Restaurante Canela. Como se renasce de um “reality show” desastroso
31-01-2018 - 12:56
 • João Carlos Malta (texto) e Inês Rocha (imagem)

Nove meses depois do fecho, o restaurante de Manuel Canela, em Campolide, Lisboa, voltou a abrir. Depois das baratas, da carne e do peixe estragado, e de a ASAE fechar o estabelecimento, há uma nova vida. O aspecto já é outro, mas chegará para reerguer a casa?

Baratas nas prateleiras e no molho, gordura espalhada por toda a cozinha e bancada, uma grelha inenarrável, comida estragada e mal-acondicionada, desorganização total e um dono que parecia não aprender. O restaurante Canela, tema de um dos episódios do programa da TVI “Pesadelo na Cozinha”, abriu uma discussão sobre as condições em que laboram os restaurantes em Portugal. Depois do programa, veio a ASAE e o espaço de Campolide, em Lisboa, foi obrigado a fechar. Só nove meses depois, há uma nova vida no Canela – reabriu no início de Janeiro.

Como se pode sobreviver a um “reality show” desastroso? O Canela esteve fechado todo este tempo e nem precisava, segundo o proprietário, Manuel Canela. Isso, explica, aconteceu porque, além de resolver as questões de limpeza e os problemas estruturais que as autoridades sanitárias exigiam, Manuel Canela quis avançar para uma remodelação profunda.

Os atrasos do empreiteiro levaram a que a obra fosse demorando um mês, outro mês, até agora. “Fiz de pedreiro e de electricista, fiz de tudo um bocadinho, se não não estava assim”, lembra Manuel Canela, o proprietário que trabalha ali há quatro décadas.

Em “nove meses, menos quatro dias” (tempo que o restaurante esteve fechado), Canela só teve dois dias de folga: o Natal e o Ano Novo. O resto foi vivido ali, em Campolide, das oito da manhã à meia-noite.

Agora, pouco a pouco, quer recuperar a clientela. Três semanas depois da reabertura, o aspecto está totalmente diferente: mais luminoso e aparentemente sem restos de gordura ou insectos.

Manuel Canela diz que tudo mudou: os azulejos, a organização, os tectos falsos, as casas de banho. E tudo para melhor, autoelogia.

Produção, realidade, outra acção

Passado mais de um ano, o proprietário diz que ainda se lembra de tudo tim tim por tim tim. E quando se fala da imagem que o restaurante passou para o país, critica logo a produção de o “Pesadelo na Cozinha” e a estrela maior do programa, o chefe Ljubomir Stanisic.

“Eles não queriam que limpássemos nada. E pediram para não mexermos em nada”, garante. “Ainda me pôs de castigo. Isto foi tudo para fazer a produção dele e ele subir na vida. Esquece-se é que os outros são pobres.”

Canela diz que só entrou no programa porque “ia atrás das obras” de remodelação que prometiam. “Pensávamos que íamos tirar proveito”, explica.

Agora não pensa o mesmo. Acabou por fechar e do próprio bolso fazer uma renovação total. Os bancos não o ajudaram, teve de recorrer a um grupo de amigos que o apoiou. Mais de 100 mil euros gastos, contabiliza.

Quando a conversa aborda as imagens fortes e contundentes do programa, como a gordura acumulada até ao infinito, a carne de aspecto terrível, os insectos, Manuel Canela desvaloriza: “Calmaaaaaa.”

E parte para a comparação: “Se for a um hotel de cinco estrelas, isso existe lá hoje. Nos restaurantes falta um, depois outro, e isso impede-nos de que as coisas funcionem como a gente gosta e queria. Toda a restauração é difícil.”

Mas e a grelha em que carne e peixe iam juntos? “Isso nunca aconteceu. Nada estava misturado. Isso é outro cenário que foi totalmente inventado. Tinha uma grelha para a carne e outra para o peixe. O chefe é que tentou dizer isso...”, garante.

No programa, há imagens de Manuel a grelhar peixe e carne ao mesmo tempo e a dizer que “se os dois não se tocarem não há problema”.

O proprietário do Canela fala de uma nova vida no restaurante: “Fizemos a desinfecção, havia móveis com muita antiguidade, e foi tudo substituído. Está resolvido, super-resolvido.”

Mas, ainda assim, num prédio antigo há sempre questões estruturais que geram problemas. Manuel anda agora às voltas com infiltrações na cozinha que lhe dão água pela barba.

Outro dos momentos mais marcantes do programa foi o do molho de Manuel, guardado numa bacia por debaixo do lavatório, que Stanisic disse ser o pior que já provou. A receita de vinho branco, cerveja, vinho do Porto, sal e louro, segundo Canela, é o ex-líbris daquele espaço.

Garante que o molho não se gasta num dia e por isso pode ser usado mais tempo. “Vem cá muita gente por causa do molho e pedem-me para lhes ensinar. E não tem nada contra a saúde das pessoas. É a minha receita, não vou mudar”, explica.

A marinada, que Stanisic também enxovalhou, segundo Manuel conta, nem era uma marinada.

Câmara desligada, fim de sonho

Na fase final do programa, emitido há quase um ano, a mulher de Manuel, Maria Arminda, diz a Stanisic: “Queria agradecer por ter paciência com a gente, por nos dar ajuda e por nos abrir os olhos.”

O chefe tinha chegado a ameaçar não continuar a ajudar o restaurante dada a forma como Manuel ignorava os seus conselhos e o estado calamitoso do espaço.

Também Manuel Canela se desfez em elogios no final da emissão. “Tenho muito a agradecer por ter transformado o meu restaurante para melhor”.

Agora, muitos meses depois, o discurso é outro: “Fui vítima, claro que fui. Não só pelo que perdi durante o programa e todo o negócio que não fiz enquanto o estabelecimento esteve fechado.”

Não é para imagem, é para ser de verdade

Manuel Canela acha que o que Lubjomir queria ali implementar era impossível. Simplesmente não tinha nada a ver com o que é o Canela.

“Não sei quantos anos ele estudou, mas não foi em meia hora que aprendeu o que sabe. Ele esteve aqui duas meias horas. Não sou nenhum supersónico”, ilustra.

O proprietário diz ainda que Stanisic não percebeu o sítio em que estava. Se durante o programa elogiou o sabor das iguarias do chefe, agora diz convictamente que “não são pratos para esta casa”.

“São para um estrangeiro, tipo restaurante de primeira de Belém”, enfatiza. “Aqui não se vende um bife por 13 euros. Não há poder de capital para isso.”

A reacção dos clientes ao que aconteceu nestes meses no Canela não foi uniforme. Uns passam e criticam; outros incentivam.

“Conhecem-me há anos e dizem que vou levar para a frente. As pessoas viram coisas em que não acreditavam e eu contei a história. Estou aqui há tantos anos, nunca tive uma reclamação no livro de reclamações”, defende Canela.

Nas últimas três semanas, Canela diz que a clientela tem começado a aparecer, mas que muitos nestes nove meses ganharam outros hábitos. Tradução: estão a ir a outros restaurantes. “Agora é difícil mudarem”, pensa.

Mas ele, que nos últimos 40 anos quase não fez outra coisa que não fosse viver cada minuto no restaurante, recusa-se também a desistir: “Estou satisfeito e hei-de recuperar.”