Tantos anos depois, ainda me recordo do sabor intrusivo do óleo de fígado de bacalhau. As avós diziam que fazia bem. Mas depois de o tomar não havia sorriso de criança que não se transformasse (ou transtornasse) num esgar diariamente repetido, durante a temporada em que a terapêutica durava.
Por isso, deixar para trás os tempos em que nos víamos obrigados a ingerir dia após dia semelhante mistela, era motivo de genuína celebração.
Não perdi a esperança, mas receio agora que depois de quatro anos duríssimos, os portugueses estejam à beira de nova temporada de óleo de fígado de bacalhau. A crise financeira de 2011 atirou-nos para os braços da austeridade. Sem intervenção externa os salários de todos os funcionários públicos teriam sido comprometidos, assim como a prestação dos serviços básicos de saúde, educação ou justiça. Sem dinheiro nem margem nos mercados, valeu-nos a ajuda externa que o Governo acabou na altura por pedir.
Não houve, como nos contos de crianças, uma intenção maléfica de nos empobrecer, com a poção mágica da austeridade. Alguém, no seu perfeito juízo, gostará de ver uma sociedade com mais pobreza, sofrimento e novas carências? Não: por termos ficado mais pobres é que tivemos que apertar o cinto. E também por se ter apertado o cinto é que é possível começar agora a aliviar, a sempre indesejável austeridade.
Vale a pena recordar que o aperto teria sido ainda pior, caso o país tivesse avançado, qual orquestra do titanic, para três projectos que o PS da altura tinha como indispensáveis à modernização da Pátria: o novo aeroporto, o TGV e nova travessia do Tejo.
Quatro anos depois, e apesar de erros e sobressaltos – tanto políticos como económicos - até da própria Coligação, levantámos cabeça, concluímos o programa de ajustamento e aliviou-se o garrote financeiro. As empresas contribuíram, as famílias adaptaram-se: muitas com enormes sacrifícios, até mais escondidos do que públicos.
Ninguém gostaria de voltar a passar pelo mesmo: pela doença e pelos remédios amargos que a enfermidade implicou.
Mas, PCP, Bloco de Esquerda e agora o PS falam da austeridade como se ela tivesse resultado de opção eminentemente ideológica, quando, na altura, era a única opção viável. Por isso, e com a mesma leveza, prometem agora desmantelar o que foi feito, assumindo-se como os campeões do bem-estar das próximas gerações.
E o conto de fadas conheceu mesmo agora novo episódio, com o secretário-geral do PS a celebrar publicamente o encantamento com os seus recentes aliados, junto dos quais garante ter assegurado condições de governabilidade para a legislatura.
É sabido que a necessidade aguça o engenho, mas António Costa está a ir longe de mais. Portugal e o PS valem mais do que a sobrevivência política deste ou de qualquer outro líder, a qual, no caso de António Costa, até pode ser assegurada, mas sem movimentos de desespero.
Retomar os caminhos da derrapagem social, económica e financeira seria indesculpável; e fragilizar o PS numa aliança contra-natura que à partida divide deputados e eleitores socialistas constituiria um monumental tiro no pé.
Após a derrota nas legislativas, um PS dividido sobre si próprio seria presa precária e dócil nos braços da esquerda radical que nunca renunciou às respectivas ideias e concepções. Como diz António Costa, o muro de Berlim caiu. O problema é que na cabeça de alguns dos presumíveis aliados de Costa o muro de Berlim nunca deveria ter ruído, tal como a Coreia do Norte continua, nalguns casos, a ser celebrada como se de um regime democrático se tratasse.
Terá o PS deslizado para a esquerda, defraudando muitos dos seus eleitores? Ou será que PCP e Bloco puseram o radicalismo na gaveta e vão arriscar uma deriva de direita, atraiçoando o voto de protesto de que em geral beneficiam?
Se nos garantirem que nada disso aconteceu, estaremos perante a quadratura do círculo, sempre na fantasia de um qualquer conto cor-de-rosa, daqueles que só acabam bem no papel.