Ainda me lembro do óleo de fígado de bacalhau
20-10-2015 - 21:43

Terá o PS deslizado para a esquerda, defraudando muitos dos seus eleitores? Ou será que PCP e Bloco puseram o radicalismo na gaveta e vão arriscar uma deriva de direita, atraiçoando o voto de protesto de que em geral beneficiam?

Tantos anos depois, ainda me recordo do sabor intrusivo do óleo de fígado de bacalhau. As avós diziam que fazia bem. Mas depois de o tomar não havia sorriso de criança que não se transformasse (ou transtornasse) num esgar diariamente repetido, durante a temporada em que a terapêutica durava.

Por isso, deixar para trás os tempos em que nos víamos obrigados a ingerir dia após dia semelhante mistela, era motivo de genuína celebração.

Não perdi a esperança, mas receio agora que depois de quatro anos duríssimos, os portugueses estejam à beira de nova temporada de óleo de fígado de bacalhau. A crise financeira de 2011 atirou-nos para os braços da austeridade. Sem intervenção externa os salários de todos os funcionários públicos teriam sido comprometidos, assim como a prestação dos serviços básicos de saúde, educação ou justiça. Sem dinheiro nem margem nos mercados, valeu-nos a ajuda externa que o Governo acabou na altura por pedir.

Não houve, como nos contos de crianças, uma intenção maléfica de nos empobrecer, com a poção mágica da austeridade. Alguém, no seu perfeito juízo, gostará de ver uma sociedade com mais pobreza, sofrimento e novas carências? Não: por termos ficado mais pobres é que tivemos que apertar o cinto. E também por se ter apertado o cinto é que é possível começar agora a aliviar, a sempre indesejável austeridade.

Vale a pena recordar que o aperto teria sido ainda pior, caso o país tivesse avançado, qual orquestra do titanic, para três projectos que o PS da altura tinha como indispensáveis à modernização da Pátria: o novo aeroporto, o TGV e nova travessia do Tejo.

Quatro anos depois, e apesar de erros e sobressaltos – tanto políticos como económicos - até da própria Coligação, levantámos cabeça, concluímos o programa de ajustamento e aliviou-se o garrote financeiro. As empresas contribuíram, as famílias adaptaram-se: muitas com enormes sacrifícios, até mais escondidos do que públicos.

Ninguém gostaria de voltar a passar pelo mesmo: pela doença e pelos remédios amargos que a enfermidade implicou.

Mas, PCP, Bloco de Esquerda e agora o PS falam da austeridade como se ela tivesse resultado de opção eminentemente ideológica, quando, na altura, era a única opção viável. Por isso, e com a mesma leveza, prometem agora desmantelar o que foi feito, assumindo-se como os campeões do bem-estar das próximas gerações.

E o conto de fadas conheceu mesmo agora novo episódio, com o secretário-geral do PS a celebrar publicamente o encantamento com os seus recentes aliados, junto dos quais garante ter assegurado condições de governabilidade para a legislatura.

É sabido que a necessidade aguça o engenho, mas António Costa está a ir longe de mais. Portugal e o PS valem mais do que a sobrevivência política deste ou de qualquer outro líder, a qual, no caso de António Costa, até pode ser assegurada, mas sem movimentos de desespero.

Retomar os caminhos da derrapagem social, económica e financeira seria indesculpável; e fragilizar o PS numa aliança contra-natura que à partida divide deputados e eleitores socialistas constituiria um monumental tiro no pé.

Após a derrota nas legislativas, um PS dividido sobre si próprio seria presa precária e dócil nos braços da esquerda radical que nunca renunciou às respectivas ideias e concepções. Como diz António Costa, o muro de Berlim caiu. O problema é que na cabeça de alguns dos presumíveis aliados de Costa o muro de Berlim nunca deveria ter ruído, tal como a Coreia do Norte continua, nalguns casos, a ser celebrada como se de um regime democrático se tratasse.

Terá o PS deslizado para a esquerda, defraudando muitos dos seus eleitores? Ou será que PCP e Bloco puseram o radicalismo na gaveta e vão arriscar uma deriva de direita, atraiçoando o voto de protesto de que em geral beneficiam?

Se nos garantirem que nada disso aconteceu, estaremos perante a quadratura do círculo, sempre na fantasia de um qualquer conto cor-de-rosa, daqueles que só acabam bem no papel.