturas. Ficam ali perdidos e a história acaba por desaparecer”. Senti este pretensiosismo desgarrado noutros filmes de Malick, sobretudo “Novo Mundo” (que conta com Plummer).

E é verdade que a cultura pós-narrativa do pós-modernismo criou vício atrás de vício, fraude atrás de fraude, objectos pedantes atrás de objectos pedantes. Só que "A Árvore da Vida" é outra loiça. A descontinuidade narrativa não é aqui um pretensioso jogo da estética pela estética, não é um experimentalismo oco, não é uma vaidade godardina que recusa a narrativa num acto quase ideológico.

A linguagem poética e elíptica é a forma que Malick encontrou para filmar Deus. A cena da praia é, a meu ver, a melhor representação de Deus alguma vez filmada. Para ter esta força explosiva, a cena não podia aterrar nos nossos olhos da maneira convencional. Tinha de chegar assim: em versos visuais, em imagens elípticas que comunicam connosco através da linguagem iconográfica dos sonhos – algo que já discuti nesta coluna a partir da obra de Cormac McCarthy. Malick demorou três anos a montar/editar este filme. Três anos. Ou seja, ele escreve com imagens e sons da mesma forma que McCarthy escreve com palavras.

Por norma, associamos o cinema à ideia de romance. Com Malick, temos de encostar o cinema à ideia de sinfonia, uma sinfonia de imagens e luz em guerra ou em paz com o som e a música - sonhos e pesadelos.

Sem adiantar muito sobre a história, digo apenas que “Árvore da Vida” segue a linha clássica: inferno, purgatório e paraíso. E é absolutamente notável verificar que este objecto tão tradicional é ao mesmo tempo revolucionário e original. Não exagero quando digo que Malick está para o cinema como Dante, Milton ou Eliot estão para a literatura. Os seus filmes mostram-nos um mundo onde a acção de Deus é visível mesmo nas situações mais dolorosas. Não estamos sozinhos mesmo quando nos confrontamos com o horror da guerra (“Barreira Invisível”) ou com esse horror maior que é perder um filho (“Árvore da Vida”).