“Amo-te muito, irmão”
02-06-2017 - 06:42

Ser irmão é uma luta. O estado normal dos irmãos é a tensão, sobretudo entre irmãos do mesmo sexo, irmão contra irmão, irmã contra irmã. É a nossa natureza.

Quando penso na irmandade em abstracto ou no meu irmão em concreto, passo sempre por “Nós Controlamos a Noite”, filme de James Gray e com Joaquin Phoenix e Mark Wahlberg. É a história de dois irmãos que termina com um “amo-te muito, irmão”, mas este final representa apenas dez segundos de redenção depois de hora e meia de luta entre os dois.

Ser irmão é uma luta. O estado normal dos irmãos é a tensão, sobretudo entre irmãos do mesmo sexo, irmão contra irmão, irmã contra irmã. É a nossa natureza.

De resto, o livro dos livros está recheado de histórias sobre esta guerra fratricida, Abel versus Caim, Jacob versus Esaú, José versus irmãos. Sim, eu amo o meu irmão, mas esse amor resulta de um treino, de uma educação, de uma moral imposta pelos meus pais. Sim, o amor fraternal até se pode tornar uma segunda natureza, um hábito adquirido, mas convém nunca esquecer que a nossa natureza primordial é a pedra de Caim estilhaçando o crânio de Abel.

Acham que estou a ser demasiado duro? Então pensem nos casos de partilhas de heranças que acabam em invejas envinagradas na maturidade ou nas infâncias marcadas por bulhas e birras entre irmãos. Ainda há dias, numa crónica publicada aqui no sítio da Renascença, Raquel Abecassis relembrou que ter irmãos não é “make love and peace”, é mais “war”. Sim, guerra, conflito, luta. Não há fraternidade sem lutas e, acima de tudo, não há boa fraternidade sem a consciência de que ser um bom irmão implica estar sempre em luta com os nossos instintos, com o nosso egoísmo, com a nossa maldade animal.

Quando tive a minha segunda filha, reforcei esta ideia. Como todas as crianças, a mais velha reagiu mal à presença da irmã. Nessa altura, percebi por exemplo que as grades do berço não servem para impedir o bebé de sair, servem para impedir os irmãos mais velhos de entrar. O berço não é amor, é guerra; é o escudo ou bunker de Abel contra a fúria de Caim. Nós tivemos de educá-la para amar a irmã. E, sim, foi duro confirmar através das minhas próprias filhas que o amor fraternal não flui do nosso coração; é uma vitória da moral sobre a natureza, é um treino religioso contra aquele impulso básico que é expulsar o benjamim indefeso da ninhada.

Sim, meus caros, um treino religioso. Não é por acaso que a parábola mais poderosa de Jesus Cristo é a parábola do filho pródigo. E também não é por acaso que Cristo não nos dá um final feliz nesta parábola, ou melhor, não nos dá qualquer tipo de final. Não ficamos a saber qual é o acto final do irmão que está enraivecido, ficamos sem saber o que ele diz ou faz depois de ouvir a justificação do pai: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado (Lc 15, 31).

Abruptamente, a parábola acaba assim. É por isso que encaro “Nós Controlamos a Noite” como a peça extra que estica a parábola por mais dez segundos, o tempo necessário para ouvirmos “amo-te muito”. É um “amo-te muito, irmão” pesado, difícil, silencioso, é um murmúrio quase imperceptível, mas é um murmúrio que vem lá do fundo, daquele fundo que só uma guerra contra nós próprios consegue cavar.